Tony (de Matos) + Tony (Manero) - 2ªf, 22h, IPJ. Vão por nós: IMPERDÍVEL.

Juntam-se em sala dois filmes que têm o mais curioso ponto em comum: em ambos as personagens principais querem ser Tonys, no primeiro, a curta de Bruno Lourenço, há um imitador de Tony de Matos; no segundo, a longa de Pablo Larrain, há um imitador de Tony Manero, a personagem de John Travolta, em Saturday Night Fever. À parte disso, os filmes não poderiam estar mais distantes. O primeiro é uma comédia, o segundo a mais deprimente tragédia. O primeiro é a 'estreia promissora' de um realizador que há muito trabalha no cinema; o segundo é uma obra-prima do novo cinema chileno.

Comecemos pela curta, que o JL teve a oportunidade de destacar, com uma pequena entrevista ao realizador, a propósito da sua exibição no Curtas de Vila do Conde. É um trabalho de humor, com subtileza e charme, raro no cinema português. Explora o saudosismo alfacinha ao máximo, traçando-lhe o retrato num clube de imitadores de velhas glórias do nacional cançonetismo. Os adeptos encarnam as suas personagens, levando-as a peito, numa decadência terna. Trocam expressões ou piropos, tentando fazer coincidir a figura interpretada consigo próprios. O humor é natural e kitsch. "Se eu fosse mais afoito... ", diz às tantas o galã, interpretado por Ricardo Gross, a uma das Madalenas Iglésias. É uma Lisboa de outras eras, que às vezes parece eternamente recente.



E se decadência há aqui, em nada se compara com a dimensão brutal de Tony Manero, que dispõe dos ingredientes preambulares para nos equivocar e nos levar para uma comédia kitsch - o que poderá haver mais kitsch do que um concurso de imitadores de Travolta em Santiago do Chile? -, mas transforma-se numa apurada vivência do horror, devido à construção de uma personagem desumana, um dos maiores psicopatas do cinema latino.

E com isto troca-nos as voltas, porque não há nada mais desconcertante do que nos fazer predispor a rir do horror. Porque o que para nós se assemelha a uma pequena diversão de cariz carnavalesco, para a personagem revela-se uma obsessão maníaca. Este Tony, um homem de 40 anos, está disposto a tudo, mas mesmo a tudo, para se tornar o maior Tony Manero. Não admite a derrota, nem vê aquilo como um hobbie, mas sim como um projecto de vida, único e inalienável. Guia-se cegamente por essa ideia, de forma doentia e violenta. E é capaz de roubar, matar, cometer os mais hediondos crimes se tal for necessário, só para aperfeiçoar a sua imitação. Pouco lhe importa se, ao seu redor, passa um Chile dominado e aterrorizado pela ditadura de Pinochet. O que ele quer é ser o maior Tony Manero do planeta. O único. O verdadeiro. Mas sempre um Tony a mais.

Jornal de Letras



Raúl Peralta dança, quer conquistar os concursos televisivos de imitadores de John Travolta. E Raúl mata. Quem é Raúl? É uma "coisa" terrivelmente silenciosa.
Esta letargia, esta forma de o mundo parecer acordar com dificuldade depois de um eclipse, sem ainda conseguir articular, podemos reconhecê-la. Não é questão de tráfico cinéfilo, é a questão de uma geração. É que se dez anos separam o chileno Pablo Larraín (34 anos), o realizador de "Tony Manero", da argentina Lucrecia Martel (44, a autora de "O Pântano" ou "A Mulher sem Cabeça"), ambos se movem dentro do silêncio que o legado de ditadura dos seus países lhes deixou: uma espécie de amnésia funcional. Larraín ou Martel não "denunciam", note-se. Enroscam-se, envolvem-nos, nessa terra queimada. É assim Santiago do Chile no final dos anos 70 onde se move esta entidade: algo entre o animal e a máquina (de morte) - uma contradição ambulante, portanto -, sem interioridade, sem política, sem afecto. É Raúl Peralta, pretendente ao título de "Tony Manero chileno" (Tony Manero era a personagem que John Travolta interpretava em "Febre de Sábado à Noite", filme, de 1977, de John Badham). Raúl dança, quer conquistar os concursos televisivos de imitadores, e Raúl mata: é um "serial killer".

