Ne Change Rien: Questões de acordo, diria Godard, que usou antes de Costa a expressão aqui em parte chamada ao título, “Pour que Tout Soit Différent”.

É em cena, como cantora, como actriz cantora, e é fora de cena, como cantora, como actriz cantora, que Pedro Costa filma Jeanne Balibar. NE CHANGE RIEN é o filme de Jeanne por Costa, resultado de um encontro perseguido ao longo de alguns concertos, ensaios para a gravação de um segundo disco, aulas de canto lírico, actuações, para dar a ver, sim, Jeanne Balibar, mas com ela o esforço dela, o trabalho de acerto da voz, o trabalho de construção de uma canção, o trabalho insistente e repetitivo, a concentração, a exigência dos ensaios, a procura do tom justo, o trabalho sobre as pausas, os tempos, as palavras, as frases musicais, as ligações delas. E assim, no universo da música, respondendo claramente ao apelo do magnetismo de Balibar – este é o filme de Jeanne por Costa –, NE CHANGE RIEN traz consigo uma visão do cinema em trabalho. Será subliminar mas é omnipresente, há referências transparentes, e uma imediata associação ao cinema de Costa, à memória dos seus filmes anteriores começando em ligação directa ao princípio, O SANGUE, o preto e branco, a iluminação de O SANGUE, o lirismo de O SANGUE (e as mesmas letras brancas dos títulos, o negro, as sombras recortadas por focos de luz bem precisos na imagem, o choque de um abanão sem anúncio com a tortura sentimental das palavras da canção de abertura no lugar da bofetada dada ao rapaz do primeiro filme, desde logo).


Nesses vários sentidos, NE CHANGE RIEN – o filme de Jeanne – tem muito de retrato, indisfarçavelmente atraído pelo seu motivo, vem dela a luz do filme, muitas vezes mesmo no sentido literal do termo, nele nos devolvendo muito de auto-retrato – o filme de Jeanne por Costa. É Jeanne Balibar quem ouvimos dizer por duas vezes lembrando a um músico (ou a um técnico de som?), entre sorrisos, que as palavras de apreço incentivador a um ensaio de “Peine Perdue” evocam as que se ouvem dizer no plateau da rodagem de um filme: “Acreditamos em ti.” / “No cinema, diz-se ‘diverte-te’…” ou, num passo mais tardio, eco desta primeira troca de galhardetes, outra vez entre sorrisos, “’Diverte-te’, como se diz no cinema.” É Jeanne Balibar quem traz para dentro do filme o cinema clássico americano quando canta o tema do filme de Nicholas Ray JOHNNY GUITAR. Filmada por Costa, é ela quem guarda a fotogenia das grandes divas nos muito grande planos, sempre em recorte sobre o negro do fundo, sempre semi-iluminados, semi-obscuros (ou o da luz mais difusa em que a vemos cantar o tema do título, “Ne Change Rien”, muito próxima do microfone, a câmara muito próxima da cara dela, versão Marlene). Ou então, para além da cinefilia, onde também cabem sombras expressionistas e um vibrante pulsar americano e negro, é a ela quem Costa filma sentada num banco alto, de auscultadores nos ouvidos ao microfone, em frente a uma tela branca no estúdio de Rodolphe Burger, o segundo protagonista de NE CHANGE RIEN. O branco da tela (um ecrã de tripé portátil) destaca desta vez a silhueta escura de Balibar que grava “Peine Perdue” acompanhando-se com os gestos de fluida elegância descritos pelo seu braço e mão direitos. Vemo-la então enquadrada pelos traços geométricos da tela lisa, dela destacada em nítido recorte tridimensional. Mais tarde, noutro momento de ensaio, a mesma tela será cenário de projecção de sombras das personagens que circulam no espaço do estúdio antes de ocupar os seus lugares em frente a ela. O plano começa uma vez mais escuro, abrindo com um ponto de luz (um candeeiro que se acende à direita no fundo do quadro para o jogo das sombras). O pequeno ecrã quadrado branco no fundo da composição do plano, nesse passo, de conjunto e cena de vários movimentos, funciona como elemento do cenário favorável à visibilidade da acção e como superfície reflectora trazendo para o interior da imagem uma imagem evocadora da projecção: uma sala escura, uma tela branca. O som traz-nos a música que já se ouve desde o início do plano, mas nesse instante parecemos rememorar uma palavra de ordem do cinema, “Acção!” (por mais arredada que saibamos que ela esteja da prática do cinema de Pedro Costa desde, pelo menos, NO QUARTO DA VANDA, e que entendamos como o dispositivo de NE CHANGE RIEN ferozmente a dispense, seguindo os trâmites em que Costa filmou Straub e Huillet no seu estúdio de montagem em OÙ GÎT VOTRE SOURIRE ENFOUI?, o título que na sua obra mais imediatamente com este rima enquanto retrato nascido de um encontro cúmplice dirigido para a exigência do, e o respeito pelo, trabalho de criação).


Assim olhado, NE CHANGE RIEN persegue em dupla linha, no rasto do cinema – questão de cinefilia enraizadamente latente, que os filmes de Costa tanto convocam – e seguindo uma pulsão narrativa que vibra no interior de cada quadro e de cada sequência com os traços de uma história que entendemos familiar de uma outra, verbalizada por Balibar, “como no cinema”. Enquanto registo do trabalho de um cantor em estúdio, NE CHANGE RIEN filia-se no belo caso de Godard com os Rolling Stones, ONE PLUS ONE, tomando no seu sopro fantasmático a vulnerabilidade de Jeanne Balibar num embate lírico com o preto e branco que molda o filme. Tendo-o abandonado depois de O SANGUE, Costa voltou a ele aparentemente levado pela questão prática de ter que filmar os concertos de Balibar sem poder interferir na iluminação dos palcos e desgostando dela. O que está no filme é o negro iluminado a branco em afinações muito precisas, um chiaroescuro belíssimo, a fazer acreditar que à questão técnica sobreveio um apurado gosto pelo trabalho dessa imagem, tão preciso como os cruzamentos que ao longo do filme põem de acordo as bandas de imagem e som. É nele que desfilam, como vinhetas fundidas nos off da música ou dos diálogos, as sequências que compõem NE CHANGE RIEN.


