«Bela personagem, belo filme». Documentário sobre Bobby Cassidy, de Bruno Almeida. 2ªf, dia 5, 22h, IPJ.

Construído a partir de uma longa entrevista com o boxeur e de material de arquivo dos seus combates nos anos 60 e 70, este documentário dá-nos um olhar humanista sobre o universo do boxe, retratando a vida de um pugilista que desde criança aprendeu a odiar até se tornar num pai que aprendeu a amar.

Boxeur profissional durante 18 anos, Bobby Cassidy participou em mais de 80 combates contra grandes pugilistas como Luis Rodriguez, Sandro Mazzinghi, Rodrigo Valdez, Gypsy Joe Harris, Tom “The Bomb” Bethea e Jimmy Dupree. Na sua longa carreira, conta 60 vitórias, 16 derrotas, 3 empates, 1 indecisão e 27 KO’s. Embora nunca tenha conquistado o título, Bobby Cassidy, um pugilista canhoto de pulso forte famoso pelo seu contra-ataque, foi considerado em 1976, pela World Boxing Comission como o nº 1 da divisão de meio-pesados. Ao reformar-se nos anos 80 foi ainda treinador de dois campeões do mundo, Donny Lalonde e Lonnie Bradley. Em 2002 foi admitido no New Jersey Boxing Hall of Fame.

Originário de uma família Irlandesa dos subúrbios nova-iorquinos de Levittown, em Long Island, Bobby Cassidy nasceu em 1944 e teve uma vida complexa e violenta, tanto dentro como fora do ringue. Comum nas histórias de tantos pugilistas profissionais, Bobby Cassidy trabalhou para o crime organizado como colector de dívidas e bookmaker. As suas actividades na máfia acabaram por o levar à prisão e mais tarde tornou-se actor profissional tendo participado em pequenos papéis em filmes como “Rocky” e “Uncle Joe Shannon”. Foi ainda treinador pessoal de Robert De Niro nos anos 90. No meio de uma vida dura e conturbada, Bobby Cassidy conseguiu ser um pai admirável criando sozinho os seus dois filhos Bobby Jr. e Chris Cassidy.


Bruno de Almeida oferece a um pugilista o microfone da sua vida. Bela personagem, belo filme.
O boxe e o cinema ligam bem, e (leitores mais jovens:) nem estamos a falar do "Touro Enraivecido": já ligavam muito antes dele. Há qualquer coisa nos boxeurs que faz deles boas personagens de cinema, há qualquer coisa na vida de boxeur - e num combate de boxe, situação despida e essencial: um homem sozinho contra outro homem sozinho - que propicia ressonâncias que vão para além do desporto. Um ringue é um palco: está ali em acção (está ali em narração) uma tragédia qualquer. Resumidamente, é isto que o cinema vê quando vê o boxe.

Resumidamente, foi isto que Bruno de Almeida viu quando viu Bobby Cassidy. Ex-pugilista, activo entre os anos 60 e 1980. Nunca chegou a ser campeão mundial - "e ao fim de tantos anos isso ainda me incomoda". Ganhou e perdeu, deu e levou as vezes suficientes para conseguir explicar qual é a sensação (física e psicológica) de se estar à beira de um "knockout", e para dizer que quem se incomoda com os danos físicos infligidos ao adversário "não pode vir para esta vida". Cassidy é o contrário do estereótipo que faz dos boxeurs indivíduos abrutalhados e semi-bestiais: é articulado, discorre sobre o boxe oscilando sempre entre a técnica e a filosofia, entre o desporto e o modo de vida. Com entusiasmo e com desencanto, mas sem "bullshit" nenhum, nem floreados nem poesia barata. A sua tragédia, não precisa que lha expliquem e é ele que a conta: a infância difícil, a mãe alcoólica, o padrasto violento. Sem raiva, sem qualquer coisa de fundamental a jogar-se a cada soco, um pugilista não tem hipóteses.

