o futebol também se joga no IPJ, em jeito de lição de vida: O meu amigo Eric (Cantona) é a versão do grande Ken Loach. 2ªf, 22h.


Eis um exemplo de autoconfiança de gola arrebitada: "Eu não sou um homem, eu sou Cantona". É o que Eric Cantona diz em "Looking for Eric", mas nessa altura já tínhamos percebido que é tudo piscadela de olho.



O cinema é um jogo, como o futebol, ele gosta de jogar e veste a camisola que os outros lhe colaram. "Looking for Eric" foi uma ideia da produtora que o ex-futebolista tem com os irmãos, a Cantona Bros., que desenvolveu a história da relação entre um fã do Manchester United e o seu ídolo. Concretamente: em "Looking for Eric" Cantona é um anjo da guarda que se materializa a um fã charrado e a quem vai servir de "personal trainer" existencial.


Esse fã chama-se também Eric, chamemos-lhe pequeno Eric, e perdeu o controle da vida. Um dia desabafa com o poster do seu ídolo e o grande Eric aparece-lhe. Isto em resumo. Para isso foi necessário um realizador. E Eric conhece o cinema de Ken Loach (em Cannes assumiu-se também como um apaixonado de Pasolini, e quando alguém, em conferência de imprensa, dirigindo-se a Loach, mencionou o nome de Manoel de Oliveira, o sorriso de Eric também se iluminou...). Mas porque é que um realizador que, com uma precisão de relojoaria (e, para sermos justos, com uma secura inabalável), tem insistido em proletários em crise e dos seus dias cinzentos, se aproxima do "feel good movie"? Porque quis mudar, responderá Loach. Não se diz que faz sempre o mesmo filme? É preso por ter cão e preso por não ter... É verdade.


Mas... a presença de Cantona cria uma expectativa no espectador de "O Meu Amigo Eric": estamos sempre à espera da aparição seguinte, de ver como Loach constrói o "golpe de teatro". Isso distrai (e o filme esvai-se), de tal forma que quando a coisa acaba não sabemos que filme acabámos de ver: de Loach ou de Frank Capra? E isso sabota aquilo que costuma ser pungente no cinema do realizador: a verdade das suas personagens (e dos seus actores).
Vasco Câmara, Público


Quando me disseram que o último realizador marxista do hemisfério ocidental - Ken Loach, como se sabe ¬fizera um filme com Eric Cantona e por ele co-produzido, a minha primeira reacção foi de desalento. Seria que, cumprido o cabo dos 70 anos, Loach se deixara, enfim, seduzir pela mundaneidade e pelo futebol? Teria ele trocado a denúncia das injustiças pelos golos do Manchester United (os Reds, mas mesmo assim...), teria traficado a luta de classes pelo pontapé no hooligan (gesto que fez quase tanto pela notoriedade de Cantona quanto as jogadas geniais, pois não há maior fama que a infâmia)? Confesso que a bizarria atraiu a minha curiosidade e, se essa foi a estratégia de Loach - bingo!


"O Meu Amigo Eric" é a história de um carteiro adepto do Manchester United a quem a vida corre bastante mal. Não propriamente pelo emprego: este não é um filme sobre relações laborais. O que acontece é que o carteiro quer fazer alguma coisa para reconquistar Lily, a mulher que ama perdidamente - e a quem abandonou há muitos anos com uma filha nos braços - e não há meio de acertar com a estratégia. Ele acha mesmo que é uma refrega perdida à partida. Além disso, a segunda mulher abandonou-o, deixando dois filhos adolescentes lá em casa - e nenhum é filho de Eric. Os rapazes estão fora de controlo, a coisa mais benevolente que fazem é fumar uns charros e ver pornografia, enquanto a loiça suja se acumula na cozinha, objectos presumivelmente roubados aparecem aqui e ali, até uma betoneira, calcule-se... É neste caos, onde só as alegrias doadas pelos Reds ao povo de Manchester dão para carregar o fardo da existência, que é preciso invocar alguém que ajude a guiar a vida. Podia ser o anjo da guarda, a Senhora de Fátima, ou o Batman. Eric invoca Eric Cantona - e ele vem. E explica ao seu homónimo, naquele seu jeito de falar por aforismos, que é preciso um bocadinho de ganas e de ousadia, de imaginação e de autoconfiança. Claro, uma boa preparação física é essencial. E, sobretudo, espírito de equipa. É assim que, quando um dos enteados de Eric se mete em trabalhos com um pequeno gangster local, vai ser a malta dos correios, unida (e com máscaras de Cantona), que lhe mostra como se faz uma camisa de onze varas.



Um dos aspectos mais curiosos do filme é que, de facto, Eric Cantona não faz de Cantona. Ele interpreta antes a imagem que um homem de meia idade do povo de Manchester faz de Cantona - e nisso há já uma saborosíssima auto-ironia por parte do ex-futebolista, a sagacidade de dar a ver uma distância entre imagem-de-marca e realidade, permanecendo esta, está bom de ver, privada.