Detendo-nos, em traços muito gerais, no esqueleto do filme seguimos basicamente quatro tipos de situações: quatro momentos de concertos; seis de ensaios, de canções em estúdio e de canto lírico; três de representações no palco parisiense da cena de La Périchole; dois momentos de camarim ou sala de ensaios, o espaço mais claro e os planos mais brancos de NE CHANGE RIEN, uma sala fechada de espaço ampliado por um espelho na parede do fundo onde, da primeira vez, vemos um solitário compasso de espera de Jeanne Balibar e da segunda, sequência final, assistimos a um ensaio da banda e de Balibar, “Rose”, penúltima canção do filme. A esta “tipologia” parece escapar um único plano, o “plano Ozu” de NE CHANGE RIEN (perspectiva ao nível do chão num enquadramento onde cabe o tecto da sala em causa, um plano de conjunto de duas velhas senhoras a fumar), um plano de ligação que é uma plácida imagem de pausa, japonesa: um dos concertos de Balibar filmados por Costa teve lugar em Tóquio e este é o plano que o assinala, levando-nos, aliás, a supor, pela posição aproximada da câmara, que as cenas “no camarim branco” são igualmente japonesas.


“Filme de câmara”, como o filme de Straub, Huillet, como o filme de Vanda, NE CHANGE RIEN é um filme de espaços interiores. São muito raros os momentos em que o exterior é perceptível: uma janela envidraçada filmada com uma luz muito branca, que dá para fora do estúdio onde Balibar canta emoldurada por ela, à esquerda, e pela tela à frente da qual está sentada ao microfone; ou os reflexos da circulação do trânsito na cidade no vidro da moldura do quadro pregado numa das paredes da sala de espera japonesa. São intromissões subtis do exterior nos espaços interiores onde tudo decorre. De resto, NE CHANGE RIEN é um filme de subtilezas, também no que diz respeito à representação, entendendo por ela o que se passa no interior de cada plano, recorrentemente fixos – as mudanças de escala nos planos de conjunto, as alterações introduzidas pela iluminação, nestes e nos grandes planos, na mise en scène implicada na própria posição de câmara, no jogo de luz e sombras ou na duração de algumas imagens, por exemplo. Muitos dos seus planos gerais são filmados “como no teatro”, do ponto de vista frontal da quarta parede ausente, no caso dos de ensaios e concertos. Curiosamente, quando filma “no teatro” – as sequências de La Périchole de NE CHANGE RIEN, tomadas da mesma perspectiva nos seus vários momentos –, a câmara escolhe desviar-se da boca de cena para assentar numa posição lateral, dirigida à porta de entrada em cena. Nesses planos (algumas vezes vazios, espaço para os diálogos e canções fora de campo), as personagens nunca se dirigem à câmara, nem nunca a câmara se dirige a elas. No teatro, os planos de Costa são verdadeiramente planos de discretos bastidores.


O excesso encontra-se na proximidade da câmara dos muito grandes planos do rosto de Jeanne Balibar, vários, em interpelações de vária ordem. Dois dos mais brutais estão nas duas sequências contíguas que mais atentam no esforço do trabalho dela. Uma passa-se no estúdio de Rodolphe, contracampo de alguns campos de Jeanne, começa trauteada (por Rodolphe) no plano que ela ocupa já em andamento, tem uma duração que acompanha a concentração dela e acaba justamente nesse grande plano recortado no escuro cuja última imagem de distensão fixa os músculos do seu pescoço. A segunda, sem corte, toda ela um muito grande plano, acompanha a contida exasperação de Jeanne numa lição de canto de La Périchole em que está a ser dirigida fora de campo pelo professor, cujas indicações nitidamente a desesperam. Nitidamente, porque, tão próximo, o grande plano “trai” a sua contenção, devassando o que vai crescendo de cansaço em nervosismo e irritação.


Momentos de trabalho não são momentos descontraídos, mas muitos (quase todos?) os planos de NE CHANGE RIEN fecham em descontracção, introduzindo no filme essa nota, que também é dele, do directo na banalidade quotidiana das pequenas coisas. Os apontamentos em decrescendo das conversas sobre frigoríficos, garrafas de vinho e copos de branco pelos quais algumas cenas terminam traduzem a experiência do grupo de amigos concentrados naquilo que estão a fazer, de que o flutuante segmento dedicado a “Ton Diable” é por excelência imagem. Ou seja, a irrepreensibilidade da forma guarda o espaço do impulso da vida. NE CHANGE RIEN não é uma via nova no cinema de Pedro Costa, mas um novo passo de uma via de princípios firmados, aos quais esta faceta de árdua persistência e cumplicidades partilhadas nada tem de alheio. Questões de acordo, diria Godard, que usou antes de Costa a expressão aqui em parte chamada ao título, “Pour que Tout Soit Différent”. É todo um programa.
Maria João Madeira, Catálogo Festival Temps d’Images



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«todos os dias, todos os segundos, sinto que há uma eternidade para contar». nem mais: pedro costa.

Festival MICEC de Barcelona, Junho 2007, a propósito de Juventude em Marcha, 2006

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A eternidade que será contada na próxima 2ªf no IPJ é a de Jeanne Balibar, actriz e cantora -

leia a entrevista a propósito de Ne Change Rien, ouça a canção homónima do título do filme: (álbum Paramour, 2003).

E não diga que não vai daqui.




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Ciclo Europeus no seu melhor. E não é que estão mesmo, no seu melhor?! Às 2ªf, no IPJ.

Dia 1
NE CHANGE RIEN


Pedro Costa


Trabalho, memória: mas isto não basta. E se aquele lado 'A' que imaginámos, formado essencialmente por grandes planos, fosse o inventor do romance? E se o lado 'B', em que a câmara se afasta consideravelmente do rosto de Balibar, anunciasse que o romance acabou? Afinal, Jeanne canta e não traz outra coisa do que canções de amor. Sorri, emociona-se, tortura-se, desespera... O seu teatro não é épico. Enquanto isso, o filme, noir do princípio ao fim, começa a criar personagens. E insistimos: há um thriller em "Ne Change Rien" ou, pelo menos, foi isso que vimos nele.
Um thriller siderante em que, como noutros filmes de Pedro Costa, uma mulher se torna o espectro do desejo de um homem. O contacto é doce, a troca difícil. E a metamorfose não é uma mellow song: exige certas atmosferas, actores transformados em silhuetas pela luz e pela sombra, corpos que se exilam de si próprios para se suprimirem, como fantasmas que nos visitam e depois abandonam o ecrã em silêncio. Até que a matéria concreta ganhe um sentido sobrenatural. Até que o real e o poético possam ser o mesmo sonho. "Ne Change Rien" é um filme ultra-sensível. Deste cinema, haverá sempre pouco.

