Happy (people) Go Lucky (persons) - a grande verdade de Mike Leigh 2ªf, 21h30, IPJ.

Ainda há quem passe pela vida sem uma preocupação, sem um problema, sem uma ralação, como se vivessem no melhor dos mundos. Ainda há quem genuinamente esteja contente, passe pela vida sem uma preocupação, sem um problema, sem uma ralação, como se (para citar Voltaire) tudo corresse pelo melhor no melhor dos mundos possíveis? Exemplo A: Poppy, educadora de infância em Londres, espécie de Cândido no feminino sempre vestida de cores garridas, sacolas friques, brincos vermelhões, botas de pele de cobra. Poppy chama-se Pauline mas é como se ninguém soubesse o seu nome verdadeiro porque ninguém lhe chama outra coisa que não Poppy; nunca tem uma palavra má, nunca faz má cara para ninguém, atravessa Londres como quem saltita de nenúfar em nenúfar, quando lhe roubam a bicicleta (logo ao princípio do filme) o pior que ela consegue é dizer: "Ora bolas. Nem tive tempo de me despedir dela."

Ao fim de meia hora, começamos a pensar que isto é impossível, ninguém passa pela vida desta maneira, aparentemente irresponsável, e começamos a ter medo que Mike Leigh tenha rebentado um fusível; conhecemos o cineasta inglês pelos seus filmes extraordinariamente humanos mas razoavelmente cinzentos, olhares frontais, sem complacências nem rodriguinhos, para a vida real, mas aqui os obstáculos que deitam os outros abaixo são meros trampolins que Poppy usa para reforçar o seu optimismo brutalmente maníaco, e começamos a sentir-nos irritados com tanta boa disposição, tanta frivolidade.


Oh espectadores de pouca fé! É de Mike Leigh que estamos a falar, e mesmo que (como em qualquer realizador) a sua obra também tenha filmes menores, não valia a pena inquietarmo-nos. Duas horas depois deste início que nos deixa desconfiados, percebemos que não só Leigh não está a ficar velho, não virou sentimental nem quis fazer uma comédia descartável, como voltou a fazer a sua habitual magia. "Um Dia de Cada Vez" (o título português não tem a mesma força do original "Happy-Go- Lucky", mas não é uma má tradução) é, obviamente, um filme mais leve e colorido, rodado em ecrã panorâmico e fotografado em cores vívidas, reflexo da energia e da alegria da sua personagem principal; mas é um filme tão atento ao mundo real, às dificuldades do quotidiano, às revelações emocionais como os seus anteriores. Veja-se, por exemplo, a visita de Poppy à irmã, ou o modo como ela lida com o seu alunoproblema, e percebemos que a sua aparente cabeça no ar mascara os pés bem assentes na terra, é uma estratégia de sobrevivência que passa por aproveitar ao máximo cada dia, ver sempre o lado bom das coisas, deixar-se deslumbrar pelos pequenos nadas do quotidiano sem por isso escamotear que há um lado mais escuro e mais triste - e que um não faz sentido sem o outro. Ver o copo meio cheio em vez de meio vazio.


Já estamos habituados a que os filmes de Leigh tragam interpretações extraordinárias, "Um Dia de Cada Vez" não é excepção, revelando Sally Hawkins, que conhecíamos do "Sonho de Cassandra" de Woody Allen, que aqui ancora todo o filme com uma performance incansável vergonhosamente ignorada pelos Oscares, muito bem acompanhada pelo habitual círculo de secundários impecáveis (com destaque para o professor de condução de Eddie Marsan e para a irresistível professora de flamenco de Karina Fernandez, que eleva o que podia ser um gague caricatural a um absolutamente magnífico momento de cinema absolutamente extraordinário).
E, como no melhor Leigh, temos a sensação de não estarmos a assistir a um filme mas sim a uma câmara que filma o quotidiano, com gente de carne e osso que vive a sua vida no écrã.


Este pode não ser o melhor de todos os mundos possíveis, mas para Poppy é um mundo muito bom - e damos por nós contagiados por essa alegria.
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Jorge Mourinha, Público

De repente, o cinzento e sisudo Mike Leigh deixou-se dominar pelo sorriso colorido de Sally Hawkins. É o que parece neste delicioso «Um Dia de Cada Vez» (mais uma tradução redutora face ao original Happy-Go-Lucky), obra cujo propósito é evidenciar o poder da alegria. E até onde pode ir a boa disposição? Muito longe, contagiando tudo e todos, até quem não quer dar uma cedência à depressão e ao isolamento.


As premissas deste filme genuinamente britânico são tão simples quanto sinceras. O objectivo é apenas o de seguir os passos de Poppy, uma professora primária numa escola dos subúrbios londrinos, que optou por ser feliz. Apenas isso. Sempre afável, tem um visual muito próprio - feito de roupas exuberantes e botas de salto pontiagudo - e uma atitude descomprometida perante a vida. Às críticas de que é boazinha de mais, a protagonista responde com uma piada. Aos apupos pela sua irritante gargalhada, Poppy apenas se limita a repeti-la. E logo ao fim de poucos minutos o espectador está rendido pela singeleza das suas intenções.

Hábil na criação de personagens, o realizador de «Vera Drake» dá descanso ao pessimismo e volta a construir com particular sensibilidade a figura de Poppy. Afinal, o filme gira totalmente em seu torno. E é pelo seu olhar doce que conhecemos a irmã mais nova que está prestes a ser mãe, o aluno problemático da sua turma ou o seu instrutor de condução.

Neste ponto, o cineasta supera-se porque a evolução da relação entre a personagem de Sally Hawkins e o instrutor maníaco vivido com particular engenho por Eddie Marsan (repetente às ordens de Mike Leigh) expressa muito bem até onde podem ir duas personalidades antagónicas. O crescendo de tensão faz-se ao mesmo tempo que nos vamos afeiçoando às duas figuras, o que torna o desfecho ainda mais surpreendente.

Mas, antes, já Poppy nos mostrou que é possível ser-se feliz nos dias de hoje. Seja numa aula de flamenco que se transforma num espaço de libertação afectiva, ou numa saída até às tantas com as amigas de sempre. Poppy é luminosa, verdadeiro farol num quotidiano de pessoas apagadas.

«Um Dia de Cada Vez» chegou às salas nacionais com algum atraso e não teve a exibição merecida. Nos Óscares também foi esquecido, com excepção da justa nomeação para a estatueta dourada de Melhor Argumento Original. Devia tê-la ganho. Porque a sua história episódica, e adepta de um realismo sensível, é prodigiosa no modo como nos mostra como o mundo é para Poppy.

E falar deste filme sem sublinhar Sally Hawkins é o mesmo que falar de «Casablanca» e esquecer Paris. A jovem actriz britânica, que começou por dar nas vistas na televisão, mas que já entrou em «O Sonho de Cassandra», de Woody Allen, é uma revelação. Prodigiosa na forma como se entrega à figura que é a alma da história, foi justamente galardoada com o Urso de Prata de Melhor Actriz no Festival de Berlim e até causou surpresa ao ganhar um Globo de Ouro. Afinal, ser feliz até compensa!
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Rui Pedro Vieira, IOL Cinema

Título Original: Happy-Go-Lucky
Realização: Mike Leigh
Argumento: Mike Leigh
Interpretação: Sally Hawkins, Alexis Zegerman, Andrea Riseborough
Direcção de Fotografia: Dick Pope
Música: Gary Yershon
Montagem: Jim Clark
Origem: Reino Unido
Ano de Estreia: 2008
Duração: 118’



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