Cassidy tem agora sessenta e tal anos e - fora a mossa que o facto de não ter sido campeão mundial ainda lhe provoca na auto-estima - está em paz consigo e com a sua vida. Bruno de Almeida deu-lhe a oportunidade de contar a sua autobiografia. "Bobby Cassidy, Counterpuncher" é isso: a história de uma vida contada na primeira pessoa. Em casa com os filhos, ou no ginásio, Cassidy narra episódios, relembra combates (ao pormenor), descreve pensamentos. Às vezes epifanias: abandonou o boxe num impulso, certa vez que passou em Times Square e o grande relógio electrónico marcava quatro da tarde (sem mais explicação, como se isto fosse evidente: quatro da tarde no relógio de Times Square, hora de deixar o boxe). Times Square: a história de Bobby também é uma "história de Nova Iorque", e para Bruno de Almeida, que já foi (e se calhar ainda é) "novaiorquino", isto conta. Os anos 60, os anos 70, os anos 80, os submundos do boxe, das apostas, dos "nightclubs", do tráfico de droga e da máfia, como se a vida de Bobby Cassidy fosse um filme de Martin Scorsese, de Spike Lee, de James Gray.

Bruno de Almeida chegou primeiro do que eles, e não precisou de fantasiar nem reconstituir nada (para "sabor da época", lá estão as fotografias e os registos filmados dos combates), apenas de oferecer a Cassidy um microfone para o monólogo da sua vida. Dividido em dez assaltos (numerados pela montagem), como se isto fosse um derradeiro combate de boxe. Não há adversário à vista, e nem o realizador nem os espectadores se vêem nesse papel. Mas não quer dizer que não haja adversário: como Cassidy bem sabe, um pugilista luta, em primeiro lugar, consigo próprio. O resto é espectáculo. (Bela personagem, belo filme).
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Luís Miguel Oliveira, Público

Bobby Cassidy, pugilista irlandês do subúrbio nova-iorquino de Levittown, é daquelas personagens que parece saída de uma certa literatura ou de um certo cinema americano incisivo e realista, que exala a poesia que muitos vêem no homem comum ou que leva outros a definir o boxe como "a doce ciência". Podia ser uma personagem de cinema - o Terry Malloy de Brando em "Há Lodo no Cais" aos 60 anos - e é nesse limbo duma vida real que parece saída das páginas de um guião ou de um livro, mistura de "Toiro Enraivecido" e "Os Sopranos" (com um pugilista traumatizado pela sua falta de educação às mãos de uma mãe alcoólica e de um padrasto violento, que deu aos dois filhos a infância feliz que ele nunca teve) que Bruno de Almeida instala o seu documentário, organizado em dez assaltos e pontuado por imagens de época cedidas pela família. E rapidamente se percebe que o que atraiu Almeida foi a possibilidade de ter Cassidy, contador de histórias nato, a discorrer em frente à câmara, evocando a família, o amor do boxe, os episódios caricatos, os mentores, as experiências mafiosas e as aulas de teatro. "Bobby Cassidy, Counterpuncher" é honesto nesse fascínio por um personagem que invoca uma certa cinefilia dos anos 1970, equivale a uma tarde bem passada com um grande contador de histórias - mas não levamos para fora dele mais do que a sensação de visita a um vencido da vida que a ganhou de maneiras que só o tempo se encarrega de explicar.
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Jorge Mourinha, Público


"Bobby Cassidy" é muito bonito por várias razões. Por exemplo: sendo um documentário sobre um pugilista americano, incita a nossa imaginação a ver Nova Iorque e o cinema americano dos anos 70. Foi isso que levámos para o ringue...

Atirámo-nos para o ringue com "O Toiro Enraivecido". Há qualquer coisa de ritual sacrificial nisto, mas Bruno de Almeida não protestou. Conhece os combates de cor, sabe, claro, que o filme de Martin Scorsese é a preto e branco por sugestão de um atleta da cor, Michael Powell... Trata por tu as modulações da agressividade entre as personagens de Robert De Niro e Joe Pesci, irmãos no filme. É capaz de deslizar com o "fast forward" até ao "frame" em que o ciúme toma conta de Jake La Motta/De Niro, do "Did you fuck my wife?" disparado a Pesci ao "did you fuck my brother?" com que cerca a mulher, Vicky (Cathy Moriarty). "Adoro estas cenas, mais do que as dos combates de boxe", diz.

E faz-nos descobrir, por entre a floresta sonora que é "O Toiro Enraivecido", os sons de elefantes que Frank E. Warner, o "sound effects supervising editor", ali meteu e que "não têm a ver com nada" - e nós fazêmo-lo descobrir, junto ao som dos elefantes, um pedaço de uma canção de Marilyn, que também não tem a ver com nada. Alguém duvida que "O Toiro Enraivecido" é um cume orgiástico atingido debaixo da influência do génio? Há aquele momento em que Jake La Motta se oferece a Sugar Ray Robinson, "Hey Ray, you've never got me down...", e Sugar Ray faz um banquete...