Francisco Ferreira, Expresso


Título original: Ne Change Rien
Realização: Pedro Costa
Interpretação: Jeanne Balibar, Rodolphe Burger, Hervé Loos, Arnaud Dieterlen, Joël Theux, François Loriquet, Fred Cacheux
Direcção de Fotografia: Pedro Costa
Música: Pierre Alferi, Rodolphe Burger, Jacques Offenbach
Montagem: Patrícia Saramago
Origem: França/Portugal
Ano de estreia: 2009
Duração: 98’




Dia 8
SÉRAPHINE


Martin Provost


Tendo tido um sucesso colossal na atribuição dos prémios César na sua 34ª edição, este filme de Martin Provost poderia cair na categoria dos produtos cujas recompensas são resultantes de interesses comerciais e não de um apoio da crítica especializada. Contudo, sendo manifesto que existe um aspecto ilustrativo, bem compensado pelo domínio técnico, Provost consegue ultrapassar esta mera atitude , quando aborda com sucesso a génese da energia criativa autodidacta de Séraphine, uma mistura de uma inocente contemplação da Natureza, uma mais do que latente frustração sexual e uma visão peculiar em relação à religião, fundamentos de um desequilíbrio concreto que desembocará na loucura. (Jean Renoir diz na sua autobiografia que o seu pai Pierre Auguste Renoir, pensava ser o único equilibrado entre todos os seus amigos, os grandes pintores impressionistas). Uma obra a ver e que deve recuperar o interesse no universo da agora conhecida por Séraphine de Senlis, raramente citada nos livros sobre a especialidade, brilhantemenete interpretada por Yolande Moreau notável pela sua brutal carga de inocência e ambiguidade.
Hernan Christire, Cinedoc


Título original: Séraphine
Realização: Martin Provost
Argumento: Martin Provost e Marc Abdelnour
Interpretação: Yolande Moreau , Ulrich Tukur, Anne Bennent, Geneviève Mnich, Nico Rogner, Adélaïde Leroux, Serge Larivière, Françoise Lebrun
Direcção de Fotografia: Laurent Brunet
Música: Michael Galasso
Montagem: Ludo Troch
Origem: França
Ano de estreia: 2008
Duração: 125’




Dia 15
O CANTO DOS PÁSSAROS


Albert Serra


Há filmes para os quais não há palavras que os definam. Será preciso inventar novos termos para deles podermos falar. Ou então a sua função é pura e simplesmente deixarem-se “ver”, sem exigências nem explicações, como objecto inocentes, ou aquelas flores misteriosas e maravilhosas que germina nos mais estranhos e desolados lugares. Os filmes de Albert Serra são assim. Puras manifestações do espírito na mais árida matéria. Como em “Honra de Cavalaria”, Albert Serra em “O Canto dos Pássaros” acompanha o périplo de pessoas em busca de algo que os transcende. O espírito do divino no segundo. Três homens (de novo actores não profissionais) cruzam o deserto seguindo uma estrela que os levará à presença de Deus feito homem. A viagem nada tem da carregada simbologia sagrada a que Hollywood nos habituou, marcada que está de pormenores banais e pitorescos, roçando mesmo o burlesco, trazendo para o quotidiano mais banal o carácter sagrado da liturgia. Um filme de génio, simples como um sorriso.
Manuel Cintra Ferreira, Expresso


Título original: El Cant dels Ocells
Realização: Albert Serra
Argumento: Albert Serra
Interpretação: Lluís Carbó, Lluís Serrat Batlle, Lluís Serrat Masanellas, Montse Triola, Mark Peranson, Victoria Aragonés
Direcção de Fotografia: Neus Ollé e Jimmy Gimferrer
Montagem: Angel Martín e Albert Serra
Origem: Espanha
Ano de estreia: 2008
Duração: 98’



Dia 22
FOME


Steve McQueen


Quem vier a "Fome" à espera de mais um filme sobre os "troubles" da Irlanda da Norte pode desde já tirar daí o sentido. Ao artista plástico Steve McQueen e ao dramaturgo Enda Walsh o que interessa é isolar um universo particular e usá-lo como centro de uma meditação sobre o humano, justapondo o guarda prisional que enfrenta o seu quotidiano de modo regulamentado aos prisioneiros que lhe contrapõem o caos, num jogo de equilíbrios entre o idealismo e a hipocrisia, o pragmatismo e o entusiasmo, que tem a violência como fiel da balança. Mas "Fome" é também um filme sobre religião, sociedade, fé, crença, empenho, orgulho, como fica explícito no electrizante plano único onde Bobby Sands e o padre Dominic discutem o porquê da greve da fome em que o prisioneiro se vai empenhar - o momento onde "Fome" se revela como um objecto que recusa as convenções da narrativa convencional, optando por um estatuto de "instalação narrativa" meticulosamente encenada mas que nem por isso deixa de ser cinema de altíssima craveira, de um impacto visceral e inescapável. Está aqui não apenas a revelação de um cineasta, está aqui um dos filmes do ano.
Jorge Mourinha, Público


Título original: Hunger
Realização: Steve McQueen
Argumento: Steve McQueen e Enda walsh
Interpretação: Michael Fassbender, Liam Cunnigham, Stuart Graham, Brian Milligan, Liam Mcahon
Direcção de Fotografia: Sean Bobbitt
Música: Leo Abrahams e David Holmes
Montagem: Joe Walker
Origem: RU/Irlanda
Ano de estreia: 2008
Duração: 96’



Dia 29
ALMOÇO DE 15 DE AGOSTO


Gianni Di Gregorio


Há filmes que precisam de orçamentos monumentais, efeitos especiais high tech e grandes campanhas de promoção para terem sucesso. Outros há, como Almoço de 15 de Agosto, que para o terem, precisam apenas de meia-dúzia de tostões, de um solteirão entradote e de quatro velhotas com mais de 90 anos fechados na mesma casa no pino do Verão.
Almoço de 15 de Agosto é cinema que tem parte com o artesanato. Co-escrito, realizado e interpretado pelo argumentista Gianni Di Gregorio (Gomorra), com uma cotovelada autobiográfica, um orçamento humorístico, uma equipa mínima, actrizes amadoras e na sua casa de família, é a história de um Gianni, um homem de meia-idade que vive com a mãe idosa num apartamento de Roma, e que está em falha com a renda da casa e as despesas do condomínio.
O senhorio diz que lhe perdoa tudo, se ficar a tomar conta da mãe dele no feriado do meio de Agosto. Só que atrás da mãe, vem a tia. E ainda mais outra idosa. E assim, Gianni fica a braços com quatro velhotas caprichosas, numa Roma deserta, fechada e abrasadora.
Reminiscente da melhor e mais tradicional comédia realista italiana, daquela que traz um travozinho de melancolia, Almoço de 15 de Agosto é um filme sobre a solidão e o desamparo da terceira idade, mas feito num jeito amável, genuina e unicamente romano, como o peixe-gato que Gianni vai a certa altura comprar à beira do Tibre. E humano, enormemente humano.

