4ªf, bolo-rei a acompanhar uma Pêra do Edgar, sobre o Rei da Guitarra Portuguesa: CARLOS PAREDES

MOVIMENTOS PERPÉTUOS - CINE-TRIBUTO A CARLOS PAREDES - 4ªF - 21H30 - SEDE - ENTRADA LIVRE

Documentário em 17 movimentos, em que os testemunhos e a guitarra definem o génio, a bravura e a modéstia de Carlos Paredes, Movimentos Perpétuos – estabelece um diálogo entre uma guitarra e uma câmara de Super8, numa estética que evoca a memória dos velhos filmes de família, plena de intimidade, revelada na partilha de pequenas histórias da vida. O concerto de Carlos Paredes no Auditório Carlos Alberto, no Porto, em 1984, é o ponto de partida para o desenrolar de histórias de prisão, resistência, sucessos e amadorismo, relatos marcados pela simplicidade e pela paixão.

PRÉMIOS
IndieLisboa, Portugal (2006) – Melhor Longa-metragem Portuguesa, Melhor Fotografia para Longa-metragem Portuguesa e Prémio do Público
Famafest, Portugal (2006) – Grande Prémio da Juventude




NOTA DE INTENÇÕES
A primeira imagem: um daqueles prodigiosos polvos dos desenhos animados a executar uma música apenas possível de ser tocada com múltiplos tentáculos. A primeira vez. Foi na primeira Festa do Avante. Lamento, mas essas memórias foram soterradas por outras mais extravagantes.

Só me recordo dos contrastes flagrantes: uma concentração inédita de hippies e a intempestiva actuação dos Area, aos quais fui mais tarde buscar o LP Arbeit Macht Frei para o título e ponto de partida do filme O Trabalho Liberta?.

Mais tarde, vi-o tantas vezes em tantas festas, comícios e sessões de esclarecimento que, quando chegaram os anos 80, já era o fastio. Inflação total: aproveitamento constante das músicas de Paredes. Propaganda política e a utilização até à exaustão de trechos seus nas bandas-sonoras de documentários e ficções dos pobrezinhos. Sobrava o respeito pelo talento desmedido. Mas nunca, jamais em tempo algum, faria um filme com música do gigante.


Flashforward.

Um século passa. Convidaram-me para participar nos Movimentos Perpétuos de homenagem a Carlos Paredes. A minha relutância não estava vencida e recusei-me a utilizar a música do «nosso guitarrista». Usei uma maquete dos Dead Combo como banda-sonora de Guitarra (Com Gente Lá Dentro).

O filme, inspirado no western-fado, consistia num tributo autónomo. A voz do guitarrista Charlie Walls (Paredes, antes do concerto com Charlie Haden assim se apelidou) serviu de narrador de outros tempos. Abria e fechava com uma cine-moldura de imagens de Paredes (que registei nos idos 90), nos bastidores de um espectáculo dos Madredeus no qual ele era convidado.

Edgar Pêra



Apaixonado e lírico documentário dividido em 17 partes que enquadram a vida e obra de Carlos Paredes. Esta divisão empresta clareza na aproximação do filme ao tema. Mas Edgar Pêra mantém-se também fiel à sua estética de manipulação da imagem e do som. Uma pesquisa formal que pode ser resumida neste axioma: mexer na matéria audiovisual como coisa concreta e abstracta à qual pode ser dada expressividade. Não é um processo racional ou até racionalizável, nem na obra de Brakhage nem na do cineasta português. O cinema de Pêra não tem a limpidez e a nudez da música de Paredes, mas ambas têm essa intuição artística. E «Movimentos Perpétuos» contém momentos da mais pura simbiose (e do mais fértil diálogo) entre a fluência das notas tocadas pelo músico e o movimento das imagens criadas pelo realizador.

Sérgio Dias Branco


O concerto que o guitarrista deu no Auditório Carlos Alberto, no Porto, em 1984 – onde antecedia cada interpretação com longas explicações sobre o seu método de trabalho – é o ponto de partida para o desenrolar de histórias de prisão, resistência, sucessos e amadorismo, todas elas relatos marcados pela simplicidade e pela paixão.Imagens, sons de arquivo e depoimentos (de Rui Vieira Nery, José Jorge Letria, Paulo Rocha, Malangatana e José Carlos Vasconcelos), contextualizam a importância do músico, não se sobrepondo nunca à própria voz de Paredes. Obviamente que falando-se de Edgar Pêra, tudo isto aparece fragmentado, estilhaçado, multiplicado e reinventado a seu bel-prazer.Como quase sempre faz, o cineasta constrói um “mundo paralelo”, onde o passado e o presente se confundem, como se a portugalidade indefinível que constitui a essência da música de Paredes continuasse presente e não nos tivesse abandonado.Sobre este filme-tributo, confessa-se surpreendido pelas afinidades que encontrou com o músico. “Sinto-me pouco à vontade com ícones como o Carlos Paredes. Não por não gostar do trabalho deles – exactamente por gostar e achar que é uma armadilha prestar homenagens. Mas há ali muitas frases que subscrevo… Ele e os que falam dele levantam questões que afectam qualquer pessoa que tenha um percurso independente em Portugal – que conduz na maior parte das vezes a uma marginalização”, explicou numa entrevista concedida ao ‘Público’. Para além de uma tocante homenagem ao músico, e à pessoa que se escondia por detrás dele, este é também o filme mais bem conseguido e acessível de Edgar Pêra. De resto, o cineasta reconheceu, na mesma entrevista, que a linguagem que habitualmente usa lhe tem tolhido os movimentos. “A realidade é que para fazer ficção em Portugal é complicadíssimo convencer um produtor a investir num filme. As pessoas não me dão dinheiro porque devem ter medo que eu faça uma coisa esquisita. Ora, quando cheguei a 2001 e vi ‘A Janela’, ‘O Homem-Teatro’ [documentário sobre o encenador e actor António Pedro] e ‘Oito, Oito’ a estrear, tudo no mesmo ano, apercebi-me de que podia lidar com matéria ficcional linear com destreza”, diz, acrescentando “mas tenho esbarrado naquela coisa chamada júris…”.Neste momento, está a ultimar “Rio Turvo”, adaptação de um conto de Aquilino Ribeiro, filmado em regime de produção independente, sem subsídio.

(daqui)





Realização: Edgar Pêra
Argumento: Edgar Pêra
Produtor: João Pinto Sousa
Elenco:
Edgar Pêra
Carlos Paredes
Luísa Amaro
Fernando Alvim
Origem: Portugal
Ano: 2006
Duração: 70’

2 prendas de Natal - cinema português para crianças em Estói, cinema português para adultos no IPJ

DIA 17 - 15H - CINE-TEATRO DE ESTÓI - ENTRADA LIVRE
UM GATO SEM NOME E OUTROS 6 FILMES, 6 realizadores, Portugal, 59'
Co-organização: Junta de Freguesia de Estói / CCF

DIA 19 - 21H30 - IPJ - ENTRADA LIVRE
UM FILME PORTUGUÊS, 6 realizadores, Portugal, 2011, 104’- PRESENÇA DE 4 REALIZADORES
Co-organização: CIAC / CCF


DIA 17

"Um gato sem nome e outros 6 filmes" transporta os mais jovens para uma viagem no cinema de animação português. 7 curtas-metragens de 6 realizadores com filmes de um leque variado de técnicas, grafismo, histórias e sobretudo muita fantasia.

UM GATO SEM NOME
Carlos Cruz, 2009, 15’ ( Técnica - 2D computer)

FICHA TÉCNICA
Realizador: Carlos Cruz
Argumento: adaptação do livro infantil " Um gato sem nome" de Natércia Rocha
Criação Artística: Carlos Cruz
Storyboard: Jorge Barros
Animação: Charlie Blue; Pedro Tchen; Lu Qifeng; Yu Yonghai; Yu Yongbin; Yu Yongsheng
Voz: Araby McClintock; André Kong; David Marc Bernfeld; Catarina Cruz
Som: Pim Pam Pum Estúdios
Sonoplastia: David Neutel
Música: Nik Phelps
Produtor: António C. Valente
Produção: Cine-Clube de Avanca
Co-Produção: Filmógrafo, Animegas
Apoios: MC/ ICA, RTP-Rádio e Televisão de Portugal

SINOPSE
Esta é a história da Menina Cláudia que, na véspera do seu aniversário, formula um desejo: gostava de ser mosca para poder ouvir as conversas da sua família e assim saber quais os presentes que lhe vão dar. E qual não é o seu espanto quando se apercebe que não se transformou em mosca mas que consegue ouvir o pensamento das pessoas. E ela, que só queria uma boneca, fica assim a saber que toda a sua família está a pensar em lhe dar animais de estimação, em vez da desejada boneca o que a deixa em estado de pânico. É por isso que esta é também a história da Tartaruga Zoraida, do Peixe Onix e do canário Amarelinho.

PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
Prémio Competição Avanca e Menção Honrosa Prémio Estreia Mundial - AVANCA 2009 - Encontros Internacionais de Cinema, TV, Vídeo e Multimédia - (Portugal) | 22-26/07/2009
Prémio Animação - CUBANIMA 2010 - Festival Int.l de animación para los ninez y la adolescencia, (Cuba) | 01-05/06/2010
Finalista no 16th Shanghai TV Festival - (China) | 07-11/06/2010
Nomeado para : Prix Jeunesse Iberoamericano 2009 (Brasil), Krok (Úcrania), etc.



LIVING IN THE TREES
Vítor Lopes, 2008, 6.5‘

FICHA TÉCNICA
Argumento, realização, produção: Vitor Lopes
Animação: Vitor Lopes
Música: Jack Jaques
Produção: Filmógrafo

SINOPSE
Quando não há paciência para ouvir os outros, tudo pode acontecer.

PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
Menção Especial - CARTOONS ON THE BAY – Pulcinella Awards (Itália)
Menção Honrosa - Porto 7-Festival Internacional de Curtas-metragens do Porto (Portugal)
Prémio Movile - 6th Naoussa International Film Festival (Grécia)
Prémio ENCONTARTE - AMARES 2009 (Portugal)
Nomeado para : Rimouski (Canadá), Riviera Maya (México), Bourg-en-Bresse (França), Belgrade (Sérvia), AnimFest 09 (Grécia), Giffoni, Rimini (Itália), Skopje (Macedónia), Cine a la Calle (Colômbia), Caminhos (Portugal), THE PALACE (Bulgária), etc.



O RELÓGIO DE TOMÁS
Cláudio Sá, 2010, 8’

FICHA TÉCNICA
Argumento, realizador: Cláudio Sá
Animação: Cláudio Sá; João Rodrigues
Voz: Manuel Silva; Sílvia Sá
Edição: Cláudio Sá
Música: NAD, Art of Ghetto
Produtor: António C. Valente
Produção: Filmógrafo
Co-Produção: Cineclube de Avanca

SINOPSE
O tempo não volta atrás, e bem lá atrás, ficam momentos aos quais não damos o devido valor.
Com a chegada de um relógio mágico, Tomás vai ter o privilégio de "mandar no tempo".
Ou irá este ensiná-lo a viver?
PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
Prémio 1º Lugar - Festival de Cinema Independente ON'CINE, (Portugal) | 05-06/08/2010
Nomeado para : ANIMAMUNDI (Brasil), ANONIMUL (Roménia), Rimouski (Canadá), Schlingel, Detmold (Alemanha), Ourense, Elche (Espanha), Faial, Caminhos, Porto7 (Portugal), Naoussa (Grécia), ZLÍN (Rep. Checa), etc.


ZÉ E O PINGUIM
Francisco Lança, 2003, 10’

FICHA TÉCNICA
Realização: Francisco Lança
Argumento: Francisco Lança and Joana Imaginário
Director de Produção: António Costa Valente
Animação: Francisco Lança and Vítor Lopes
Pintura: António Almeida, Carlos Silva and João Dias
Montagem: Carlos Silva
Director de Som: Fernando Rocha
Música: António Vitorino D'Almeida
Produção: Cine Clube de Avanca
Apoio: MC/ICAM, RTP - Rádio e Televisão de Portugal

SINOPSE
O Zé é uma criança que vive atormentada pelas contínuas discussões dos pais, tendo como único amigo um pinguim de pelúcia que ganha vida quando estão sozinhos.

PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
Prémio Competição Avanca - AVANCA 2003-Encontros Internacionais de Cinema, Televisão, Vídeo e Multimédia (Portugal) | 23-27/07/2003
1º Prémio -3º Festival de Vídeo de Corroios - VIDEOCOR 2003 (Portugal) | 14-22/11/2003
Nomeado para : Annecy, Amiens (França), Auburn (Austrália), Asiana (Coreia), Tessaloniki (Grécia), Viña del Mar (Chile), Ourense, Huesca (Espanha), FIKE, Caminhos, Algarve (Portugal), Bologna (Italia), Cairo (Egipto), BIMINI (Letónia), Sergipe (Brasil), ZLÍN (Rep. Checa), Istambul (Turquia), Roshd (Irão), Rimouski (Canada), Durban (África do Sul), etc.


HISTÓRIAS DESENCANTADAS
Vítor Lopes, 2000, 8’

FICHA TÉCNICA
Realização: Vítor Lopes
Director de Produção: António Costa Valente
Animação: Vítor Lopes
Som e Montagem: Carlos Silva
Música: Neo Felgar / F-Acts
Produção: Cine Clube de Avanca
Apoio: MC/ICAM, RTP - Rádio e Televisão de Portugal

SINOPSE
Entre personagens e histórias de televisão, o último olhar do nosso herói, antes de adormecer vai para os velhos livros na estante e as suas tradicionais histórias encantadas.

PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
1ºPrémio Cinema de Animação - "33rd Melbourne Int'l Film & Video Festival - Australia | 2000"
Prémio Especial do Júri - TSTTT Int'l Film Festival (Republica Checa) | 2000
Prémio de Melhor Argumento - AVANCA 2000 (Portugal)
Prémio Melhor Animação - Festival de Cinema de Arouca (Portugal) | 12/2005


SUPER CARICAS
Cláudio Jordão, 2003, 6’

FICHA TÉCNICA
Argumento, realização, produção: Cláudio Jordão
Vozes: Catarina Jacome, Fulvia Almeida
Animação e Montagem: Cláudio Jordão
Música: João Paulo Nunes

SINOPSE
Um curioso jogo entre a realidade e a ficção, onde os jogos de hoje se misturam com os de outros tempos, e onde o único limite é a imaginação de uma criança que se perde num universo paralelo...pelo menos até à hora de jantar!


DÁ-ME LUZ
Sérgio Nogueira, 2002, 3 min

FICHA TÉCNICA
Realização: Sérgio Nogueira
Argumento: Cristina Sopas, Sérgio Nogueira
Director de Produção: António Costa Valente
Animação: Sérgio Nogueira, Vítor Lopes, João Dias
Pintura: Pedro Monteiro, Pedro Rocha, Rui Carvalho
Montagem: Carlos Silva
Som: Cine Clube de Avanca, Mastermix, Aurastudio
Música: Carlos Pascoinho, Pedro Janela
Produção: Cine-Clube de Avanca
Apoios: MC/ ICA, RTP-Rádio e Televisão de Portugal

SINOPSE
É noite numa imensa praia deserta. Um homem com um profundo buraco negro no peito torna-se no alvo de um fogoso pirilampo.

PRÉMIOS E PARTICIPAÇÃO EM FESTIVAIS INTERNACIONAIS:
Prémio Europeu - "Best work Section Pax" Massimo Troisi 2003 (Itália)
Prémio Menção Honrosa - 1º Festival Júlio de Matos 2006
Nomeado para : Figueira da Foz, Algarve, Caminhos (Portugal), Lleida, Huesca, Elche (Espanha), Lille, Amiens (França), Cairo (Egipto), Thai (Tailândia), Asolo, Visionaria, Bologna (Itália), Tessaloniki, Larissa (Grécia), Viña del Mar (Chile), Dakino (Roménia), Cinénygma (Luxembourg), Sergipe (Brasil), Szolnok (Hungria), Istanbul, Izmir (Turquia).



DIA 19


UM FILME PORTUGUÊS
Levi Martins, Vitor Alves, Miguel Cipriano, Jorge Jácome, Vanessa Sousa Dias e Carlos Pereira, Portugal, 2011, 104’

Seis olhares sobre um país, e seu lugar no mundo, através do cinema.

Uma viagem pela estrada fora, por entre novas fronteiras, à procura de imagens, sons e histórias. Um filme falado, narrado por diferentes gerações, tentando descodificar o ontem, hoje e amanhã do cinema feito em Portugal. Uma reflexão sobre as actuais inquietações ligadas aos sistemas estético, dramático e de produção dos filmes, voltando a uma antiga pergunta: o que é, afinal, o cinema?


Documentário composto por seis segmentos de 17':

- A Constante, Levi Martins
- Os Náufragos, Vítor Alves
- Paisagem Identidade, Miguel Cipriano
- Vaivém, Jorge Jácome
- Minucia Lunaris, Vanessa Sousa Dias
- O Tempo dos Outros, Carlos Pereira

Imagem: Marta Simões, Pedro Sousa, André Dinis Carrilho, Carlos Pereira
Som: Levi Martins, Jorge Jácome, Laura Brasil, Miguel Cipriano, Ana Isabel Costa
Montagem: Beatriz Tomaz, Levi Martins, Vitor Alves, Miguel Cipriano, Jorge Jácome, Vanessa Sousa Dias, Ana Isabel Costa, Carlos Pereira
Música: Levi Martins, Luis Giestas, Eduardo Dias Martins
Participantes (Entrevistados): Luís Miguel Oliveira, Graça Castanheira, António-Pedro Vasconcelos, Luís Urbano, Manuel Mozos, Paulo Rocha, Jorge Silva Meio, Joaquim Sapinho, Saguenail e Regina Guimarães, João Canijo, João Botelho, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Possidónio Cachapa, Miguel Valverde, Marco Martins, Manuela Viegas, Rita Azevedo Gomes, João Lopes, Cláudia Varejão, João Salaviza e Gabriel Abrantes.