"Como é que se faz um filme de boxe a seguir a este?", pergunta o realizador de "Bobby Cassidy: Counterpuncher", história de um ex-pugilista americano, activo entre os anos 60 e 1980, contada pelo corpo do próprio. É uma boa pergunta...

Mas Bruno aceitou o ritual: começar esta "jukebox" de filmes com Scorsese e o filme de que ele quis fugir. Explica porque é que não quis pensar em "O Toiro Enraivecido": o seu, diz, é menos um filme sobre boxe do que um filme sobre a relação entre um pai, Bobby Cassidy, e os dois filhos, pelos quais ele subiu ao ringue ao longo dos anos. "O meu pai morreu no ano passado. Acho que acabei este filme para lidar com a morte dele", confessa o realizador.

Mais diferenças... "O Jake [La Motta] foi um campeão, o Bobby nunca foi; o Jake tinha um lado sacrificial, o Bobby nunca teve. O que me interessou foi esse lado de 'journeymen' desses pugilistas do final dos anos 70, que semana a semana faziam o seu serviço". A figura, concorda, foi entretanto substituída pelo equivalente ao "blockbuster" cinematográfico: o pugilista programado para ganhar.

"Interessam-me os mundos fechados, do pugilista, do toureiro ou do fadista, mundos com códigos... Um tipo que passa a vida a levar porrada como é que vive, como é que ama?" - na mesa da sala de Bruno estão dois livros: "On Boxing", de Joyce Carol Oates, de onde tirou a disposição da autora para olhar para os pugilistas como quem contempla os limites do humano, e "The Fight", de Norman Mailer, sobre o combate entre Muhammad Ali e George Foreman no Zaire.


Explicamos porque é que começámos este "zapping" por Scorsese. Por causa do monólogo de Bobby Cassidy, repetindo o monólogo de "Requiem for a Heavyweight" (1962), de Ralph Nelson, e do monólogo de Jake La Motta, de "O Toiro Enraivecido", cruzando Shakespeare com o Brando de "Há Lodo no Cais". Por causa dos pugilistas como actores, como "performers", e obcecados pelos actores e pelos "performers". "É verdade, alguém já me disse que quando Bobby Cassidy, no meu filme, está a contar histórias reais é mais teatral do que quando está a representar o monólogo. O boxe é uma representação", confirma.

Isso é das coisas mais bonitas de "Bobby Cassidy": a disposição para oferecer o ringue ao corpo do pugilista, para deixá-lo representar(-se). Isso e a maneira como, com a subtil inserção de fotos, acaba por fazer um documentário sobre a Nova Iorque dos anos 70. E sobre o cinema dessa década - um documentário imaginado, está sobretudo na nossa memória de espectadores.
Passamos a "Os Incorruptíveis contra a Droga", de William Friedkin, por causa dos viadutos do metro, por causa de uma cidade que já desapareceu, e porque Bobby é parecido com Gene Hackman. Mas, responde Bruno, melhor seria pegar em Sidney Lumet, no seu "Serpico" ou no seu "Dia de Cão". "Cresci com este cinema; os meus pais eram membros da Comissão de Classificação de Espectáculos, e por isso entre os 11 e os 14 anos vi esses filmes". E Bruno faz entrar Harry Nilsson e o nostálgico e devastador "Everybody's Talkin" de "O Cowboy da Meia-Noite", de John Schlesinger.

"É dos meus favoritos", extasia-se (para acrescentar que mesmo assim não encontra em Dustin Hoffman a "mesma verdade" que encontra em De Niro ou em Pacino). Extasia-se mesmo, Bruno. Com o olhar exterior deste inglês, Schlesinger, fascinando pela América: "É quase o filme perfeito a representar aquela época... Olha o que se passa aqui...". E o que se passa ali é um compacto de "flashbacks" e "flashforwards" com que - estávamos em pleno "mainstream" dos anos 70 (o "mainstream" já não é mesmo o que era!) - Schlesinger experimentava, introduzia uma dimensão alucinatória no realismo. E já que estamos aí...

"Taxi Driver". "Eu gosto mais do 'Taxi Driver' do que do 'Toiro Enraivecido'.
A minha Nova Iorque [Bruno viveu na cidade entre 1985 e 2006] é ainda a do 'Taxi Driver'". A solidão... "É talvez o filme mais nova-iorquino, estamos mais sozinhos em Nova Iorque do que noutra cidade qualquer".