Sérgio Abranches, timeout.pt


Título original: Pranzo di Ferragosto
Realização: Gianni Di Gregorio
Argumento: Gianni Di Gregorio
Interpretação: Valeria de Franciscis, Marina Cacciotti, Maria Calì, Grazia Cesarini Sforza , Alfonso Santagata, Luigi Marchetti, Marcello Ottolenghi, Petre Roso, Gianni Di Gregório
Direcção de Fotografia: Gian Enrico Bianchi
Música: Ratchev & Carratello
Montagem: Marco Spoletini
Origem: Itália
Ano de estreia: 2008
Duração: 75’



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Alemanha, Ano Zero de Rossellini - Dia 24 - 21h30 - Pátio de Letras - Entrada Livre!

Alemanha, Ano Zero é uma das obras máximas do mestre Roberto Rossellini e do Neo-realismo italiano. O filme explora a ferida deixada pelo Nazismo, que afectou de forma terrível e profunda uma geração, simbolizada na obra pela criança protagonista. Filmado em Berlim, Alemanha, Ano Zero é a última parte da chamada "trilogia da guerra", formada ainda por Roma, Cidade Aberta e Paisà que, por sua vez, tinham sido filmados em Itália. Dois países e duas memórias assim unidos pelo cinema.

Quando terminou a Segunda Guerra Mundial logo se esboçaram os primeiros traços do movimento neo-realista. Enfrentava-se um mundo devastado pelos horrores da guerra e no qual os actos mais hediondos tinham sido praticados. A miséria e a fome alastravam-se um pouco por todo o lado e a sociedade reflectia este estado.

O neo-realismo surge, por isso, como um movimento de reação perante tais horrores e têm o seu expoente máximo no cinema, visto ser esta a forma de arte mais abrangente e cujo universo chegava a um maior número de pessoas.

O cinema neo-realista conta-nos pequenas histórias traumáticas e expõe-as de uma forma neutra. Não é o realizador a emitir o juízo de valor à priori, mas sim o espectador a construí-lo.

É certo que os meios económicos para financiar um filme nesta altura eram escassos, mas a intenção dos realizadores neo-realistas era precisamente trazer à tela um cinema o mais crú possível, em que a realidade fosse retratada no seu estado puro.

Reduz-se por isso a influência da montagem na manietação da apreciação crítica do espectador. Este é um cinema que mostra e apenas isso. Um cinema que se preocupa em dar a conhecer a decadência de uma civilização para que a mesma se reconstrua com base nos seus erros.

Em "Alemanha ano zero" Edmund é o personagem principal. Um miúdo que se vê obrigado a carregar o peso do mundo às costas e a prover ao sustento de toda a sua família. O seu pai está doente e não pode trabalhar, o seu irmão não tem documentos.

Edmund é enganado pelos que pretendem explorar a sua inocência e mal amparado pelos que lhe são mais próximos. A dada altura sugerem-lhe que mate o seu pai (afinal de contas um peso morto). Edmund pensa sobre o assunto, mas não consegue... Aguenta o máximo que pode, até poder...

Roberto Rossellini estampa na tela uma história sobre uma criança que não teve tempo para ser criança, um adulto à força... Os minutos finais de "Alemanha ano zero" são dos mais dramáticos que já foram retratados no cinema...

Pena que, nos dias que correm, ainda existam muitos Edmund's e o cinema neo-realista não tenha sido suficiente para os "exterminar"...

A finalizar, deixo-vos algumas palavras de Rosselini:

Crê-se demasiadas vezes que o neo-realismo consiste em fazer representar o papel de um desempregado por um desempregado. Pode-se escolher qualquer pessoa na rua. Eu prefiro os actores não profissionais porque eles chegam sem ideias preconcebidas. Olho um homem na vida, fixo-o na minha memória. Quando se encontra diante da câmara, ele fica completamente perdido e vai tentar «representar»; é aquilo que é preciso evitar a todo o custo. Esse homem faz gestos, sempre os mesmos; são os mesmos músculos que «trabalham»; diante da objectiva ele fica paralizado, esquece-se de si mesmo - tanto mais quanto nunca se conhece -, acredita tornar-se um ser excepcional sobre o pretexto de que o vão filmar. O meu trabalho é de o restituir à sua verdadeira natureza, de o reconstruir, de o fazer reaprender os seus gestos habituais.

Carlos Melo Ferreira, As Poéticas do Cinema


Título original: Germânia anno zero
Realização: Roberto Rossellini
Argumento: Sérgio Amidei, Roberto Rossellini e Max Kolpé
Interpretação: Edmund Moeschke, Ernst Pittschau, Ingetraud Hinze, Franz-Ottol Kruger
Direcção de Fotografia: Robert Juillard
Música: Renzo Rossellini
Montagem: Eraldo da Roma
Origem: Itália
Ano de estreia: 1948


Com este filme encerramos o Ciclo de Roberto Rossellini no Pátio de Letras. No mesmo espaço, mas aos sábados pelas 17h, acontecerá, em Março, o tributo a Eric Rohmer, com a exibição dos seus 'Contos das 4 Estações.


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são raros os argumentistas brilhantes. como este, há poucos. Sinédoque, 2ªf, 21h30, IPJ - CHARLIE KAUFMAN

Os limites do controlo
A estreia da realização do argumentista de "O Despertar da Mente" e "Queres Ser John Malkovich" é um filme desequilibrado mas perturbante sobre o terror do quotidiano.