Quem é Raúl? O âmago da alienação chilena, de uma passividade mesquinha que abdicou da sua humanidade, rodeada de América e do seu imaginário (Travolta e o "disco"...) por todos os lados?
Está "Saturday Night Fever" no lugar do imperialismo americano, da CIA, que ajudou Pinochet e o seu golpe?

Raúl, e a frieza aleatória dos seus assassinatos, é Pinochet?



Pablo Larraín, o realizador, "responde", se quisermos, apenas com indícios e paradoxos. Sem "statements". Onde ele é de uma agressividade que tem algo de calculista, é na brutalidade de Raúl. E para isso teve a cumplicidade maior de um actor, Alfredo Castro, também um dos autores do argumento.

O que se passa com Alfredo Castro, em "Tony Manero", nada tem a ver com o registo de "interpretação" num filme. Nem com a habitual parafernália que rodeia a "apresentação" de uma personagem. É uma coisa terrivelmente silenciosa. O que é isto? É, para já, um "retrato" para o cinema contemporâneo. E é algo de outra natureza. Tem a ver com a "performance". Raúl, silhueta de pássaro, nunca fala, a não ser quando dança. Isso é o mais próximo que conseguimos chegar da sua "humanidade". E é o mais perto que o filme chega da "deixa" de uma personagem numa narrativa "convencional". As sequências de dança não são, por isso, momentos de exibição (como na "Febre..."), desenlace "espectacular" de uma narrativa ou até forma de redenção; é a difícil articulação de uma personagem, que só assim consegue "dizer-se"...



É verdade que "Tony Manero", sendo tão determinado neste horror, nesta presença, cria um vácuo à volta. Um vazio que é preenchido em perda: o "resto" parecer concretizar-se em dificuldade, com um último fôlego que não permite transcender o episódico. É como se, tendo criado a besta, não tivesse monstruosidade cinematográfica à altura. Ou seja, Larraín (ainda) não é o monstro de insidiosa sofisticação chamado Lucrecia Martel. Está a fazer-se. Esperamos pela continuação da trilogia que dedica ao Chile de Pinochet.
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Vasco Câmara, Público



Imaginem um homem infame, vil, decrépito, imoral... Agora vistam-no à John Travolta e ponham-no a fazer uns passos de Disco Sound. É um avião, é um pássaro? Não é um Tony Manero chileno.

Ele é o tipo de homem capaz de matar o pai e a mãe para ir ao baile dos órfãos. Sem a conotação satírica ou excessiva da expressão. Não tem nada da ganância interesseira do Julien Sorel do Vermelho e o Negro de Sthendal. Nem da violência atormentada do Raskólnikov, de Crime e Castigo. Aliás, nem possui a dignidade de vilão, nem a grandeza de mau da fita... A esses, ao menos vale-lhes a prepotência da rudeza e o despotismo da maldade. É apenas um ser desprezível, pequeno, ridículo e pulha. Ao pé de todas as personagens desprezíveis criadas pela ficção, este Raul chileno, que se esgueira sorrateiro pelas ruas de Santiago cheias de medo e alienação, nos anos negros do Pinochet, é um rato de esgoto - com todo o respeito que os roedores nos merecem, mesmo aqueles que frequentam locais menos aprazíveis.
E no entanto, este Zé-ninguém, este pilha-galinhas do filme de Pablo Laraín (estreia-se hoje, depois de ter sido apresentado em Cannes, em 2008, e ter passado pelo Indie) deixa-nos com uma sensação pegajosa, um misto entre nojo e atracção. Estamos em 1979, nos anos mais ferozes da ditadura. As paredes têm ouvidos, as janelas têm olhos. Raul tem um obsessão, quer imitar John Travolta, que passava nos cinemas chilenos, dois anos depois de estrear nos EUA. Vemo-lo à porta de um estúdio de televisão, enganou-se na data, informa-o a produtora. Aquele era o dia dos imitadores de Chuck Norris. Raul, um cinquentão pouco apessoado, volta para trás. É um falhado, desde o primeiro plano do filme. Mas um falhado canalha que ajuda a velhota caída, após a investida de uns meliantes para depois lhe roubar a TV a cores, e dar-lhe uma traulitada fatal na cabeça. E fica ali a alimentar-se a si e ao gato da mesma lata.