A deambulação inicial, o rosto de De Niro, a música de Bernard Herrmann, as cores ("isto é lindo, isto vem do Mario Bava") são um deslize irreversível. Bruno também trata por tu o filme. "A [montadora] Marcia Lucas não gostava destes cortes [três vezes repetem-se, cadência musical marcada, os planos dos sinais luminosos de trânsito], mas são do Scorsese. É um filme influenciado pelo Godard. E gosto mais do De Niro aqui do que no 'Toiro Enraivecido', porque é menos representação, há um lado neste filme quase documental, antropológico. Lembro-me de ter chegado a Nova Iorque [em 1985] e de sentir a verdade do 'Taxi Driver'".

Solidão por solidão... "O Samurai", de Jean-Pierre Melville. "Se fizesse uma sessão dupla, seria com o 'Taxi Driver' e com 'O Samurai'. Está entre os meus dez filmes favoritos. Costumo mostrar este filme aos meus actores. Pela economia. Isto é só cinema. Não tem a ver com mais nada. O De Niro e o Pacino não conseguiam fazer o que faz aqui o Alain Delon, que nem era grande actor. Não conseguiriam aguentar o lado completamente artificial de tudo isto" - no ecrã, Delon e o seu chapéu, gesto que se ritualiza ao longo da obra de Melville. "Isto é um gajo francês influenciado pelos filmes americanos que depois vai influenciar os americanos!".

Este tráfico é a história do cinema americano e do cinema europeu. E este tráfego, entre realismo e artificialismo, é o fascínio de Bruno. "Adorava fazer um filme completamente plástico". Vejam: "Os Chapéus de Chuva de Cherburgo", de Jacques Demy, logo no genérico. "Incrível... os franceses conseguem sempre sair-se bem". "Os Sapatos Vermelhos", de Michael Powell: "Não há este desplante hoje. Acho que é mais relevante do que o Hitchcock. É um cineasta que influenciou todos os outros. Olha as cores do 'Querelle', do Fassbinder... E o 'New York, New York' [Scorsese] é todo tirado daqui".

"New York, New York"... "Os melhores movimentos de câmara de Scorsese estão neste filme". Que junta o artifício total à saturação cassavetesiana do improviso. O que fascina Bruno. Faz-nos parar num plano que, no seu artificialismo, é também um pedaço de documentário: "O Scorsese foi criticado por ter demorado alguns segundos sobre os olhos da Liza Minnelli ao espelho neste plano. Ele estava completamente apaixonado por ela".

Trânsito final, para algo só aparentemente diferente porque vive da mesma oscilação entre o documento e a voracidade da construção: "A Ultrapassagem", Dino Risi. "O meu primeiro filme ['On the Run'] é influenciado por este, por causa da relação entre as personagens, a história de opostos: um ingénuo que começa a viver [Jean-Louis Trintignant] e um extrovertido" que o perverte [Vittorio Gassman]. "É um 'buddy movie', é um 'road movie', não se percebe bem, que influenciou o Scorsese na utilização da música popular na banda sonora. É um filme sobre a perda da inocência".

Depois disto ainda tentámos Quentin Tarantino. E a resposta veio em inglês: "Smart movies for supermarket audiences".
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Vasco Câmara, Público

À partida, parece modesta a ambição deste “Countepuncher “; fixar o irish Bobby Cassidy (o seu nome de guerra) em entrevista., misturar material gravado com material de arquivo e daí extrair um documentário. Mais um igual a tantos? Nem por isso. Alguma coisa de natureza afectiva tocou. Bruno de Almeida, e ao ver o filme percebemos que coisa é: Cassidy, pugilista em contra-ataque (a palavra counterpuncher vem daí), quase campeão do mundo, mais tarde cobrador de apostas, mafioso encartado e, por fim, treinador respeitado no meio, é uma “senhora figura”. Um actor em potência. E é espantosa a sua capacidade de expressão, o seu one man show. Cassidy não é figura heróica nem trágica. Não foi campeão, não caiu nas ruas da amargura, não tem vinganças para ajustar nem dívidas a pagar. Fala de si próprio como uma personagem de ficção. A ficção de alguém que ficou a meio de qualquer coisa que desmistifica e que palpita de vida, de uma forma profundamente humana e comovente.
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Francisco Ferreira, Expresso


ENTREVISTAS A BRUNO DE ALMEIDA

O autor daquele que é porventura o documentário português mais visto em todo o mundo, The Art of Amália, está de regresso ao género, com um filme... americano. Em Bobby Cassidy, the Counterpuncher, Bruno de Almeida, mostrar-nos a mais fascinante das personagens: um pugilista aposentado que já fez de tudo na vida, incluindo jogar boxe. Uma história humana, sensível e do mais rico microcosmos, que chega aos cinemas em Portugal, no dia 18, depois de ter passado pelo DocLisboa.