A história do cinema está cheia de argumentistas que se decidiram a passar à realização, com resultados bastante variáveis. Charlie Kaufman, um dos mais inventivos e originais argumentistas americanos contemporâneos, não é excepção a essa regra, embora no seu caso a coisa tenha sido um pouco mais acidental: "Sinédoque, Nova Iorque" começou vida como um projecto de filme de terror para a Columbia que deveria ser realizado por Spike Jonze, o realizador-alma gémea que filmara "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado." Mas o que era suposto ser um filme de género transformou-se durante a escrita noutra coisa, muito mais "kaufmaniana" mas também muito mais inclassificável. E Jonze, retido na produção conturbada de "O Sítio das Coisas Selvagens", sugeriu ao amigo que fosse ele próprio a realizar o que, sem ser um filme de terror, é um filme sobre o terror - sobre o terror de morrer, sobre o terror de passar pela vida sem deixar marca, sobre o terror da irrelevância e do fracasso e da sensação de termos desperdiçado o nosso tempo neste mundo.


É esse terror que persegue quotidianamente o encenador teatral Caden Cotard (papel à medida do enorme Philip Seymour Hoffman), neurótico, inseguro, hipocondríaco, aprisionado num corpo em lenta decomposição mas também num casamento que se desintegra em lume brando, que recebe do nada uma bolsa de mecenato cultural e decide investi-la na criação da peça teatral para acabar com todas as peças teatrais. Um simulacro que se desenrole em tempo real, tal como a vida, num enorme armazém abandonado que se transforma numa cidade dentro da cidade à medida que a obra monumental de Caden vai ganhando corpo e estrutura - mas que, ao fim de 17 anos, continua em ensaios e ainda não foi mostrada ao público, e que se transforma progressivamente num espelho da própria vida amargurada do encenador que tanto quis ser alguém que se resumiu progressivamente ao anonimato.
Desde a compactação de 25 anos de narrativa numa espécie de único longo dia onde Caden vai envelhecendo e rejuvenescendo consoante as necessidades da história até ao vertiginoso e infindável jogo de espelhos entre a vida e a arte, passando pela casa que está permanentemente em fogo ou pela capacidade de tornar o surreal estranhamente credível, percebe-se rapidamente que nenhum outro autor contemporâneo poderia ter escrito "Sinédoque, Nova Iorque". Mas ser um argumentista de excepção não implica ser um grande realizador, e o que sobra em talento de escrita a Kaufman falta-lhe em capacidade de visualização. Kaufman não tem o talento de Spike Jonze e Michel Gondry para construir um universo visual em imagens e limita-se a ilustrar aplicada e fielmente as palavras que escreveu, deixando "Sinédoque, Nova Iorque" tombar numa espiral claustrofóbica que nenhum rasgo visual vem aligeirar. Esse lado de "teatro filmado" não deixa de ser adequado a um filme que vai muito lentamente contaminando uma realidade reconhecível com uma série de "non-sequiturs" tão absurdos quanto arrepiantes, mas não impede de sentirmos que faz aqui falta uma espécie de válvula de escape - como se Kaufman tivesse, ele próprio, deixado contagiar-se pela espiral neurótica de Caden e se mostrasse incapaz de lhe escapar, como se a sua necessidade de controlar cada um dos elementos desta meta-narrativa desdobrada esbarrasse na sua impossibilidade de o fazer constantemente. Querer ser demiurgo tem destas coisas.


O mundo é um palco
Para o espectador ou cinéfilo distraído ou quem não esteja na disposição de ir consultar um dicionário, um esclarecimento: sinédoque é uma figura de estilo literária em que se toma a parte pelo todo, ou vice-versa, o género pela espécie, etc. Com esta informação poderão compreender e decifrar aquele que, à partida, aparece como o mais estranho e bizarro filme do ano e que marca a estreia na realização de Charlie Kaufman, um dos argumentistas mais originais que surgiu em Hollywood na última década. Aliás, quem conhece os filmes que ele escreveu para outros realizadores ("Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado", de Spike Jonze, "Confissões de Uma Mente Perigosa", de George Clooney, e "O Despertar da Mente", de Michel Gondry) tem meio caminho andado para entrar no singular e complexo mundo mental de Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman), personagem central de "Sinédoque, Nova Iorque". Em todos estes filmes estamos face a uma mente que vai construindo um mundo muito próprio, que reproduz (ou quer reproduzir) o real a uma escala pessoal. De certo modo, todos eles representam desafios ao espectador, forçado, também ele, a fazer a sua própria construção mental com os elementos que o autor lhe dá. E o 'autor', neste caso, é tanto Kaufman como Cotard, que, no fim de contas, poderão ser uma e a mesma pessoa (jogo em que os seus argumentos são férteis), dado que "Sinédoque, Nova Iorque" parece ser o mais autobiográfico dos textos de Kaufman.
O processo de Kaufman neste filme não deixa de evocar o de Lars Von Trier em "Dogville", pelo menos na ideia da redução do real a uma abstracção: a cidade de Dogville reduzida a uma série de linhas desenhadas no soalho de um gigantesco palco, a cidade de Nova Iorque 'reproduzida' no interior de um armazém (e que se 'transforma' segundo a vontade de Cotard, como quando manda levantar a parede que oculta os apartamentos de um edifício). Mas enquanto o jogo cénico era evidente no filme de Trier, no de Kaufman o autor procura uma caução realista. Não é por acaso que o filme começa com Cotard dirigindo a encenação de "Morte de Um Caixeiro-Viajante", a peça de Arthur Miller, que surge como uma espécie de modelo para o projecto a que Cotard pretende dedicar-se a seguir: ser ele próprio uma espécie de Loman (a personagem central da peça de Miller) na recriação do seu próprio mundo e vida, com a vantagem de a poder acompanhar à distância, fazendo-se representar por outro (a representação deste acaba por se tornar mais real que a realidade, o que traz uma nova perturbação ao mundo mental de Cotard), e 'acompanhando-se' nos seus dramas passados (o abandono da mulher) e presentes (a doença). O problema, para o espectador, é que o tempo é outra componente do argumento manobrada pelo autor de forma aleatória, com passado e presente confundindo-se, assim como o real (?) e o imaginário.


Toda esta riqueza de significantes não será, evidentemente, benéfica para a carreira comercial do filme, num tempo em que a maioria das películas são de uma indigência intelectual confrangedora. Mas vale a pena aceitar o desafio que ele representa, com a profusão de pistas que oferece.

Manuel Cintra Ferreira, Expresso



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RIR COM MARX!



Na próxima semana não temos sessões - se é Carnaval ninguém leva a mal!



(até era uma ideia gira para um ciclo, não? Irmãos Marx?)

Paisà de Rossellini - Dia 10 - 21h30 - Pátio de Letras - Entrada Livre!