4ªf, Sede, 21h30, à borla - a primeira longa-metragem do Edgar. E que Pêra!

Dia 14
A JANELA, 2001, 104’

NOTA DE INTENÇÕES
(O phylm ele mesmo, propriamente dito)

Primeira obra do Senhor Ego em dimensão standard «A Janela (Maryalva Mix)» é uma pelycula de longa metragem de 104 minutos sonora e muda, colorida e a preto e branco, rodada em filme super-8, 16mm, 35mm (sobretudo) e em vídeo mini-dv, com cópia final em 35mm Dolby® estéreo.

Trata-se também de um jogo, o jogo do Kem é o antónyo?™, um drama montado sobre uma narrativa não-linear e não-elementar - montagem arbitrária mas não-aleatória - desenhado na forma de um eskyzo-fado que aborda o destino de um arcaico pseudo-eskyzo-fadista da Bica.

Trata-se de uma obra que pretende 'recuperar' uma tradição burlesca e excentricionista(!): os actores falantes improvisaram monólogos, os actores mudos desenvolveram arquétipos de personagens antoninos - incluindo algumas tiradas sobre peixes.

A dimensão referencial, multi-cultural e 'kosmopolítico', pretende sublinhar o carácter popular de um certo lisboeta português de uma época para quem, apesar de tudo isso, "a Bica é um mundo!" e o Tejo a sua fronteira (ou vice versa).

O tipo de uso e a distorção da iconografia, gráfica, visual e sonora, é usada como 'imagens do pensamento/realidade', sendo a ideia de frequência/interferência rádio (e neuro-bioquímica) - a sua sintonização e dessintonização - uma cine-gramática toska e romba usada como orientação karytativa.

Trata-se de um filme-artefakto que resulta de uma intervenção plástica "ao vivo", isto é: é um filme sem "pós-produção" - todos os "efeitos" do filme (a divisão do écran em quadros-bd) foram realizados durante a rodagem (filmando e refilmando por diferentes vezes o mesmo pedaço de película) ou então executados sobre a própria película ( no caso dos riscos e côres).

O rekurso a yntertítulos eskritos em português sohniko, uma synteze proto-kryoula & retroh-futurista da lyngua portugueza, dezenvolvida e reafinada ao retardador ao longo da últyma dékada do sékulo.

Edgar Pêra


O TRABALHO
O trabalho do Sr. Ego

Da ideia ao filme

Quando saí da Escola de Cinema tive um início desastroso: era um inadaptado e encerrei logo a actividade. Voltei à carga e descobri que gostava mais de «répérages» que de filmes. O que me interessava existia na realidade, não em histórias da carochinha. Não procuro uma equipa para filmar mas para atacar o terreno de rodagem. O filme é sempre encarado como um território de investigação. Sem investigação não há ficção. Numa ficção convencional recriam-se acontecimentos. Eu tento criá-los. As centenas de páginas do guião ficam na gaveta no momento de filmar: é o exame final, sem cábulas, não tenho um papel na mão e jogo de cabeça, ainda por cima com outros cromos da bola. E a investigação é isto: estar do lado da amiba, dizer não ao microscópio. Tento ir para o meio dos protozoários! O que mais me lixa é o National Geographic com aqueles tipos escondidos nos arbustos, à espera que o crocodilo mergulhe no lago.

Montagem

É o lado mais frankensteiniano do cinema, o que lhe dá vida. Organizo o caos sem uma «decoupage» pré-programada. Se ela existe, é a de um directo sobre uma manifestação que não sabe para onde vai. A planificação é feita a quente, passo a passo: estou à câmara e readapto-me ao que está a acontecer, sem desfasamento. Não há uma fórmula mágica nisto. O que tento levar para a montagem é o ritmo da rodagem. A minha montagem está entre a escrita normal e a surrealista: ando sempre a controlar o cadáver esquisito dos meus filmes.

Choque imagem-som
O computador é um elemento da redenção que me permitiu trabalhar. Gosto da agilidade e do pulsar do rato, de criar conflitos entre a imagem e o som, pôr o princípio no fim e o fim no meio, para ver o que dá, nem que seja só para testar a chapa. Quero descobrir se uma determinada imagem pode levar uma porrada com um som qualquer e resistir-lhe. Uso muito pouco som directo, e estas coisas só se podem digladiar na montagem. Se coloco um determinado som num segundo qualquer, posso acabar por retirar a imagem desse segundo. Mas isto tem de ser organizado, não pode ser uma coisa fundamentalista, não se pode cair num enorme barroquismo, senão é o «twin terror», o patinanço completo.»
Edgar Pêra


O Homem da Máquina de Filmar


Dá pelo título de "A Janela (Marialva Myx)" e é assim a modos de um "ovni" de cinema português que esta semana aterrou. O seu "autor" é Edgar Pêra que, apesar de um outro filme anteriormente estreado, "Manual de Evasão Lx94" , tem sido há mais de 10 anos uma espécie de presença fantasma no cinema português: de quando em quando, lá aparecia, em manifestações mais ou menos paralelas, um daqueles inclassificáveis produtos audiovisuais com as marcas distintivas da sua linha de montagem.

"Presença fantasma" como? A resposta está subentendida num pequeno deslize no enunciado acima, entre um artigo indefinido e um outro definido: "de cinema português" e "no cinema português". Diferentemente de um modo de produção dominante, cuja referência tem sido o apoio financeiro do Estado via Instituto Português de Cinema, Pêra foi mais ou menos continuadamente filmando, com a mobilidade permitida pelos novos meios técnicos. O seu cinema estava algures, certamente "português" nas suas inscrições sociais e culturais, mas reivindicando uma exterioridade, e mesmo emancipação.

Em parte por isso, ou melhor, talvez com isso, Pêra foi construindo uma "persona", com as marcas de assinatura dos "k", em vez dos "c", e dos "y", em vez do "i" escarrapachados nos genéricos, e dando por nomes como "homem-kâmara" ou "senhor ego". É assim a modos que o seu "folklore", mais ou menos confundindo-se com uma mitologia de marginalidade. A presente estreia de "A Janela", numa "operação Edgar Pêra" que também inclui dois programas com outros filmes seus, permite esclarecer várias coisas.

Dificilmente a aura de "marginalidade" se pode aplicar a um cineasta que foi nomeadamente continuando a sua actividade com sucessivos trabalhos de encomenda: "Manual de Evasão" (para Lisboa-94),"A Cidade de Cassiano" (em torno do arquitecto Cassiano Branco), "SWK4" (Almada Negreiros), "O Trabalho Liberta?" (para a cadeia de televisão Arte),"Lisboa-boa 345 dt" (Festival dos Oceanos), "25 de Abril Aventura Demokrátika" (Centro de Documentação 25 de Abril) - e Pêra ultima duas outras, um telefilme para a SIC e "O Homem-Teatro" (sobre António Pedro).

Esta sucessão, que no crivo da tal "marginalidade" o pode desqualificar, é no entanto indício do que é efectivamente importante: a reiterada disponibilidade para filmar e a construção de um modo de produção própria, numa atitude inédita no cinema português.

Se por acaso numa rua de Lisboa o leitor se cruzar com um transeunte com uma máquina de filmar, atenção que pode não ser um turista mas sim Edgar Pêra. É um tipo de labor representativo de um dos fenómenos mais importantes do cinema contemporâneo. Sobretudo com as câmaras de vídeo, há verdadeiros novos centauros, observadores e intervenientes numa realidade imediata, o corpo confundindo-se com uma câmara, radicalmente inscrevendo de modo novo o sujeito no próprio processo filmico .

O que no caso de Pêra se torna particularmente interessante é que esta postura não se compraz numa imanência do real. Pelo contrário, o seu modo distintivo é a sucessão de manipulações que opera num manancial de materiais heteróclitos ("A Janela", por exemplo, foi filmado em 35mm, super 8mm, video), designadamente por operações de montagem e de incrustação de "parasitas" na imagem.

A janela , sabe-se, é uma clássica metáfora do cinema, "janela aberta para o mundo". No caso, em "A Janela", Pêra filma efectivamente uma, aberta para o mundo que tem como microcosmos o lisboeta bairro da Bica - mundo portanto numa escala reduzida, tal como o modo de produção. Mas o olhar cinematográfico que rege este peculiar "mundo" é altamente formalista.

Pêra pode reivindicar para si o título do famoso filme de Dziga Vertov, e um dos grandes exemplos do formalismo russo-soviético, "O Homem da Câmara de Filmar" - ou "máquina de filmar", a noção da prótese maquinista do corpo humano sendo de rara pertinência. De resto, os modos como vai assinando os seus filmes, por exemplo como "filmado, dirigido e montado", Pêra assinala como o trabalho de "direcção" (de realização, de autoria), se baliza entre os actos de "filmar" (é ele próprio o seu "cameraman") e "montar" (idem).