Como chegou a Bobby Cassidy?
Em 2001, comecei a preparar um documentário, com o título provisórioAfter theFight, sobre boxeurs reformados nos Estados Unidos. A maneira como têm que lidar com o punk drunk brunk que é uma doença em que começam a perder a memória, por levarem muitas pancadas no cérebro. E também pela questão de serem os únicos desportistas sem apoio nenhum. Descobrimos que nos Estados Unidos existe, em cada cidade, uma associação chamada Ring, onde eles se encontram e se entreajudam, com uma camaradagem incrível.

Isso ainda é mais incrível se pensarmos que eles andam a dar murros na cara uns dos outros anos a fio...
É verdade, existe até uma certa rivalidade entre bairros. Foi assim que conheci o filho, o Booby Cassidy Jr, que me contou histórias do pai. Apercebi-me então que era a essência do que eu estava à procura. Surgiram depois uma série de coincidências, como o facto de o Bobby estar a treinar o Robert De Niro que é meu amigo.

Este interesse pelo boxe já vem de trás. Em Love Birds apareciam cenas de pugilismo com o Fernando Lopes como treinador (numa homenagem a Belarmino)...
Sim, claro.. Mas eu não sabia muito sobre boxe, nem logo ao desporto em geral. O que mais me interessou no boxe foram as personagens. Interessam-me coisas com as regras fechadas, os seus próprios códigos de vida. E o boxe é um bocado isso, tal como acontece no fado. Sempre me gostei de filmes sobre boxe, embora não seja fã do desporto propriamente dito.

Não teve a oportunidade filmar os acontecimentos da vida de Bobby Cassady porque não estava lá, foi por isso teve de se socorrer a um esquema formal bastante simples e minimal?
Passei um ano e tal com ele e filmei-o muito. Mas depois achei que a complexidade do tema ficava a ganhar com uma simplicidade formal do filme. Por isso decidi construi-lo à volta da primeira entrevista que fiz, porque me pareceu mais espontânea, e tinha todos os elementos de que precisava. A primeira versão do filme era muito crua, algo tão cru como um combate de boxe. Era só a entrevista, sem nenhuma sequência de boxe. Foi uma tentativa arriscada de fazer um filme inteiro praticamente só com um close-up. Mostrei-o ao Fernando Lopes que sugeriu que eu usasse sequências de boxe e sons. Fui então à procura de filmes para ilustrar. E encontrei coisas maravilhosas, porque na altura, nos anos 60 e 70, tudo era filmado em película. O filme tomou assim outra dimensão. O Miguel Martins fez um trabalho extraordinário na busca de sons.

No meio disto, teve a felicidade de ter um contador de histórias nato...
Fabuloso. É tão incrível que quase bastava ouvi-lo. Mas as imagens ajudam, porque dá para ver como ele era um lutador extraordinário. Ele quase nunca leva um soco. Em 80 combates teve apenas 16 derrotas, o que é notável. Isto apesar de nunca ter conseguido chegar a campeão.

Essa é a pedra no sapato...
Mas é isso que dá a contradição da sua própria vida. Se ele tivesse sido campeão a história seria outra. Ele é o que os americanos chamam de journey man, vai semana a semana aqui e ali para ganhar a vida.

E é verdade que ele treinou o Robert De Niro? Porque não aborda no filme?
Achei que não tinha grande interesse e que não era muito oportuno explorar a sua amizade. Ele treinou o De Niro muito depois do Touro Enraivecido.

Pensa voltar ao boxe?
Sim, estou à espera de uma ideia de montagem para terminar aquele filme sobre os boxistas reformados, porque são histórias fascinantes, não só de homens mas também de mulheres. E tenho um projecto de ficção à volta da história do Bobby Cassidy.