Filme em 6 episódios que narra o avanço das tropas americanas, desde o seu desembarque na Sicília, em 1943, até a libertação da Itália, em 1945. As filmagens seguiram o estilo de Roma, Cidade Aberta, usando luz natural e actores amadores. Neste igualmente memorável filme, Rossellini consegue mostrar como a guerra se deu na Itália, captando os sentimentos do povo comum, seu heroísmo, seus medos, suas histórias de amor, sua lealdade. Paisà é por alguns considerado como o supremo exemplo do neo-realismo italiano.


“Todo filme que faço me interessa por causa de uma cena particular.(...) Quando fiz Paisà, tinha em mente a última parte, com os cadáveres boiando e sendo carregados pelo rio Pó, com tabuletas e a palavra ‘Partigiano’. O rio teve esses cadáveres por meses. Muitas vezes, vários encontrados num dia.”
Roberto Rossellini

Quando Roberto Rossellini dirigiu Paisà em 1946, a Itália ainda sentia as dores do parto da libertação dos vinte anos do fascismo de Mussolini, mais uma guerra civil que durariam dois anos - enquanto as tropas aliadas ainda tentavam expulsar as tropas alemãs da península. Poucos anos antes, Rossellini, então trabalhando para o ditador, havia realizado uma trilogia de filmes enaltecendo o soldado italiano fascista. Agora, com o laço fascista longe de seu pescoço, ele realiza outra trilogia: Roma, Cidade Aberta (Roma Città Aperta, 1945), Paisà e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948).

Composto por várias histórias, Paisà mostra principalmente alguns aspectos da vida dos guerrilheiros que lutaram contra o nazi-fascismo. A imagem do cadáver daquele guerrilheiro italiano morto pelos alemães descendo o rio Pó, originalmente deixado lá pelos nazistas como um aviso, invade a tela como um rastilho de pólvora. Para muitos espectadores acostumados aos filmes de guerra, esta imagem não fala muito alto, mas para Rossellini ela é como uma materialização da Itália naquele momento da história.

Pelo menos é assim que pensa Millicent Marcus, que considera Paisà como uma reação de Rossellini a essa imagem do “cadáver da Itália” transformado em espetáculo pelos alemães (o objetivo era dar uma punição exemplar e deter a Resistência). O filme é como um resgate daquele corpo das águas do rio, para neutralizar a impotência daquele corpo. O que Paisà faz é procurar subverter o significado que o nazi-fascismo dava à palavra Partigiano – nada mais do que bandido, transgressor, fora-da-lei; alguém que desafiou as regras da autoridade nazi-fascista abdicando assim de qualquer exigência de respeito ou dignidade.

Resgatando o cadáver das águas, Dale e Cigolani, num acto de piedade, conferem dignidade ao morto – um acto que marca e define a civilização humana. Embora a sepultura não dê um nome àquele corpo, ele recebe uma identidade. Re-significando o valor negativo da palavra partigiano, ao plantar a tabuleta com este título na sepultura, os partisans redefinem radicalmente a relação entre o signo e o corpo – invertendo o termo de insulto para louvor, convertendo uma punição exemplar numa consagração.

É assim que o epitáfio na sepultura do guerrilheiro morto é estendido para os mártires italianos dos outros episódios do filme, como Carmela, que ninguém sabe que morreram. Enquanto epitáfio, inscrição numa sepultura, Paisà se encaixa na tradição memorialista de Ugo Foscolo. Em seus versos, o escritor “leu” os cemitérios enquanto signos de um engajamento heróico com a vida, forjando uma continuidade com um passado humanista e inspirando um futuro de empenho cívico – no mesmo sentido que os neo-realistas queriam estabelecer uma ligação entre os ideais da Resistência e o renascimento da Itália no pós-guerra.

Roberto Acioli de Oliveira



Título original: Paisà
Realização: Roberto Rossellini
Argumento: Sérgio Amidei, Federico Fellini, Roberto Rosselini e Rod Geiger
Interpretação: Carmela Sazio, Robert van Loon, Benjamim Emanuel, Raymond Campbell
Direcção de Fotografia: Otello Martelli
Música: Renzo Rossellini
Montagem: Eraldo da Roma
Origem: Itália
Ano de estreia: 1946
Duração: 125'



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Em vez do 3D queriamos era o Odorama

Dois dos grandes filmes estreados o ano passado: Andando de Hirokazo Kore-Eda e  O Almoço de 15 de Agosto de Gianni Di Gregorio  formam uma curioso parelha de filmes onde muito se cozinha, muito se come e muito se reflecte sobre a maneira como a sociedade actual trata os velhos.

Andando/Aruitemo Aruitemo de Hirokazu Koreeda (2008)


O Almoço de 15 de Agosto/Pranzo di ferragosto de Gianni de Gregorio (2008)

2ªf é UM GÉNIO. 2ªf é COPPOLA. 2ªf é TETRO. IPJ, 21h30.

Há um jovem que procura um irmão mais velho que anos antes se foi embora da casa paterna. Há um pai com tendências centrípetas, fazendo o mundo convergir para um ponto onde ele está. Há uma história trágica com ressonâncias de incesto e há uma jovenzinha fascinada que um pai rouba a um filho e depois se desarticula, como uma boneca a quem partiram as ligações. Há um tipo que praticamente enlouquece com a história da sua vida que não pára de escrever e mastigar - e uma mulher que o salva sem lhe matar os fantasmas. E há Coppola a dizer que todas aquelas histórias, personagens, relações, tramas e traições são verdadeiras, embora nada daquilo alguma vez tenha ocorrido.



Já estou a ver, daqui a poucos anos, os biógrafos do realizador debruçados sobre "Tetro", tentando esclarecer em cada recanto uma correspondência com a realidade, como se este fosse um filme com chaves para decifrar. Acrescento já que quero, no futuro, ler esse esforço, mas que, perante o filme, isso é o que menos me interessa. Pelo contrário, interessa-me muito verificar que esta espécie muito particular de saga familiar, em tom de melodrama embalado pelo som do bandoneón (fascinante banda sonora de Osvaldo Golijov), tem o sopro de uma ópera popular. É por isso que nenhum dos personagens é verdadeiramente realista e que a fotografia a preto-e-branco cria uma impressão de sufoco como eu não via desde "A Saudade de Veronika Voss" de Fassbinder (quem diria que já passou mais de um quarto de século!). É por isso que as ruas do bairro de La Boca, numa Buenos Aires apaixonante e onírica, parecem cenários de um palco incomensurável, como pareciam as de "Do Fundo do Coração" que eram mesmo feitas num estúdio, as de "Tetro" não. É por isso que quando Maribel Verdú dança diante de um Alden Ehrenreich que não podia estar mais embevecido, aquilo parece um momento perfeito e a gente nem se interroga sobre os cordéis de ficção que ligam a cena ao que veio antes e ao que vem depois. Não: a gente fica ali, mais enfeitiçada do que o protagonista, sem querer saber mais nada a não ser a pura beleza diante dos olhos.



