CINEMA AO AR LIVRE: O melhor filme de guerra em muitos anos e um filme de acção que envergonha 95 por cento dos "blockbusters" americanos recentes.

ESTADO DE GUERRA, Kathryn Bigelow. Vencedor dos Óscares. Humilhou Avatar (yesssss!). Um filme fabuloso.

Inicia a Mostra de Cinema ao Ar Livre "Curtas Portuguesas recebem os Amigos Americanos". Dia 30 de Julho, Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€ (ou Passe para os 10 dias por 20€).


Dá vontade de ir directo à hipérbole: "Estado de Guerra" é o melhor filme de guerra em muitos anos. É uma trip impressionista pelo "lado escuro", uma injecção de adrenalina directa para a veia, uma "walk on the wild side" para citar a canção de Lou Reed. Porque - ao contrário da recente vaga de filmes americanos sobre o Iraque e as suas sequelas, ou de muito do cinema que se fez sobre o Vietname, por muito bons que alguns deles sejam - não é um filme que questione razões, motivos, psicologias. "Estado de Guerra" não pede desculpa por olhar para as coisas de frente e pegar o touro pelos cornos: sim, a guerra é um inferno (não são poucas as cenas onde o choque surdo da morte mesmo aqui ao lado bate com violência), mas para quem está lá no meio é também um vício, uma necessidade, uma maneira de estar vivo.


Tudo se passa numa unidade de minas e armadilhas, acompanhando os desafios quotidianos de um sapador-mineiro viciado nos riscos de desactivar os (progressivamente mais complexos) engenhos explosivos improvisados que os insurgentes constantemente plantam nas ruas de Bagdad, numa "escalada" em que cada bomba neutralizada abre caminho a um desafio mais elaborado e exigente. (Há, é verdade, algo de video-jogo aqui pelo meio, mas é uma leitura necessariamente a posteriori - e nunca um filme inspirado num jogo conseguiu o crescendo de tensão que Bigelow constrói aqui com virtuosismo.) Mas outra faena que "Estado de Guerra" faz ao touro é explicar que Iraque, Afeganistão, Vietname, Coreia, Balcãs, etc., são nomes diferentes para um mesmo território. O "onde" perde a sua relevância. A única ideologia é o pragmatismo. A guerras são todas iguais, há inocentes e culpados, entre mortos e vivos alguém se há-de safar.


Sim, este é um mundo de homens (as únicas mulheres aqui estão longe, em casa, mas esta camaradagem masculina é tão poderosa como frágil, ameaçada a cada momento), mas, paradoxo irónico, foi preciso uma mulher para fazer o melhor filme de guerra em muitos anos. É verdade que não é uma mulher qualquer - Kathryn Bigelow, ex-mulher de James Cameron, uma das poucas cineastas femininas que se impôs no mundo codificado do filme de género. Mas nada na sua obra anterior - que vai de "Ruptura Explosiva" a "Estranhos Prazeres", nem sempre conseguida, mas sempre estimulante - daria a entender que seria capaz de conseguir o que muitos outros têm procurado fazer sem lá chegar: um "statement" praticamente definitivo sobre viver a guerra, com todas as amplitudes térmicas emocionais que isso implica.


Não é, atenção, proeza exclusiva de Bigelow: tire-se o chapéu ao jornalista Mark Boal, que baseou o argumento nas suas próprias experiências acompanhando as tropas no Iraque, e à sua capacidade de desenhar personagens com dois ou três traços; à justeza de um elenco notável encabeçado por um Jeremy Renner na medida certa de obsessão; à "vérité" poeirenta da imagem de Barry Ackroyd (cúmplice habitual de Ken Loach). Mas foi Bigelow quem conseguiu a improvável alquimia de pegar numa história que tinha tudo para se tornar em mais um "statement" neo-liberal sobre a futilidade da guerra e transformá-la, primeiro, num filme de acção que envergonha 95 por cento dos "blockbusters" americanos produzidos nos últimos dez anos e, segundo, num dos olhares mais lúcidos e inteligentes sobre os homens que fazem a guerra sem precisar de recorrer a explicações freudianas.


Houve quem olhasse para "Estado de Guerra" como um filme paredes-meias com o exercício de recrutamento, mas Bigelow limita-se a admitir que há qualquer coisa de primitivo no nosso fascínio pela guerra, que a experiência é tão radical e limite que nada, mas nada, consegue equiparar-se-lhe - e que mais vale aceitar que isso é algo que não consegumos explicar verbalmente, e que transcende políticas e atitudes para ser, apenas, algo de intensamente pessoal e intransmissível. "Estado de Guerra" não explica: observa e constata.

E - milagre! - quem o quiser ver, apenas, como um "thriller" de acção pode fazê-lo que continua a ter direito a um filme notável.
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Jorge Mourinha, Público


«The Hurt Locker» é um filme para acabar com toda a conversa tonta sobre a existência de um cinema "feminino", ou "de mulheres", por oposição a um cinema "masculino", ou "de homens". Porque em «The Hurt Locker» Kathryn Bigelow filma a guerra no Iraque, e o comportamento, os sentimentos e a intimidade dos soldados como pouco homens o conseguiram, ou conseguirão fazer.

Escrito por Mark Boal, o argumentista de «No Vale de Elah», e rodado na Jordânia, «The Hurt Locker» segue o dia-a-dia da unidade militar americana com maior taxa de baixas no Iraque: os especialistas em bombas não detonadas e em armadilhas feitas com engenhos explosivos. Centrando-se em três daqueles soldados, o filme é uma sequência de episódios baseados em factos reais (Boal esteve no Iraque a falar com militares e a fazer o "trabalho de casa" muito bem feito), desde a desactivação de um carro armadilhado colocado perto de um edifício das Nações Unidas em Bagdade, até ao confronto com um homem-bomba à força, passando por uma cena infernal após o rebentamento de um camião-cisterna perto da Zona Verde e pela descoberta do corpo de uma criança transformado em cadáver explosivo, numa cena que Bigelow filma no limite do emocionalmente suportável.