É um falhado anunciado quando no decrépito cabaret onde dá o seu show de Disco Sound, procura a tinta de pintar o cabelo. É um falhado anunciado nos seus encontros na cama com a mãe e a filha, numa cenas de sexo impotente de uma fealdade nauseante. É um falhado anunciado quando se atavia de fato branco e tacões altos, defeca sobre a indumentária do concorrente, e, enquanto os esbirros de Pinochet se acercam dos companheiros de baile, ele se esgueira para o concurso em que o primeiro prémio é uma liquidificadora. É a imagem da decadência: um ser subdesenvolvido, de consciência tolhida, a tentar fazer uns passes modernos e vanguardistas à americana, com luzes psicadélicas. À imagem do país que foi.



Nas ruas há espancamentos, recolheres obrigatórios, patrulha de tanques, assassinatos. É o Chile, apresentado no filme sempre em pano de fundo, quase como se estivesse fora de cena, na esquina do plano. Como na cabeça de Raul, tudo lhe passa ao lado. Ele não tem dó nem piedade nem problemas de consciência, nem qualquer sentido político. A monstruosidade de um regime gera monstros. Onde uns vêem perseguições políticas ele vê a oportunidade para surripiar um crucifixo, não hesita em massacrar o projeccionista quando muda a "febre" para o grease. Em atirar ossos e nacos de carne crua a uma matilha de rafeiros para assassinar o sucateiro que tem uns ladrilhos para colocar no palco. Ou em assassinar a brincadeira do miúdo para fabricar artesanalmente com estilhaços uma bola de espelhos

E no entanto, o realizador chama ao seu personagem "um tipo porreiro". A sua dança, era a dança de todos. A TV entretinha o povo com escapismo de importação. Raul andava demasiado ocupado a matar pessoas. Pinochet também.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão



CONVERSA COM O REALIZADOR

Passaram décadas sobre Pinochet e eis que esse Chile impune, inimputável sobrevive. Raúl Peralta, a personagem deste filme, é o fantasma de um país de vida ou morte - de morte sobretudo. Conversa com o intérprete e com o realizador de "Tony Manero", Alfredo Castro e Pablo Larraín.

Alfredo Castro olha para o ecrã de televisão e vê uma multidão de Raúl Peraltas na rua. "Vivo em Santiago e ao ver as imagens, a seguir ao sismo [que atingiu o Chile], das pessoas a assaltarem as lojas, a roubarem, vejo essa realidade: uma espécie de vigança por serem tão pobres. São pessoas que flutuam numa sociedade que não lhes deu nada, uma sociedade baseada na impunidade, pessoas que não têm estrutura de vida, gente apolítica, sem sentimentos pelo outro".

Eis Raúl Peralta, um assustador paradoxo: misto de animal e máquina (de matar), um vazio muito carregado, à beira de explodir. Explode. Mata. E aí sossega, até encher-se outra vez de vazio. Raúl Peralta é um buraco negro em "Tony Manero" - e é verdade que por vezes ele engole o filme.

Vive em 1977, mas pelo que nos conta Alfredo Castro continua a viver no Chile actual. Alfredo, 58 anos, é o actor que "interpreta" essa personagem - entre aspas porque, diz-nos, também escolheu, e isto há 20 anos, o seu paradoxo: ocupar essa zona ambígua do "interpretar e não interpretar", levando para o palco ou para o "plateau" as suas "psicoses".

Pablo Larraín, 34 anos, é o realizador. Ele e Alfredo foram co-argumentistas do filme, os criadores de Raúl Peralta, esse aspirante a dançarino de "disco" que na Santiago do Chile da década de 70, nos anos mais duros da ditadura de Pinochet, estuda os passos de John Travolta/Tony Manero em "Febre de Sábado à Noite". É um dançarino e é um "serial killer".

"Esse filme ["Saturday Night Fever" de John Badham] era perfeito para o que queríamos contar", avança Pablo. "É um filme sobre um 'working class hero' que se torna um sucesso nas pistas de dança. Não é um tipo que queira dinheiro, é um tipo que quer dançar". (E Raúl Peralta enquanto dança ao menos não mata.)

Sendo um filme americano, o de Badham, isso permitiu também a Pablo Larraín abrir caminho - embora em "Tony Manero" tudo seja paradoxal - ao retrato político e histórico de uma era, a da aliança entre um regime ditatorial e a administração americana (a CIA apoiou o derrube de Salvador Allende, em 1974, e a subida ao poder de Augusto Pinochet).