Ken Loach e o seu fiel argumentista Paul Laverty (há dez filmes que trabalham juntos) conseguem tecer uma ficção tonificante e surpreendente, onde há uma aguda atenção social, uma comédia romântica e um genuíno amor pelo futebol - daquele que faz olhar uma jogada de Cantona como um ballet ao sol. E amor pelas pessoas, o que é um pouco mais tocante: veja-se o retrato daquela família esquartejada por erros imbecis (que Loach praticamente nos diz que são co-naturais à condição humana), os assomos de solidariedade, os arranques de energia que não chegam para mudar o mundo, mas vão arranjando uma coisa aqui, outra ali. E, com um bocadinho de sorte, pode ser até que apareçam uns velhos sapatos de camurça azul que alguém que nos ama não conseguiu deitar fora.
Jorge Leitão Ramos, Expresso


Já há bastante tempo que Ken Loach e o seu argumentista Paul Laverty queriam fazer um filme sobre futebol (Loach torce pelo obscuro Bath City, Laverty é "doente" do Celtic).Aconteceu então que Eric Cantona, a antiga estrela do Manchester United para a qual o futebol não tem segredos, que fundou uma produtora de cinema e gosta dos filmes de Loach, contactou o realizador com uma proposta. Fazer um filme baseado num caso real: a amizade que criou com um fã do Manchester e seu fervoroso admirador.


Loach e Laverty sentiram-se muito lisonjeados, mas não gos-taram lá muito da sugestão de "Deus" (nome pelo qual Cantona ainda hoje é conhecido entre os seguidores dos Red Devils). E propuseram-lhe outra coisa: um filme em que Cantona se interpretasse a si próprio, sim, mas onde o ás do futebol saísse em auxílio de um seu homónimo, um humilde carteiro de Manchester com a vida pessoal e familiar feita num oito e à beira do desespero.


Assim nasceu O Meu Amigo Eric no qual o ex--músico dos The Fall Steve Evets personifica Eric Bishop, que perdeu por sua culpa o amor da sua vida, é desrespeitado pelos dois filhos adolescentes, alvo da piedade de amigos e colega e ganhou o hábito de desabafar para o enorme poster do seu ídolo Eric Cantona que tem colado numa parede da sua escura e encardida casa.
Até ao dia em que Cantona aparece, calma e naturalmente, a Bishop e, puxando dos aforismos enigmáticos com os quais punha a cabeça em água aos jornalistas britânicos, começa a ajudar o seu anónimo homónimo a recuperar a confiança e a ganhar determinação para mudar as coisas e endireitar a vida.



Uma das condições que Loach pôs a Eric Cantona para fazer O Meu Amigo Eric foi a de que o filme tinha de brincar com a sua imagem. Cantona não só concordou como também colaborou na brincadeira.E eis o grande goleador do Manchester United a aconselhar o carteiro com frases crípticas e vagamente filosofantes em francês, a partilhar com ele uma garrafinha de vinho tinto e umas fumaças num charro, a fazê-lo puxar duramente pelo físico ao ar livre e a tocar A Marselhesa (assim para o desafinado) numa trompete nas escadas do prédio.


Desde 1995 que Eric Cantona entra em filmes franceses e ingleses, tendo-se estreado no teatro no mês passado, em Paris, na peça Face au Paradis, encenada pela mulher, a actriz Rachida Brakni. Mas esta é a primeira vez que Cantona faz dele próprio, glosando (e gozando) a sua persona pública, que Ken Loach utiliza para dar um exemplo de espírito de equipa e entreajuda, valores que o futebol "deve cultivar e encorajar", segundo o autor de O Meu Nome É Joe.


Loach, um socialista antediluviano e realizador "social-realista" até ao tutano, não dá ponto sem nó nem quando faz uma comédia (raridade!) com um elemento mágico-fantástico. Por isso, O Meu Amigo Eric pode ser muito mais risonho e descontraído do que é habitual no seu cinema, e pode ter Eric Cantona a fazer de visão/fantasma/fruto da imaginação de um fã. Mas o humor e a fantasia estão ao serviço do realismo de bairro de habitações sociais, da simpatia pela working class e do sermão sobre a solidariedade tão ao gosto do realizador.


Só que no presente contexto, não vem daí nenhum mal ao mundo nem ao cinema. E Cantona, anjo-da-guarda informal, tem um piadão a debitar sabedoria de vintém e a soprar numa trompete.
Eurico de Barros, dn.sapo.pt


Título Original: Looking For Eric
Realização: Ken Loach
Argumento: Paul Laverty
Interpretação: Steve Evets, Eric Cantona, Stephanie Bishop, Gerard Kearns, Stefan Gumbs,
Lucy-Jo Hudson, Cole Williams, Dylan Williams, Matthew McNulty, Laura Ainsworth, Max Beesley, Kelly Bowland
Direcção de Fotografia: Barry Ackroyd
Música:
Montagem: Mark Wright
Origem: Reino Unido/ França/ Itália/ Bélgica/ Espanha
Ano de Estreia: 2009
Duração: 116’




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