É então interessante notar que estas dicotomias filmar/montar ou real/manipulado, se sucedem ao longo da obra noutras, como documentário/ficção ou local/global, como se pode constatar nesta "operação": note-se, por exemplo, a perseguição no topo do cinema Éden, o desejo de ficção que emerge no documentário sobre Cassiano, ou um persistente "topos" lisboeta em que irrompe um outro desejo, utópico, como em "Lisboa boa-boa 345dt".

"A Janela" atesta os limites do modo de produção que Pêra foi forjando - longa-metragem de ficção passando pelo subsídio público, só foi acabada com a intervenção de um produtor institucional (Paulo Branco). Também não deixa de patentear uma difícil gestão do tempo (embora felizmente não comparável ao exasperante "Manual de Evasão"). Mas sobre o desopilante folclore "kitsch" de António, marialva da Bica, e das suas muitas amantes, há um singular olhar de cineasta - ou será mais correcto dizer "homem-câmara"?»
.
Augusto M. Seabra, Público


ENTREVISTA AO REALIZADOR


'Antónyo, o turbo-tyger'
Edgar Pêra em entrevista, a propósito da estreia do seu novo filme, «A Janela (Maryalva Mix)»
Encontrámos o Sr. Ego, nome de guerra de Edgar Pêra, no momento em que os primeiros Tomahawks aliados atingiam Kabul. TV ligada, som cortado, é a guerra em directo que coloniza o mundo. No momento da estreia de A Janela (Maryalva Mix), melodrama «lusoh-galaktiko» de cortar à faca no Elevador da Bica, damos a palavra a este lisboeta que em Abril de 74, durante a adolescência, foi «mordido por uma revolução radioaktiva». Depois, estudos de Psicologia, Escola de Cinema, os primeiros filmes no fim dessa década.

Mais tarde, a reivindicação do português sónico como direito à diferença, as «encomendas» que foram A Cidade de Cassiano, SWK4, com textos de Almada Negreiros, Manual de Evasão, para a Lisboa 94, e mais recentemente 25 de Abril Aventura Demokratika. Para recapitular, há mais de 10 anos de trabalho de um realizador único no cinema português. Por isso, a Atalanta Filmes organizou uma «Operação Edgar Pêra», escolhida pelo próprio e dividida em dois programas, que serão exibidos no King, sempre à meia-noite, durante o fim-de-semana. Mas a «janela» está no centro: história dos amores entre Antónyo, alfacinha de gema, e as suas seis amantes, com a ameaça de um crime para completar o ramalhete. Para cada amante há um Antónyo novo: o xoramyngas (Nuno Melo), o anymal (Miguel Borges), o tanguysta (José Wallenstein), o sekretysta (Nuno Bizarro), o levezyto (João Didelet) e o santynho (Manuel João Vieira). As seis amantes são interpretadas por Lúcia Sigalho que acompanhou Edgar Pêra desde a origem deste projecto, em 1997. Na forja está também um trabalho sobre António Pedro e um telefilme da SIC. Kum Kacêt!

Quem é que está à janela? O Sr. Ego?
Sim e não. Também lá está o Antónyo. O filme flutua narrativamente entre o ponto de vista dele e o do olheiro. Primeira dúvida: aquele olho gigante é da personagem ou do autor? Até que ponto estará o Antónyo a fazer o filme? Os «textículos» que fazem pontos de passagem (escritos por Manuel Rodrigues) não querem dizer rigorosamente nada, são ideias para lançar a confusão. Acabas sempre por ser um grande tanguysta. Metes-te numa alhada e tens de te safar. Quando criámos a Akademya Lusoh-Galaktyca, um centro de investigação que já acabou, fomos para a Bica e apaixonámo-nos por aquela janela. Eu andava a escrever um projecto na desbunda: apanhava bocados de conversas e escrevia-os no computador. Depois comecei a criar personagens com a Lúcia, mas nem eu nem ela pensávamos fazer dali alguma coisa: era um terreno com imensos clichés. O argumento apareceu com essas experiências.

Há um porquê para a tua inadaptação à «coisa cinema»?
O que é um filme? Qualquer coisa projectada numa sala de cinema, não há outra definição. Um jogo da NBA numa sala de cinema é um filme. O cinema é um trabalho sobre o tempo que é projectado numa sala e tem uma certa duração. E quanto mais afunilas a definição menos hipóteses há para a surpresa. O que me interessa é a surpresa de quando o cinema surgiu. A partir do momento em que as pessoas deixaram de confundir o comboio do Lumière com o filme o cinema morreu. Detesto cinefilias, eu vou ao cinema quatro ou cinco vezes por ano. Há tantas coisas para fazer.

Análise romântica?
Claro, mas é uma análise, antes de tudo. Eu tomo outro partido quando dou a palavra ao Agostinho da Silva (O Trabalho Liberta?) ou ao McKenna (Manual de Evasão). Quando escolhes um termo, ou o deixas entre aspas e não o discutes ou vais atrás dele até perceberes que ele te destrói o sentido da frase. No meu trabalho, para descobrir que a verdade não está num sítio só, é preciso muito tempo de observação. Muitos testes ao material, como o Skip — vamos lá contar as lavagens. Mas eu só vejo os defeitos, estou sempre à espera que me contradigam.

Por aqueles que dizem que os teus filmes não vão para lado nenhum?
Isso é uma crítica pertinente que me agrada. Quando entrei no cinema arranjei logo problemas, a selva existe. Quanto a isso, o que não mata engorda. Não me venham com tretas: para onde vai a ficção? Para algum lado? Vai para o fim da história, e é tudo porreiro se quiseres passar ali um bom bocado, tens esse direito. Mas o que faz isso à tua vida? Eu não faço nenhum filme que ache que não tem influência sobre a vida das pessoas, mesmo que falhe redondamente. Não me ponho do lado do Bush nem do do Bin Laden, até porque acho que estão os dois no mesmo lado. Mesmo a desacreditar, a fazer de cada assunto uma espiral sem fim e sem conclusão, o facto de as ideias estarem nos meus filmes em poeira cósmica, a orbitar, pode fazer qualquer coisa explodir.

O trabalho no caos tem uma ordem. Como é que te organizas?
A ordem é militarizada, é uma questão de disciplina. A minha estratégia é esta: vamos para a guerra, um por todos e todos por um, tem de estar tudo a trabalhar para o mesmo. O contrário do que acontece numa produção normal. Se há uma pequena peça no grupo que falha, o trabalho fica todo em causa. Duvidar é para a altura do debate de ideias. Mas quando estás ali com a metralhadora não dá, é tudo muito rápido, não se pode falhar. E às vezes arranjo problemas com o gajo que não me disparou o gatilho. Se alguém pergunta porquê, acabou, já perdemos o comboio!

E é o que o Sr. Ego diz: dispara agora!
Ora bem: dispara e foge do homem-câmara!

Porque é que o teu filme é uma «missão antidogma 2000»?
É uma palhaçada em relação aos outros palhaços, que estão ao nível do cientista de Auschwitz. Mas prefiro que os dogmáticos escolham a arte em vez da política. Acho muito bem que os nazis só façam filmes e fiquem por aí. O «Big Brother» também deu uma imagem disso, as pessoas meteram-se lá dentro sem pensar no que estavam a fazer.

Vês o «Big Brother»?
Vi o primeiro.

E então?
Gramei! Houve ali verdadeiros momentos de estudo animal. Prefiro isso ao Lars von Trier. Quer dizer: acho que ele é um grande artista.

E a transmissão na TV da queda das Twin Towers? É um filme?
E que filmaço! É o «Big Brother» dos terroristas. Costumo dizer que A Janela é uma utopia maryalva muçulmana. Só de pensar nas virgens do paraíso que vêm para aí depois daqueles kamikazes todos... Se pensares bem, cada um daqueles tipos era um potencial Antónyo que encontrou o paraíso.

O Antónyo é muçulmano?
É, mas o Sr. Ego é americano. É um detective.
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Francisco Ferreira, Expresso, 13/10/2001


DECLARAÇÕES DE LÚCIA SIGALHO

'Uma Xerazade pós-feminista'
Em 1996, anos antes de José Álvaro Morais e Teresa Villaverde descobrirem Lúcia Sigalho para o cinema (em Peixe-Lua e Água e Sal), Edgar Pêra convidava a actriz-encenadora a participar num projecto de documentário sobre o bairro lisboeta da Bica, com personagens de ficção. "A realidade real" entrava na sua zona criativa, ficou "com os sininhos todos a tocar". Deu ao cineasta a ideia das seis mulheres dum homem, que resultaria no filme A Janela (Maryalva Mix). Interessada "na questão da mudança compulsiva de personalidades", partiu para improvisações. "Toda a rodagem assentou nelas, as minhas e as dos outros actores", recorda.

Das suas nasceram as "seis mulheres e uma sereia" do Antónyo da Byka - bykudíssimo exemplar de polígamo multifacetado -, "mais a Marya de Fátyma, fadista castiça, mãe dele ou talvez não", adianta Lúcia Sigalho. Nesse desdobramento enquanto actriz, só vista! Contando, ninguém acredita... Ainda assim, acredite ou não, reproduzimos excertos duma entrevista onde, não só a génese da criação foi sendo contada, mas também era apresentada aquela galeria feminina, no estilo inimitável da directora-fundadora da companhia Sensurround.