"Febre de Sábado à Noite" foi um filme muito popular em 1977 no Chile. Porque era americano, foi um dos poucos que a censura, acrescenta Alfredo Castro, deixou passar. "Foi um dos piores anos de Pinochet", diz o actor, "aquele em que ele mandou matar mais pessoas". Por isso, na altura, Alfredo recusou-se a ver o filme com Travolta. Era uma forma de resistência - só o viu para se preparar para "Tony Manero", por causa das cenas de dança, mas não quis mergulhar nele; quer que ele permaneça um fantasma.

O corpo é que fala
A dança era decisiva para Pablo Larraín e Alfredo Castro. "O corpo é que fala", começa por dizer o realizador, ao telefone de Santiago. "A forma como Raúl Peralta dança é a forma como ele se relaciona com o mundo. Todos nós dançamos de forma diferente, não há outros como nós".



É o mais perto que conseguimos estar de uma certa humanidade de Raúl Peralta, para além disso. Tal como o passo de dança é o mais perto que conseguimos estar de um diálogo de um filme dito tradicional. Ra??l nunca fala. A não ser aí, não falando.
Foi a partir do silêncio que Alfredo Castro, actor, dramaturgo, encenador e argumentista - e no passado professor de teatro de Larraín -, começou a trabalhar. Conseguindo, da parte do realizador e do outro co-argumentista, Mateo Iribarren, a cumplicidade para apagar, apagar, apagar o que tinha sido escrito. "Raúl não fala, não age. A dança é a única hipótese de ser alguém, de ser um outro. Dança para não falar, para não ter sexo. A vida é horrível, a não ser quando ele dança". Quer o realizador quer o intérprete - melhor seria dizer: o "performer" - falam de uma rodagem que arriscou o vazio. O que foi "dirigir" um actor neste filme? Responde o realizador: "Disse-lhe [a Alfredo Castro] algumas coisas, não muito, sobre como usar o corpo, a informação necessária para ele se mover. A câmara ia atrás dele. Ninguém sabia para onde ia, nem ele. E isso cria uma certa tensão. E um grande mistério. Não sabíamos o caminho, não havia marcas. Apenas tentávamos encontrar uma saída. Errámos muitas vezes, mas algumas acertámos".

Alfredo fala de uma "enorme liberdade". Fala de um cineasta "que, sendo jovem, está ainda à procura de uma poética". Chegavam ao "plateau" e perguntavam: "isto é o texto, o que vamos fazer?". Improvisavam. Iam com as cenas para vários lados, "o sexo com sexo e sem sexo, separados e juntos, com beijos e sem beijos"... E Raúl Peralta quem é? O Chile dos anos 70? O âmago de um Chile que ainda vive hoje? É Pinochet, arriscamos? O actor é mais generoso com a curiosidade: "Sim, Pinochet matou". Já o realizador diz que não quer direccionar as interpretações do filme. Prefere assim: "Raúl Peralta representa uma sociedade. O seu comportamento é o comportamento de um país. Aquela impunidade é a impunidade que está no ar. Ele faz o que ele vê. Não se deve julgar o que ele faz sem julgar um país. Como nos filmes de Pedro Costa, que mostra Portugal de forma muito privada, muito pessoal, também eu convido as pessoas a entrar no meu país." Estão os dois a falar do mesmo, e não é por acaso que já acabaram outro filme juntos, o segundo de uma trilogia dedicada ao Chile de Pinochet. Passa-se no dia do golpe militar, em 1974, a personagem principal trabalha no Instituto de Medicina Legal, onde chegam cadáveres, mas é, e temos de acreditar, uma "love story".

"As pessoas que viveram esses acontecimentos", conclui Alfredo Castro, "ainda falam nesses tempos. O problema é com os jovens chilenos: pensam que não pertencem aquele momento histórico. Por isso estou orgulhoso de Pablo" - é o orgulho do mestre em relação ao pupilo. "Ele é jovem mas sabe que não pode escapar à História do seu país." Diz-nos isto Alfredo, e sabemos que tem estado nestes dias à procura de Raúl Peralta no ecrã da televisão.
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Vasco Câmara, Público

Título Original: Tony Manero
Realização: Pablo Larraín
Argumento: Alfredo Castro, Mateo Iribarren, Pablo Larrín
Interpretação: Alfredo Castro, Paola Lattus, Héctor Morales, Amparo Noguera, Elsa Poblete
Direcção de Fotografia: Sergio Armstrong
Montagem: Andrea Chignoli
Origem: Chile/Brasil
Ano de Estreia: 2008
Duração: 97’



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