«The Hurt Locker» é um daqueles cada vez mais raros filmes em que o rush de adrenalina e os índices de tensão atingem níveis tão elevados no ecrã como na plateia. Mas sendo um filme de guerra, e sobre homens em guerra, este consegue ser também um filme sobre a intimidade, e as suas formas particulares de expressão e de camaradagem, no microcosmo do trio de protagonistas, encabeçado pelo excelente Jeremy Renner no papel do temerário mas experiente sargento William James, para o qual a melhor maneira de desarmar uma bomba é "não deixar que ela rebente connosco". Guy Pearce, Ralph Fiennes e David Morse fazem breves apariçães em «The Hurt Locker», mas o filme pertence todinho a Renner, a Anthony Mackie no sargento que funciona by the book, e a Brian Geraghty no soldado que precisa que lhe incutam confiança.
As bombas não são a única ameaça que estes especialistas enfrentam. Há ainda os "snipers", que muitas vezes ficam perto ocultos numa casa, num telhado ou num terraço, para fazer detonar os explosivos com um tiro quando estiverem o máximo de civis iraquianos e soldados americanos junto deles, ou para abater os especialistas quando eles estão a trabalhar na desactivação dos mecanismos. A realizadora disse na conferência de imprensa que «The Hurt Locker», não sendo, obviamente, "a favor" da guerra no Iraque, não era também um filme "para tomar partido", e contou que quando Mark Boal lhe falou nestes militares que enfrentavam a morte armados apenas com um alicate, uma protecção corporal e um capacete, soube logo que era a história deles que ia filmar a seguir. E a forma como alguns destes homens, caso do sargento James, precisam de estar no coração dos acontecimentos para se sentirem integrados nalguma coisa, verdadeiramente vivos, com uma função e uma razão de ser no mundo. Mesmo que a morte os espere para os fazer em bocados, no fundo de uma rua suja e devastada de Bagdade, dentro de um carro, debaixo do chão ou no terraço de um prédio.
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Eurico de Barros, Cinema 2000


James (William Renner), juntamente com o sargento Sanborn (Anthony Mackie) e com o soldado-especialista Eldridge (Brian Gegharty), cuja missão é orientarem-no pela rádio e darem-lhe cobertura enquanto ele tenta impedir o rebentamento de bombas, carros ou gente, é um dos três protagonistas de Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow, escrito pelo jornalista Mark Boal (No Vale de Elah). E Estado de Guerra, além do melhor filme feito até agora sobre a guerra no Iraque é também um dos grandes filmes de guerra já feitos, ponto final.

A intenção de Bigelow não foi realizar um filme “pró” ou “anti”-guerra. Foi descrever o quotidiano unicamente mortífero, as motivações, as relações e o funcionamento emocional e mental dos militares especializados que, nas ruas, casas e terraços das cidades iraquianas, por vezes sob a mira de snipers inimigos, arriscam ficar mutilados ou ser reduzidos a migalhas, enquanto, minimamente resguardados, tentam desactivar toda a sorte de bombas, booby traps mais ou menos sofisticadas, carros pesadamente armadilhados e pessoas forradas (as vivas) ou recheadas (as mortas) de explosivos.


Comandando uma câmara que não larga as personagens nem no meio do pior inferno de caos, chamas e morte fabricado por mão humana, Bigelow mostra-nos uma sucessão de episódios baseados em factos reais e ficcionados que levam os índices de tensão ao limite, instalam um clima emocional nos limites do suportável e esgotam a secreção de adrenalina.

Poderão as sensações intensas decorrentes de situações de combate extremas viciar o soldado, e levá-lo a querer experimentar mais, como parece suceder à personagem do sargento James? Talvez. Certo, certo, é que raras vezes a experiência humana da guerra foi tão visceral e implacavelmente visualizada e transmitida como nesta fita, por estes militares armados de alicates e que raramente vêem o inimigo. Kathryn Bigelow nasceu mulher, mas filma como um homem a quem a natureza dotou com dois pares de testículos.
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Sérgio Abranches, Time Out



Título Original: The Hurt Locker
Realização: Kathryn Bigelow
Argumento: Mark Boal
Direcção de Fotografia: Barry Ackroyd
Montagem: Chris Innis, Bob Murawski
Música: Marco Beltrami, Buck Sanders
Interpretação: Anthony Mackie, Brian Geraghty, Christian Camargo, David Morse,
Evangeline Lilly, Guy Pearce, Jeremy Renner, Ralph Fiennes
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2008
Duração: 131’


EM COMPLEMENTO

A FELICIDADE, Jorge Silva Melo, Portugal, 2008, 8’

Um pai e um filho. O pai terá setenta anos, o filho pouco mais de vinte. O filho leva o pai ao hospital. Na rádio, música clássica. O Exultate, Jubilate de Mozart cantado por Teresa Stich- Randall. Nem o pai sabia que o filho gostava de música clássica, nem o filho sabia que aquela seria a última conversa que teria com o pai. Mas Mozart pede que as almas se alegrem, que os homens rejubilem.

Título Original: A Felicidade
Realização: Jorge Silva Melo
Argumento: Jorge Silva Melo
Direcção de Fotografia: José Luís Carvalhosa
Montagem: Vítor Alves
Interpretação: Fernando Lopes, Miguel Borges, Pedro Gil
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 8’



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