Lúcia Sigalho atendeu-nos em plena azáfama de ensaios do seu próximo espectáculo no Armazém do Ferro: Viagem à Grécia, a partir da Antígona, de Sófocles, e de poemas de Sophia de Melo Breyner Andreson. Em veloz mudança de registo, como se imaginará, apresentou as suas personagens n'A Janela, "todas elas inspiradas em figuras lisboetas um bocadinho chapadas, cada uma com as suas coisas amalucadas, umas casadas com o Antónyo, outras não, mas todas a flasharem com ele de algum modo, a vigiarem-se e a comentarem-se". Por ordem de entrada no ecrã, ei-las, identificadas e por Lúcia imitadas en passant, com muita risota pelo meio.

Júlia, peixeira. "É uma mistura de tipos: tem imensas opiniões, do tipo bulldozer, sobre modernização do bairro; trabalha dia e noite, "pois o Antónyo, coitadinho, é artista, não pode trabalhar, ele não é capaz e então eu, pois, é claro, vou pagando aquilo que é preciso pagar, ele agora vai fazer um disco..."; vende na Ribeira, "mas agora o peixe já não é como antigamente e as freguesas já não são como dantes e vêm regatear o carapau, ora o carapau já não pode custar o que custava dantes, agora é uma coisa muito mais politicamente correcta, não é?""

Sara, artista conceptual. "É uma pós-ninfomaníaca, está à procura do corpo, essa coisa muito fin de siècle, de que os artistas conceptuais, os performativos e os audiovisuais andavam todos à procura. "O Antónyo tem um corpo, coisa que não é muito comum em Portugal!" Então, ela está nos ateliers de São Paulo, a pensar na arte e no raio que a parta, o Antónyo é assim mais "um objecto na mente", embora dessem umas voltas. Entre Nova Iorque, Tóquio e Xabregas, lá trata dos affaires."

Marya, espanhola. "É chalada. "Mi marido es cantante de fado, no trabaja, se canta el fado todas las noches hasta las seis de la mañana y yo tengo seis hijos, drogadictos. Y tengo dos amantes, claro. Quando me indispueso con Antónyo, hube una fiesta muy rica aqui en Bica y bailámos sevillanas todo el dia..."

Mirita, para-médica. "Muito feia, com bigode, muito infeliz e neurótica, é puritana mas o Antónyo deu-lhe umas voltas. Mãe solteira dum filho do Antónyo, que lhe dá maus tratos, com que sofre imenso. Mas é "porque ele não sabe tratar da vida dele, tem muitos problemas psico-somáticos. Há uma grande taxa de esquizofrénicos em Portugal e o Antónyo não sabe, mas o que ele tem é uma esquizofrenia latente..."

Jacqueline, africana. "Uma das mais divertidas, embora das que tiveram menor desenvolvimento. É "a zona libèrtada dà humànidadi e dà sexuàlidadi. Não tem problema, gosta do Antónyo, é àmiga deli, só àmiga: compreende-o, ele tem aqueles problemas culturais dos bráncos, as bráncas são muito possessivas, a Jacqueline não tá aí nem para compreender os problemas delas e o Antónyo, coitado, às vezes, precisa di descontraír...""

Marya de Fátyma, fadista. "É a chave da tragédia, não se percebe se mãe ou madrinha do Antónyo. Tem ciúmes mortais das outras todas, desanca nelas, acha que não prestam para nada. No resto do tempo, vai dizendo "mas eu sou fadista, canto o fado"."

Patrícia, antropóloga. "Anda a fazer um estudo, articulado com uma equipa em São Francisco e outra em Amsterdão, sobre as populações que vivem no meio: passam o tempo a ver passar comboios ou assim, zim-zim, zim-zim. Na Bica, é o elevador: anda abaixo e acima sem ir a lado nenhum. "Uma metáfora da portugalidade", para ela, que tira medidas às pessoas, dia e noite mede o Antónyo, exemplar sui generis."

Sereia. "Dá ao Tejo e aparece na Bica, a pedido do Manuel João Vieira. Não resisti e achei que fazia sentido aparecer como sereia, a fazer oink! oink!"»
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Elisabete França, Diário de Notícias, 12/10/2001




(imagem deste vídeo em mau estado)
Realização: Edgar Pêra
Argumento: Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Senhor Ego
Dir. Fotografia: Luís Branquinho
Montagem: Pedro A. Machado, Inês Henriques
Música: Artur Cyanetto, Tiago Lopes
Canções: Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves
Interpretação: Nuno de Melo, José Wallenstein, Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Jacqueline Ginja
Miguel Borges, João Didelet, Nuno Bizarro
Origem: Portugal
Duração: 104’

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PEQUENAS MENTIRAS ENTRE AMIGOS - Francês, 1 cópia, 1 sala, 8 semanas em Lisboa. Diz tudo. Amores incondicionais.

Ainda é possível a admiração por alguns programadores de cinema em Lisboa quando, dentro de um centro comercial, ainda têm a ousadia de manter um filme em sala durante oito semanas.

Um filme francês com uma sala só para si ao fim deste tempo todo é um fenómeno raro mas não inexplicável.

É um filme cuja atracção cresce pelo boca a boca que vem revelando sempre grande satisfação à saída da sala. Um filme de público - como ocasionalmente temos oportunidade e obrigação de sublinhar que a França ainda faz regularmente - com a sugestão da revivência de felizes memórias de grupo.

Bastará dizer que o filme é uma variação sobre a forma de Os Amigos de Alex para contextualizar rapidamente o que se passa em cena, desta vez com uma geração francesa entre os 30 e os 40 anos.

São figuras a entrarem na crise de meia idade sem terem ainda superado a adolescência, um grupo por isso susceptível aos pequenos dramas e aos grandes erros como só o embalo psicanalítico moderno vai criando.

As suas preocupações são múltiplas mas a sua origem pode ser traçada ao egoísmo de cada um daqueles elemento. Os seus distúrbios tê, quase sempre, uma razão amorosa para a qual a sua idade exige uma atitude mais ponderada mas a sua mentalidade mantém irresolvida.


Os temas que o filme trata melhor de entre o conjunto de preocupações são aqueles que mal toca, falando deles através da atenção aos pormenores - das interacções, das solidões e das acções. Outros, talvez até mais sensíveis ou importantes, são tratados de forma pesada, assumindo um papel central mas não conseguindo promover o interesse do público.

A interrogação sexual da camaradagem tornada num amor que a sociedade não sabe exprimir senão através de preconceitos é um desses casos tratados sem sensibilidade; enquanto em sentido oposto o cansaço de uma mulher pelo seu papel da jovem sedutora incorrigível é quase uma miragem narrativa mas executado com uma exactidão maravilhosa.

Não será estranho que esse papel de mulher amadurecida resulte por estar entregue a Marion Cotillard, mas seria injusto não elogiar a totalidade do elenco que faz sobressair o humor que sustenta a espera pelos momentos catárticos que acabarão por chegar depois de duas semanas de coabitação - nada mais stressante para testar laços de amizade.

Mesmo sendo longo demais, sem desfecho inovador que redima a meia hora a mais que tem, o filme é um agradável encontro capaz de recriar a identificação com aquelas vidas bem mais do que Funeral à Chuva, a recente (e novelizada) versão portuguesa do mesmo esforço, conseguiu.

A entristecida nota final vai para a música. Sendo Os Amigos de Alex o mais lembrado filme destas reuniões de amigos, Les petits mouchoirs escusava de intensificar a memória comparativa ao filme de Kasdan através da sua banda sonora completamente americana, sem sequer um toque francês que sublinhe as quatro décadas que este grupo já vivera. A música é boa; não é particularmente apropriada.
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Carlos Antunes, blog splitscreen


Guillaume Canet iniciou-se no cinema como actor, demonstrando de imediato todo o seu talento e se recordarmos filmes como "Feliz Natal" ou "O Caso Farewell", percebemos como ele veste as personagens que interpreta no cinema. Mas, como não podia deixar de ser, Guillaume Canet também se sentiu atraído pela realização, revelando também o seu enorme talento como argumentista e, em 1998, estreia-se na realização com a curta-metragem "Je Taim", para quatro anos depois se atirar a essa aventura de realizar uma longa-metragem, com "Mon Idole". "Ne Le Dis à Personne" foi o seu filme seguinte, realizado em 2005, mas será em 2010 que todos iremos fixar o seu nome como cineasta, ao realizar essa obra-prima intitulada "Pequenas Mentiras entre Amigos" / "Les Petits Mouchoirs", sem dúvida alguma um dos melhores filmes estreados em Portugal no ano de 2011.