Sei que agora tem um projecto maior, em que vai contar a história do General Humberto Delgado...
É sobre a Operação Outono, que é o nome de código da operação que levou ao assassinato de Humberto Delgado. É um filme histórico, passado em cinco países que vai desde 1965 a 1981. Estamos agora a iniciar a preparação, para filmar em Dezembro. É um filme muito complexo, maior do que qualquer outro que tenha feito. Tem de ser tudo muito bem analisado, porque são factos reais. É algo completamente diferente, embora haja semelhanças entre o Humberto Delgado e o Bobby Cassidy.

Manuel Halpern, Visão



Como é que um tipo que não gosta de boxe se vê a dirigir um documentário sobre um boxeur?
Eu nunca segui o boxe, mas quando conheci as histórias do Bobby Cassidy e depois o vi a falar, percebi que tinha ali um filme, com uma história muito humana e comovente.

E como é que chegaste a ele?
O Nick Sandow tinha sido boxeur em jovem e sabe muito da parte técnica. E em 2001, por uma razão ou outra, ficámos os dois interessados em pugilistas reformados e começámos a fazer um documentário, que nunca acabei mas que hei-de acabar, e que se chamava After the Fights. O que nos interessava era explorar o que acontecia aos boxeurs quando se reformam aos 35, 36 anos, e depois têm de arranjar outras formas de ganhar a vida e ao mesmo tempo lidar com o punch drunk, uma doença que a maioria deles acaba por ter por levar muita pancada na cabeça. Depois o Nick Cassidy tornou-se consultor e começou a contar-me histórias do pai, o Bobby Cassidy, que se revelou um tipo tão eloquente que preenchia um filme por si só, como veio acontecer.

O papel da mãe dos filhos na vida dele e o trabalho dele para a máfia não surgem muito focados no filme. Foi intencional?
Quanto à mulher, mãe dos filhos, por alguma razão que nunca me revelaram, ela não fez parte da vida deles. Ele criou os filhos sozinho, sempre os adorou, mas nenhum deles fala dela, ela não existe para eles. Não quis ir muito por aí. A outra questão é mais delicada: ele trabalhou para a máfia como o homem das colectas e contou muitas outras histórias da máfia, que eu retirei. Primeiro porque mencionava muitos nomes de pessoas vivas, e depois porque não achei que tivesse particular relevância.

O filme foi feito com orçamento reduzidíssimo...
Não teve orçamento, praticamente. Foi feito a pouco e pouco, durante oito anos, ao mesmo tempo em que eu fui trabalhando noutras coisas. A primeira entrevista foi feita em 2002 e a última cena, quando ele recebe o troféu, é de 2004. Eu trabalho muito assim, vou filmando e quando tenho tempo vou montando. E eu gosto de trabalhar sozinho, a verdade é essa. Agarro na minha câmara, sou eu a filmar, portanto não há despesas, só de tempo e de cassetes. Mas este ritmo permite-me pensar nas coisas. Por exemplo, este filme surgiu numa altura em que o meu pai morreu, e acabei por trabalhá-lo como forma de fazer o luto, o processo foi importante para eu olhar para mim próprio, senti que era a altura ideal para fazer o filme.

O projecto Operação Outono, um filme de ficção sobre Humberto Delgado, já será o oposto deste.
Sim, é um filme de grande orçamento, a maior produção da minha carreira. Mas também tenho um projecto mais modesto chamado Slides da Cidade Branca, com o Fernando Lopes a contar histórias sobre Lisboa.
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Luís Salvado, Timeout


'Bobby' Cassidy, Counterpuncher', o novo documentário de Bruno de Almeida, estreia-se amanhã. A história de um temível pugilista nova-iorquino, que foi cobrador da Mafia, actor, treinador e pai extremoso de dois filhos, contada pelo próprio.

Como é que descobriu o Bobby Cassidy? Já gostava de boxe e quis contar a história dele, ou foi por puro acaso?
Eu não me interesso particularmente por boxe, nem por desporto em geral. Mas em 2001 estive a fazer um documentário para cinema - que ainda não acabei- sobre pugilistas americanos reformados em Nova Iorque. Estava a trabalhar com o Nick Sandow, um colaborador meu que foi boxeur em miúdo e tinha alguma ligação ao meio. Ele tinha conhecido uns tipos e sabido de um clube onde os pugilistas reformados de Nova Iorque se encontravam uma vez por mês, o Ring Aid. Esse meu documentário lida com o facto deles sofrerem todos de punch-drunk, ou "pugilistic dementia", uma doença que advém de se levar muita pancada na cabeça. E de não terem nenhum apoio social. É o único desporto em que tal sucede nos EUA.