E apetece que dure - infindavelmente. Como nos melhores filmes de Powell e Pressburger que Coppola explicitamente convoca, como nas grandes árias de Verdi que desejamos que não acabem nunca, "Tetro" é um objecto com o poder de retorsa sedução que só os pináculos artificialistas conseguem destilar. Tem tudo lá dentro, Eros e Thanatos, espantos, dores, bailado, a grande música, o teatro mais delirante, a tragédia, os espaços largos (como nos westerns), o melodrama da ralé, faca-e-alguidar, e a melhor arte elitista - até tem uma cena de iniciação sexual feita com uma alegria tão exuberante que apetece ser virgem outra vez. Esta massa infrene, pulsante, é caldeada pela mão de um autor que sabe tudo o que há para saber sobre cinema e que, como já nada tem a provar, faz aqui o mais livre dos seus filmes, o mais secreto, o mais barroco, um dos mais belos.

(Tenho um amigo que acha Francis Ford Coppola o maior cineasta da História do Cinema. "Tetro" - e a trilogia dos Padrinhos, e "Apocalypse Now" e "Do Fundo do Coração" - quase me fazem dar-lhe razão.)

Jorge Leitão Correia, Expresso



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mais 3 temas na nossa caixa de música...

Sugestões do nosso sócio Rogério Inácio:

1. One from the heart, de Francis Ford Coppola - Crystal Gayle e Old Boy Friends

2. Lost in Translation, de Sofia Coppola - The Jesus and Mary Chain e Just like Honey

3. The Godfather, de Francis Ford Coppola - Nino Rota e The Godfather Waltz.

Enjoy!
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Roma, Cidade Aberta - uma obra-prima. Inaugurou o Neo-Realismo. Nunca mais o cinema foi o mesmo. 4ªf, dia 3, pelas 21h30. No Pátio de Letras.

Em Roma, Cidade Aberta, é possível observar claramente os elementos característicos do neo-realismo italiano: gravações em amplos exteriores, planos sequência, participação de actores não-profissionais, a temática da resistência, da coragem, da miséria, da solidão, do sofrimento. Das vidas pequenas que por isso são as maiores. Despertar consciências. Cinema como arma. Cinema como manifesto - artístico, político e ideológico, tudo junto numa mesma atitude perante a vida: o realismo em primeiro lugar, jogando com os dois planos, o ficcional e o documental, que toda a vida deve estar na ficção pois toda a ficção deve manifestar a realidade.

Elementos que vieram influenciar cineastas do mundo inteiro em diferentes épocas.

Movimento precioso a ser preservado para muito além do século XXI.

Depois da leitura provocatória desta corrente cinematográfica, com os anteriores ciclos 'O Neo-Realismo nunca existiu - Visconti e Fellini' (acontecidos no Teatro das Figuras em Outubro e Dezembro passados), é altura de repôr a verdade histórica com 'O Neo-Realismo existiu sim!', com estes ciclos de Roberto Rossellini (este mês, dias 3, 10 e 17) e Vittorio De Sica (em Abril).



Em 1943, Rossellini ingressou na Resistência, passando a viver na clandestinidade. Dois meses após a liberação da Itália, em 1945, deu início às filmagens de Roma, Cidade Aberta, obra que, incompreendida e recusada pela crítica italiana, foi, um ano depois, aclamada pela crítica francesa e se tornou um dos marcos fundamentais do neo-realismo italiano (juntamente com Ossessione, de Luchino Visconti, Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica e Paisà, do próprio Rossellini). Contudo, Roma, Cidade Aberta e Paisà (1946) extrapolaram o contexto do cinema italiano, influenciando decisivamente o moderno cinema do pós-guerra.

Moralismo, misticismo, incoerência política, traição aos pressupostos estéticos do neo-realismo: inúmeras foram as acusações imputadas, tanto por católicos quanto por comunistas, ao conjunto da obra rosselliniana. Mas se filmes como Roma Cidade Aberta, Stromboli, Alemanha Ano Zero, Viagem à Itália e Francisco, Arauto de Deus mantêm entre si evidentes diferenças no tratamento e na escolha temática, Rossellini não foi, em nenhum deles, menos fiel a si próprio. Há, em cada um desses títulos, a busca por uma representação anti-espetacular do homem em confronto com a realidade; uma realidade que, por sua vez, não quer significar nada, mas simplesmente existe. Ou seja, não importa que estejamos diante de um vulcão em erupção, como em Stromboli, ou até mesmo de um milagre, como em Francisco, Arauto de Deus: o que vem a primeiro plano é sempre o homem diante do mistério.

É por este motivo que Roma, Cidade Aberta, quase sessenta anos após sua realização, continua a ser um dos momentos mais fortes da história do cinema. O impacto estético conseguido por Rossellini, nasce, por um lado, de uma violenta absorção da realidade, e, por outro, de uma construção dramática que foge inteiramente às regras de um cinema narrativo então hegemônico.

As condições de produção que possibilitaram Rossellini filmar Roma, Cidade Aberta foram, segundo seus próprios relatos, as mais impraticáveis. Impulsionadas por cheques sem fundo, emitidos por "mecenas" improvisados em produtores (e que escondiam a própria falência), as filmagens se arrastaram por meses, tendo como "quartel general" um picadeiro desativado sob um bordel, nas proximidades de uma redação de um jornal do exército americano. Filmando numa cidade em ruínas e assumindo dívidas cada vez maiores, Rossellini trabalhou com atores em sua maior parte desconhecidos, com exceção de Anna Magnani, àquela época uma atriz de relativo sucesso no teatro. A falta de recursos incluía até mesmo película virgem. Rossellini a conseguia comprando no mercado negro, em pequenos rolos de 20, 30 ou 50 metros, o que o forçava a rodar planos curtos e a redimensionar constantemente o roteiro. A filmagem em exteriores, por outro lado, não era apenas uma saída para a inexistência dos estúdios: correspondia à natureza fílmica da obra, quase um documentário da paisagem semi-destruída do pós-guerra. Com todas estas pré-condições e obstáculos, Roma, Cidade Aberta resultou no que mais tarde se convencionou chamar de "modelo neo-realista", muito embora, em Rossellini, o neo-realismo fosse antes uma tomada de posição moral do que um "estilo".