"Pequenas Mentiras Entre Amigos" / "Les Petits Mouchoirs" é uma película que navega nesse território aberto por Lawrence Kasdan ao realizar "Os Amigos de Alex", que mais tarde teria o seu contraponto britânico em "Os Amigos de Peter", de Kenneth Brannagh. Mas, ao contrário destas duas excelentes películas, Guillaume Canet conseguiu ir mais longe cinematográficamente falando, ao utilizar o scope com um saber e um à vontade que nos deixa a todos a respirar cinema por todos os poros, ao mesmo tempo que nos oferece uma direcção de actores com a qual ficamos perfeitamente maravilhados e onde se destacam François Cluzet, Marion Cotillard, cada vez mais um nome a ter em conta no cinema mundial, Benoit Magimel e Gilles Lellouche, que já tinhamos visto recentemente em "Paris" e que aqui nos oferece uma das melhores interpretações da sua carreira, sendo desde já um nome a seguir com muita atenção.


"Pequenas Mentiras Entre Amigos" / "Les Petits Mouchoirs" é um dos mais belos filmes feitos até hoje sobre a amizade e Guillaume Canet revela-nos aqui todo o seu talento como cineasta, tornando-se um nome a seguir atentamente, ao mesmo tempo que nos oferece uma direcção de actores onde as interpretações são feitas à flor da pele, revelando os actores um mergulho perfeito no interior das personagens que interpretam. Estamos assim perante uma das obras-primas do cinema francês, deste novo século, que não deixa ninguém indiferente, porque aqui temos um dos mais belos retratos de uma geração.
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Rui Luís Lima e Paula Nunes Lima, blog a memória do cinema




Título original: Les petits mouchoirs
Realização: Guillaume Canet
Argumento: Guillaume Canet
Fotografia : Christophe Offenstein
Interpretação: François Cluzet, Marion Cotillard e Benoît Magimel, Gilles Lellouche, Jean Dujardin, Laurent Lafitte, Valérie Bonneton
Origem: França
Ano: 2011
Duração: 154’

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INAUGURAÇÃO DE EXPOSIÇÃO/FÁTIMA ROLO DUARTE NOS LIVROS EM CADEIA!



Fátima Rolo Duarte, sobre ela mesma: “Lisboa, 13 de Outubro, 1958 nasceu sem nome até lhe chamarem Fátima por culpa da Nossa Senhora. Rolo Duarte c'est le nom du père (em francês para ter duplos sentidos). Família de jornalistas, profissão que caiu em desuso e desgraça. Designer. Um livro publicado, um marido (jura), uma filha estudante de cinema. Até ver, expatriada em Bruxelas. Não respeita o actual presidente. Não gosta nada, nadinha do que andam a fazer a Portugal. Praia, pimentos assados. Fim.”

O título da sua palestra é “O filme da minha vida é o Johnny Guitar, mas a Agnès Varda é quem me põe a falar (muito).”

Apresentará um livro que ela própria trará para ofertar ao Cineclube de Faro: AGNÈS VARDA, LE CINÉMA ET AU-DELÀ.

Literário, ficcional, documental, poético, político, curtas-metragens, longas-metragens, a cores, a preto e branco, o cinema de Agnès Varda é daqueles que incita aos adjetivos e aos qualificativos, particularmente pela sua multiplicidade e complexidade. Desde 1954, com cerca de 40 filmes, a cineasta manifesta uma liberdade criadora que é testemunho de um percurso sempre inovador, de uma vontade de explorar o cinema em toda a sua riqueza e de o prolongar através das suas recentes instalações artísticas. Os seus filmes e as suas instalações apelam aos sentimentos dos protagonistas através dos quais ela nos convida a apreender universos diversos e variados, sejam eles de dramas ou dificuldades feitos.


projeto financiado por
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SOLVEIG NORDLUND EM FARO! 2ªf, dia 5.

BIBLIOTECA MUNICIPAL, 14H, entrada livre
CONVERSA/DEBATE – dirigido a alunos de 3º ciclo e ensino secundário

IPJ, 21H30, entrada paga (sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€)
A MORTE DE CARLOS GARDEL, Portugal, 2011, 87’, M/12

BLOG DO FILME


Solveig Nordlund atreveu-se adaptar António Lobo Antunes ao cinema. Ou melhor, afeiçoou a si própria o romance “A Morte de Calos Gardel” e fez um filme visceral e emocionante.

Ponhamos as coisas no ponto certo. É impossível transpor António Lobo Antunes para cinema. A exploração espaciotemporal continuada que ele usa, desde há aos, como estrutura encantatória e carceral não tem equivalente cinematográfico possível.

O mais perto que se pode chegar, sem se vaguear no acronismo, é o que fez a realizadora deste filme, salteando sequências temporalmente disjuntas, num processo que não sinaliza as transições mas que o espectador avisado decifra sem problemas. O leque factual do romance também é largo de mais para os propósitos do filme. Solveig Nordlund restringe-o, fecha-se em torno do casal separado com um filho no hospital em risco de vida induzido pela toxicodependência, numa cunhada médica e em mais duas breves personagens adjacentes. A tragédia é aquele abeiramento da morte e a memória, o estraçalhamento interior, o acordar da culpa que vem atrás. Pela escada abaixo, como se a vida tivesse tropeçado e tudo viesse a desabar em catadupa, são histórias de adultos desencontrados nos egoísmos dos seus mundos autocêntricos. Mas ao contrário do universo do romance, não é gente para execrar. Solveig gosta deles. Lobo Antunes não. Tudo é embalado pelo tango – obsessão do protagonista masculino, herança de família, a única coisa certa na sua vida -, que o filme mostra ora como harmonia perfeita ora como sobrevivência patética. Tire-se o chapéu, a propósito, para saudar a generosidade com que Rui de Carvalho entrega a pungente dignidade do seu episódico personagem. Em “A Morte de Carlos Gardel” há muita coragem na exposição de sentimentos fundos. À flor da pele, vivida, surpreendentemente numa cineasta quem tendo nascido na Suécia, vivendo e trabalhando em Portugal há quase 50 anos, e com um lugar no cinema português desde a segunda metade da década de 70, nunca teve um empenhamento emocional tão direto. Agora é um processo de autoaniquilação e neles há quase um processo de culpabilidade dos adultos. “A Morte de Carlos Gardel” é sobre pais, não sobre filhos perdidos, uma autoanálise adulta, olhos nos olhos. Com um toque de melodrama – e desespero. Rui Morisson, Celia Williams, Teresa Gafeira e o estreante Carlos Malvarez dividem, entre si, os papéis principais de um filme a que uma competente produção de Luís Galvão Teles deu condições de visibilidade. Pudera que isto bastasse para o merecido sucesso do público.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Anda com o livro debaixo de olho desde que foi publicado, em 1994, história próxima de um autor próximo sobre quem se debruça, entretanto, em 1998 e 2009, em dois documentários. "Mas só há cinco anos é que decidi transpô-lo para filme", afirma Solveig Nordlund. De António Lobo Antunes não foi difícil obter os direitos de "A Morte de Carlos Gardel" nem escrever a adaptação, que empreendeu sozinha. "Reduzi a história. E acrescentei coisas minhas. A segunda mulher do Álvaro, por exemplo, é diferente, no livro ela até é uma ternura, eu trato a personagem um bocadinho pior. Depois, até fiquei com alguma má consciência..." É certo, todavia, que no filme o tango está muito mais presente, "talvez porque o livro não tenha banda sonora".

Solveig não concorda comigo quanto ao olhar diverso com que romancista e cineasta olham os personagens: "Não acho que o António despreze os personagens, ele gosta deles, gosta é de uma maneira diferente do que eu gosto - aliás, o Álvaro é um bocadinho o seu alter ego, e estou convencidíssima que ele gosta de si próprio." Mas assume que tem uma ligação forte com aqueles seres, ao ponto de dizer, face ao personagem de Cláudia: "Identifico-me com ela, as palavras dela podiam ser minhas."

Na altura em que nos encontrámos (Lobo Antunes ainda não vira o filme), quando lhe pergunto se lhe importa a opinião do escritor, Solveig é desarmante: "Agora não há nada a fazer." Logo acrescentando: "Mas claro que preferia que ele gostasse." Nos intérpretes, a escolha primeira foi Rui Morisson e para o papel de Cláudia "pensei primeiro na Maria João Luís, que tinha que falar com sotaque, depois numa atriz sueca, mas acabei por escolher a Celia Williams, por casting. A 'Celia' mais nova é norueguesa [Ida Holten Worsoe] e decorou os diálogos em português foneticamente, com ajuda de auricular, pois não fala português. A Teresa Gafeira também foi uma escolha inicial, eu trabalho muito com o Teatro de Almada e conheço-a de lá. É um desperdício que o cinema português quase nunca a tenha utilizado.


Muito bem conseguida é a exequível transposição para cinema da mescla temporal de Lobo Antunes, "um trabalho de corta e cola, quer no argumento quer na montagem. No papel, os tempos já se entrecruzavam, mas depois verifiquei que nem sempre resultava. Desloquei algumas cenas de um sítio para outro", numa procura de rimas que acabaram irrepreensíveis, digo eu. E houve material que se filmou e acabou fora do filme: "Por exemplo, o livro começa com a chegada ao hospital e chove. Eu filmei a cena, só que não consegui que a chuva funcionasse bem. Então, decidi que o filme ia começar com o tango. Também filmei várias cenas que se passavam depois da morte, mas percebi na montagem que, depois daquele momento tão forte, os espectadores não iam querer saber mais nada. Ficou o final com o Rui de Carvalho", mas essa ¬é uma outra morte, uma espécie de suicídio existencial do protagonista.