É um universo muito à margem.
Sim. Combatem durante 20 anos e depois desaparecem e são abandonados pelos managers, com a excepção dos grandes, como o Ali, o Tyson ou o George Foreman. Eles são muito desconfiados, mas começámos a frequentar essas reuniões e acabámos por ser aceites e por fazer parte da prata da casa. E foi no Ring Aid de Nova Iorque que conheci o Bobby Cassidy Jr., que é filho do Bobby Cassidy e um dos mais conhecidos jornalistas de boxe do diário Newsday e consultor da HBO, um tipo importante no meio, que ficou também nosso consultor no filme.

E onde entra o Bobby Cassidy pai nisso tudo?
Nós tínhamos já feito muitas entrevistas aos pugilistas reformados e a certa altura o Bobby Cassidy Jr. disse que devíamos conhecer o pai. Pôs-se a contar a história dele, que já ia para além do boxe e eu e o Nick achámos que havia qualquer coisa de extraordinário na vida daquele tipo, embora à partida não o víssemos como tema de um filme. Fizemos-lhe uma entrevista, que está quase toda no filme, e até pensámos a história dele poderia dar um bom argumento de ficção. Chegámos a escrever um primeiro guião, que seria interpretado pelo Nick. Durante um ano e meio saímos com o Bobby, ouvimos-lhe as histórias, fiz-lhe mais entrevistas e filmei as partes do treino Depois, estive envolvido noutros projectos, voltei a este e acabei por não usar as outras entrevistas do Bobby porque a primeira era tão espontânea. Como já disse, isto não foi pensado como um filme, mas cada vez que olhava para a história dele, via lá tudo.

Viu que o Bobby Cassidy era representativo de todos os pugilistas, era um símbolo?
Era isso mesmo. E o Bobby também é metafórico, porque além de representar os pugilistas em geral, ele tem a ver com todos nós.

A história dele não é a história de um perdedor, porque fartou-se de ganhar combates e quase que chegou ao topo.
O Bobby não é um loser, não é um perdedor. Não é um Belarmino.

E gosta de combater, não é um amargurado do boxe.
O Bobby entrou no boxe através da luta de rua. Gostava de bater e levou pouca pancada, porque é um counterpuncher, um esquerdino, tipo furacão. E diz claramente que o boxe é assim mesmo. Ele combateu com tipos muito importantes, teve muitas vitórias, quase que chegou ao topo da modalidade, lutou no Madison Square Garden, abriu para o Muhammad Ali. E é uma personagem muito americana, muito típica de uma época. Estamos a falar do boxe nos anos 60 e 70, onde cada bairro working class de Nova Iorque tinha o seu clube. É um bocado como se Alfama fosse lutar contra a Madragoa. E ainda temos aquele lado dele ter trabalhado para a Mafia como cobrador de dívidas. Mas aqueles tipos que andaram à pancada uns com os outros durante anos, entreajudam-se de uma forma espantosa, fazem peditórios para pagarem o médico ou o dentista uns aos outros. O boxe tem isso de interessante. Por um lado, é crueza e violência e pelo outro, é muito afectivo, de emoções, solidário.

Esse lado humano está também presente na relação do Bobby Cassidy com os filhos.
Temos ali um pugilista que trabalhou para a Mafia mas que é também um pai extremoso com uma enorme capacidade para amar. Ele tem essa dualidade, é um tipo que esteve metido no submundo a sério e ao mesmo tempo levava os miúdos à escola e telefonava da cadeia para se assegurar que eles iam aos treinos. É um pai modelar. E proibiu os filhos de se dedicarem ao boxe. Podiam praticar todos os desportos, menos boxe. Eles iam com ele ver os combates, assistiam aos do pai e gostam de boxe, mas não podiam praticá-lo. É também assim que o Bobby Cassidy demonstra o seu amor pelos filhos
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Eurico de Barros, Diário de Notícias



Título Original: Bobby Cassidy, Counterpuncher
Realização: Bruno de Almeida
Interpretação: Bobby Cassidy, Bobby Cassidy Jr.,Chris Cassidy, Nick Sandow
Direcção de Fotografia: Bruno de Almeida
Montagem: Bruno de Almeida
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 72’


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