Dois grandes temas atravessam Roma, Cidade Aberta: a resistência, entendida não apenas como a luta travada nos domínios da guerra, mas como o próprio sentimento de luta contra toda e qualquer opressão, e o desespero, entendido aqui como toda a forma de desistência da fé no homem, e também como a sua maior perversão: o ódio e a intolerância do nazi-fascismo. Todos os personagens que se movem neste drama representam, ou melhor, pertencem à categoria dos que resistem ou dos que se entregam ao desespero. Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um esquema maniqueísta de entendimento histórico. Roma, Cidade Aberta é um discurso político que toma o partido dos que resistem, mas que também confere substância ao drama do desespero, e o repõe em termos humanísticos.

Não é à tôa que o roteiro impede que o espectador atribua de imediato a este ou aquele personagem o estatuto de "personagem principal". Não há maior ou menor heroísmo entre Manfredi (Marcello Pagliero) e Don Pietro (Aldo Fabrizi). O que os une é um princípio, se quisermos, de coragem humana, que independe das convicções ideológicas (Manfredi é um militante comunista e Don Pietro um padre). Se há um "herói" em "Roma..." ele é simplesmente o próprio ato de resistência.

No lado oposto estão o oficial nazista Bergmann (Harry Feist) e sua assistente Ingrid (Giovanna Galletti). O curioso na caracterização destes personagens é que eles reúnem tudo aquilo que a Rossellini pareceria sintetizar as fraquezas e os vícios do homem: as drogas, a covardia, a homossexualidade etc. Ambos são capazes de atrocidades como a tortura, mas recuam diante da indignação de Don Pietro. São ao mesmo tempo monstros e criaturas frágeis: um sopro poderia derrubá-los, assim como uma única frase racional pode pulverizar qualquer teoria da superioridade das raças. Bergmann e sua assistente representam a fragilidade do fascismo, que justamente por ser frágil precisa apoiar-se no massacre e nas armas, e necessita da fraqueza espiritual e do irracionalismo dos que o admitem. Caso da personagem interpretada por Maria Michi, a cantora Marina, que adere ao nazismo em troca de casacos de pele e de drogas.

Há, por fim, a personagem de Pina, vivida por Anna Magnani, que, a despeito do pouco tempo que toma nas telas, assume uma dimensão bem maior do que se poderia prever. É com Anna Magnani uma das cenas mais impactantes de Roma, Cidade Aberta, justamente a que introduz um outro tema talvez tão importante quanto a resistência e o desespero: a morte. E ela chega de forma brutal, embora não propriamente como tragédia e sim como um fato, numa chave de abordagem que terá reflexos posteriores em um filme como Viver a Vida (Vivre Sa Vie - 1962), de Jean-Luc Godard.

Assim como a morte não constitui material melodramático, Rossellini evita envolver o espectador nas "razões" psicológicas de cada personagem, deixando que eles se movam (surjam e desapareçam) sem que nós tenhamos o domínio de suas individualidades. Há um distanciamento crítico em torno das ações, de forma a deixar em relevo o "lugar" (social, histórico, ideológico) de onde cada personagem fala. Esta busca por um olhar "horizontal" na relação entre os personagens e destes com o espectador é coerente com a própria estrutura narrativa; o filme abre e fecha com planos similares (tomadas gerais da cidade de Roma), criando uma circularidade apenas aparente: se no início são as botas militares dos soldados alemães que marcham sobre a cidade ocupada, no plano final as crianças caminham para um futuro - o ano zero da reconstrução.

Luís Alberto Rocha Melo



Título original: Roma, Cità Aperta
Realização: Roberto Rossellini
Argumento: Sérgio Amidei e Federico Fellini
Interpretação: Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero, Vito Annichiarico, Nando Bruno
Direcção de Fotografia: Ubaldo Arata
Música: Renzo Rossellini
Montagem: Eraldo da Roma
Origem: Itália
Ano de estreia: 1945

Duração: 97'


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EM ABRIL FAREMOS 54 ANOS DE VIDA. A CADA UM O SEU CINEMA: ESCOLHA O SEU!!

CANTAM AS NOSSAS ALMAS! e as vossas, também?... :-)

Será assim, no IPJ:



CICLO:

2ªF DIA 5 –
Cada um o seu cinema, de Theodoros Angelopoulos, Olivier Assayas, Bille August, Jane Campion, Youssef Chahine, Kaige Chen, Michael Cimino, Ethan & Joel Coen, David Cronenberg, Jean-Pierre & Luc Dardenne, Manoel de Oliveira, Raymond Depardon, Atom Egoyan, Amos Gitai, Alejandro González Iñárritu, Hsiao-hsien Hou, Aki Kaurismäki, Abbas Kiarostami, Takeshi Kitano, Andrei Konchalovsky, Claude Lelouch, Ken Loach, David Lynch, Nanni Moretti, Roman Polanski, Raoul Ruiz, Walter Salles, Elia Suleiman, Ming-liang Tsai, Gus Van Sant, Lars von Trier, Wim Wenders, Kar Wai Wong, Yimou Zhang

2ªF DIAS 12, 19 e 26 –


A ESCOLHA É SUA!!



EXPOSIÇÃO:

DE 5 A 30 –


FOTOS DE FILMES EXIBIDOS PELO CCF - A ESCOLHA É SUA!!



Enviaremos a todos os sócios que constem da nossa mailing list electrónica mais informações sobre como participar.



Envie-nos o seu email para ccf@cineclubefaro.com!




Hurry hurry, que até ao final deste mês tem que estar tudo decidido!!




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Inscrição on line!



:-)

boa ideia, não foi? já tinhamos algo semelhante no site, mas... é mais um, e gerido directamente por nós!

pode desde já utilizar este post.
mas ficará o link para o formulário, em permanência, ali na barra lateral.

sócio, conte a um amigo!!

(e não se esqueçam que, agora, a jóia de inscrição é só de 10€ para estudantes e 15€ para os restantes casos, e a todos oferecemos 5 senhas de entrada em sessões! (valor de 5€)

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