"A Morte de Carlos Gardel" estreia em Portugal sem ter feito um périplo por festivais. "Não quisemos adiar a estreia para 2012. E fiz bem. Está a agradar às pessoas que já o viram, é um filme português com condições de conquistar o público. Isso é o essencial. As vendas, nos festivais, hoje em dia, não existem. Mas apostámos na Argentina, espero que o filme vá ao Festival de Mar del Plata, em novembro."
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado. Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial. Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon



ENTREVISTA A SOLVEIG NORDLUND
Onde começa esta relação com a obra de António Lobo Antunes que a levou agora a escolher esta obra em particular?
Em 1997, fui convidada pela SVT - a televisão sueca - para fazer uma introdução à obra de Lobo Antunes, que nessa altura era uma dos candidatos mais falados para o Prémio Nobel. E comecei a ler António Lobo Antunes. Li todos os seus livros e tornei-me fã da sua forma impressionista de escrever. Gostei sobretudo de "Os Cús de Júdas", "Fado Alexandrino" e "A Morte de Carlos Gardel". Com os anos fui ampliando e completando o documentário até acabá-lo em 2010 com o título "Escrever, Escrever, Viver". Entretanto tinha falado com António sobre a possibilidade de adaptar " A Morte de Carlos Gardel" para o cinema e ele deu-me carta-branca para escrever o guião.

Já trabalhou no cinema muitas obras literárias, o que a cativa neste processo de compor imagens em cima das palavras?
Já fiz várias adaptações de obras literárias para o cinema – “Até Amanhã, Mário” (de Grete Roulund), “Comédia Infantil” (de Henning Mankell), “Aparelho Voador a Baixa Altitude” (de J.G. Ballard), “O Espelho Lento” (de Richard Zimler) e agora “A Morte de Carlos Gardel” de António Lobo Antunes. Não sei porque prefiro adaptar uma obra já existente em vez de escrever uma história de raiz, que também fiz várias vezes – “Dina & Django”, “A Filha”. Penso que me considero mais protegida quando houve outra pessoa antes de mim a pensar na história e nas suas implicações. E é também um desafio traduzir uma obra de que se gosta muito para uma outra linguagem.


Onde acaba a obra de António Lobo Antunes e começa a de Solveig Nordlund?
"A morte de Carlos Gardel" é um exemplo disto. Gostei muito do livro e da emoção que transmitia. O desafio a adaptá-lo ao cinema foi tornar a história compreensível sem perder a respiração e a emoção do livro. O livro estende-se no tempo e no espaço, tive que reduzir as personagens e centrar a história ao essencial - a morte do filho toxicodependente e como esta morte transforma as pessoas à sua volta.

Qual o aspecto que a atraiu mais nesta história?
O que me atrai nesta história é a grande culpa que as personagens sentem. Não sabem agir perante os acontecimentos e procuram desesperadamente algo que dê sentido e que lhes possa fazer•perdoar. O pai procura um falso Carlos Gardel para dar sentido à sua vida depois da morte do filho.



Título Original: A Morte de Carlos Gardel
Realização: Solveig Nordlund
Direcção de Fotografia: Acácio Almeida
Montagem: Paulo MilHomens
Música original: Pedro Marques
Interpretação: Rui Morisson, Teresa Gafeira, Celia Williams, Carlos Malvarez, Miguel Mestre,
Joana de Verona, Elmano Sancho, Ida Holten Worsøe, Albano Jerónimo, Maria João Pinho.

Participação especial: Ruy de Carvalho
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 87’
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Também programamos terror - quando é do bom. ZONA DE PERIGO, CRONENBERG. 4ªf, Sede, 21h30, entrada livre.

Partindo de um romance de Stephen King, autor entre outros, das obras de onde partiram os argumentos de Carrie, de Brian De Palma, Shinning, de Stanley Kubrick, Christine, de John Carpenter, Creephshow, de George Romero, Dead Zone tem a característica de se integrar harmoniosamente no universo de dois dos grandes mestres do fantástico moderno: King e Cronenberg. Do escritor, prolonga as suas obsessões que integram o fantástico numa base realista e sociológica de indesmentível interesse.

Mas não é só ao nível das personagens que se procura essa base realista. A descrição de uma pequena cidade da provincial é notavelmente dada, nos seus circuitos familiares, na análise dos mecanismos de pressão económica e política, no retrato preciso das etapas de uma campanha eleitoral. Tudo isto parte em muito do talento narrativo de Stephen King, mas é habilmente prolongado e desenvolvido pela argúcia de David Cronenberg. Zona de Perigo assinala até outro dos grandes momentos da carreira deste realizador, tendo ganho o Prémio da Crítica no Festival de Avoriaz de 1984.
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Lauro António, Se7e, 14/9/88


Cronenberg, de um ponto de vista estilístico, é um "clássico". A linearidade das suas intrigas, a sua montagem fluida, invisível, confortam a fé do espectador naquilo que vê. Nada de magia ou atmosferas góticas; a presença e os comentários nos filmes de médicos e de sábios reforçam ainda mais a nossa “credulidade". A alucinação é uma figura central do cinema de Cronenberg, onde o olho da câmara nunca é para o espectador o dum Deus que siga, passo a passo, um herói privilegiado. São a estrutura narrativa e, mais ainda, as imagens, que levam o espectador à inquietude fundamental do observador que já não sabe se as peripécias que lhe mostram são "verdadeiras" (em sentido quase documental) ou se a intriga não lhe chega doutro lado, de uma personagem secundária por exemplo.

Em The Dead Zone, Johnny Smith (Christopher Walken), na sequência de um acidente de automóvel, cai num longo coma ao fim do qual descobre ter-se tornado capaz de, tocando as pessoas, ver o seu futuro, ou mais exactamente as potencialidades da sua existência. Confrontado com um candidato demagogo numa eleição local, descobre ao apertar a mão de Greg Stillson (Martin Sheen) que este se pode vir a tornar um presidente fascista e originar uma guerra nuclear. O próprio Cronenberg insistiu no paradoxo do espectador dos seus filmes: consideramos, de facto, essas visões como verdadeiras! Presos pela narração e pelo aspecto patético de uma personagem "vinda dos mortos", nunca duvidamos das suas visões! E quando Johnny se decide a assassinar o candidato "seguimo-lo" totalmente, esperando que a bala da sua carabina despedace o crânio deste perigoso paranóico (o médico de Johnny, um judeu que conheceu a guerra, diz-lhe a que ponto teria sido desejável o assassínio de Hitler - diabolização clássica do maniqueísmo hollywoodiano) Ora, diz Cronenberg, “se encararmos o filme como narrado do ponto de vista de Johnny, como de facto é, não podemos estar seguros de que não se trata de outro tarado que diz ter visto o futuro e saber o que deve ser feito. Deste ponto de vista, The Dead Zone é moralmente... ambíguo...” . Assim, num dos poucos filmes cujo argumento não escreveu inteiramente - linear e hollywoodiano, com um fim "moral" e relativamente "positivo" - o próprio Cronenberg nos coloca face ao paradoxo do seu sistema. Desejamos a morte do demagogo sem sermos persuadidos por mais nada do que aquilo que nos é mostrado (o sindroma da desinformação, de alguma maneira), convencidos de que ele é mesmo um Hitler em potência.

Sabemos, é certo, através da vertente "naturalista" do filme que este indivíduo medíocre é um demagogo. Mas que sabemos nós das visões de Johnny? Que é que nos faz pensar que elas são verdadeiras? Muito simplesmente, o facto de acreditarmos nas imagens, e estarmos, desde há muito tempo, contaminados pelo vírus hollywoodiano (a luta do Bem e do Mal que desculpa e justifica as piores respostas) e por uma moral saída dos talk-shows televisivos que, efectivamente, nos investe de uma missão tão temível como derrisória: baixar o polegar, como a plebe romana no circo, e decidir a vida e a morte de personagens na maior parte das vezes imaginárias; tornámo-nos juízes, prontos para a primeira sondagem telefónica.

Ironicamente, mas também por uma espécie de masoquismo, Cronenberg conseguiu penetrar, como um vírus, no universo hollywoodiano e contaminá-lo no interior. Fazendo The Dead Zone passar por mais ambíguo do que Videodrome, trai indubitavelmente aquilo que faz a originalidade do seu projecto: uma desestabilização do cinema vinda do próprio interior da gramática fílmica; insuflar no espectador uma dúvida mortal sobre a imagem, sobre a continuidade, sobre a incarnação, ou mesmo sobre a verdade.

The Dead Zone é o único filme para o qual David Cronenberg não escreveu o argumento. Tem personagens reais e nomes reais: simples como Johnny Smith e Sarah Bracknell. Cronenberg reagiu de forma positiva porque, como canadiano, se sentiu em sintonia com as pessoas simples do interior rural do “set” da história em Nova Inglaterra. Era uma oportunidade de abordar, noutro prisma, o tipo de temas que o interessam.
The Dead Zone resulta, quanto mais não seja pelas excelentes actuações de Christopher Walken, Brooke Adams a Martin Sheen. E o filme levanta questões intrigantes acerca da existência de limites na santidade da vida humana. Que se teria feito a Hitler nos anos 30 se se soubesse o que se sabe hoje?
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Cinemateca Portuguesa, David Cronenberg: a expressão nua



Título original: The Dead Zone
Realização: David Cronenberg
Argumento: Jeffrey Boam, baseado no romance de Stephen King
Fotografia: Mark Irwin
Montagem: Ronald Sanders
Música: Michael Kamen
Interpretação: Brooke Adams, Christopher Walken, Herbert Lom, Tom Skerritt, Anthony Zerbe,
Colleen Dewhurst, Martin Sheen
Origem: EUA
Ano: 1983
Duração: 103’

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projeto financiado por
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HADEWIJCH - a mais perturbadora "Pietà" de que há memória nos últimos anos. 2ªf, IPJ, 21h30.

Sócios 1€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

FESTIVAIS E PRÉMIOS

Prémio da Crítica Internacional – Toronto International Film Festival
Festival de Cinema Sans Sebastián – Selecção Oficial
Festival de Cinema de Nova Iorque - Selecção Oficial
Festival de Cinema de Londres - Selecção Oficial

"Hadewijch" é o primeiro filme de Bruno Dumont comercialmente estreado em Portugal. Alguns leitores lembrar-se-ão de que se falou muito dele por ocasião do "escândalo" de Cannes 1999, quando o júri presidido por David Cronenberg teve a bizarra ideia de premiar filmes que não caiam no goto de toda a gente - a Palma foi para a "Rosetta" dos Dardenne, Dumont levou o Grande Prémio do Júri por "L''Humanité".

Francês flamengo, Dumont trabalha com motivos culturais oriundos da sua região (tem até um filme chamado "Flandres"), e neste caso convoca a recordação da misteriosa Hadewijch, escritora religiosa medieval. Não é uma biografia nem um filme de época, contudo, antes uma história contemporânea (que nalguns passos rimará a história da verdadeira Hadewijch) que segue o fervor religioso de uma miúda parisiense de boas famílias. O fervor levou-a ao convento onde o filme principia, o excesso de fervor potencialmente danoso (a rapariga leva o jejum e a abstinência demasiado a peito) pôe-a cá fora, quando as madres decidem que ela deve encontrar o seu caminho para Cristo no mundo exterior. É esse percurso, tão obstinado quanto propício a equívocos e a crises de fé, que o filme segue.

Dumont filma com austeridade e pudor, e digamos que segue o princípio certo quando se trata de filmar a religião dos outros - filma-a como um facto, que não é matéria de julgamento nem de comentário. Interessa-lhe filmar a ansiedade fundamental da sua personagem, que espera ardentemente pela confirmação da sua fé, por uma manifestação de que a sua fé é, digamos, correspondida (e correspondida, justamente, como Amor). Há momentos muito calmos, muito pacíficos (as cenas com música: Bach, que como se diz noutro filme, veio "interromper o silêncio de Deus"), mas o frenesim interior da personagem vai-se intensificando (rebeldia com ou sem causa, "Hadewijch" também é uma história, "clássica" no seu esqueleto, de afirmação adolescente) até ficar madura para o radicalismo (é toda a história do seu encontro com os terroristas islâmicos, que não tem valor "político", antes funciona como expressão de um excesso - de devoção, de ansiedade - que transborda como violência e em violência).

Qualquer coisa parecida com a graça surgirá no fim, inesperadamente, quando tudo parece perdido. Não é bem um "milagre", ou consoante o ponto de vista, é um milagre. No plano da "escrita" não há muita coisa que realmente aproxime Dumont de Robert Bresson, mas de facto "Hadewijch" é a história de um "drôle de chemin", onde se circula por alguns elementos caros ao cineasta de "Pickpocket" (o crime, a prisão, os "párias") para chegar ao mesmo tipo de "elevação" final (e aqui, é realmente de uma "elevação", em todos os sentidos, que se trata). Dumont já fez filmes mais bizarros, mais intrincados, mais chocantes - nada há em "Hadewijch" de particularmente escabroso (nem "graficamente"). O despojamento, quase linear, de "Hadewijch", e a espécie de sinceridade muito simples que exala, fazem dele uma variação, no mínimo curiosa, sobre temas e formas que não estão propriamente na moda entre o mais badalado cinema contemporâneo.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


Há um momento em "Hadewijch", ainda os seus mistérios vão a meio, em que Céline e Nassir (Karl Sarafidis) caminham numa floresta. Céline já abandonou há muito o convento em que a vimos pela primeira vez, e o jovem casal, enquanto marcha, discute o valor da religião e procura nela um sentido. Afirma-se que Deus é verdade e justiça, "ou uma espada contra a injustiça", como Nassir conclui. Ninguém está a brincar aqui. Amor e violência, como o próprio Dumont o diz, são indissociáveis do seu cinema e da sua visão do mundo, e aquela espada, comum a todos os livros sagrados, é a história da Humanidade e do Ocidente. Céline, profundamente católica, e Nassir, profundamente muçulmano, formam um 'casamento' espiritual improvável, irrealista, um desafio político que incomoda, pois coloca-se num patamar acima das convenções. É um casal que vai unir-se na mesma decisão tácita, na mesma atração pelo martírio. Sem o esperarmos (falamos ainda da sequência da floresta), chegamos com as personagens a Hadewijch, o convento em que Céline nasceu para a fé e cujo nome se confunde com o nome da protagonista (o título refere-se a Hadewijch de Antuérpia, religiosa mística do século XIII, autora de um "Livro de Visões" mergulhado em hermetismo medieval). Depois, há um daqueles momentos que são da ordem do milagroso: Julia Sokolowski olha para o céu e, como em certos planos de John Ford, do céu vem um rasgo de luz natural que a ilumina. Tudo evoluirá depressa a partir dessa luz. Céline deixará o convento, o apartamento parlsiense, a amizade fraterna com Yassine, irmão de Nasslr, e parte de repente com este último, já vestida de branco, para o Líbano e para o terreno da luta armada, onde um encontro com a Jihad a espera. Voltamos ao plano do céu. Não é a primeira vez que as personagens de Bruno Dumont, a um dado momento, levantam a cabeça e olham para cima à procura de um guia que as salve (do niilismo?). Dumont sempre perseguiu figuras que têm 'acesso ao invisível' através do mundo visível, pessoas com vontade de ver o que está mais além, mas nunca o cineasta francês tinha ido tão longe nesta demanda do ascetismo e da recusa do corpo, através de uma mulher "que não precisa de um homem, mas de Deus". Perante Deus, Céllne/Hadewijch engana-se, escolhe o caminho errado e suicida-se. Morre de amor por Deus e pela sua falta - e o amor, no cinema de Dumont, é uma transmissão quase impossível. Mas Céline, naquele final apaziguador que parece resgatado do Apocalipse, morrerá também, para renascer como Fénlx das cinzas nos braços do homem (David) que sempre esteve perto dela. A revelação, afinal, estava mesmo ao lado e, como no cinema de outros místicos, foi longo o caminho que Céline teve de percorrer para encontrá-lo. Dumont acredita nesse caminho e no desejo de uma mulher em ser possuída pelo que não conhece - e esse desejo não é impermeável ao erotismo. Acredita no interior de um corpo e na experiência física da presença de Deus, no sentido do infinito que define os místicos: passamos o filme todo 'no coração' de Céline. Do que falamos? De um delírio? Em todo o caso, o delírio, que não se escreve por linhas direitas, é difícil de filmar e não convence assim do pé para a mão. Mas a mise en scéne de Dumont a isso convida: e é um triunfo absoluto. Recusa o julgamento. Impressiona pela serenidade e pelo equilíbrio. Sldera pela sua humilde procura do sagrado - e depois diz-lhe adeus, aqui na Terra. Dumont pode não ser um cineasta crente, mas, no magnífico gesto estético de "Hadewijch", acreditou numa coisa preciosa - no poder do cinema e soube inventar a mais perturbadora "Pietà" de que há memória nos últimos anos.
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Francisco Ferreira, Expresso


Bruno Dumont proporciona-nos um olhar sobre o sentimento religioso moderno sem julgamentos prévios ainda que se cruze com a ardência da juventude que exige uma certeza.

Céline é uma rapariga de Deus lançada ao mundo pelas freiras do convento em que se encontrava depois destas se aperceberem que o grau de abstinência e sacrifício a que se submetia era demasiado severo.

A ideia é que ela, pelo menos, vislumbre outras forma de viver a sua devoção. Formas que as próprias freiras encaram como mais saudáveis.

A partir daí a sua disponibilidade para com o mundo parece de uma totalidade ingénua - aceita os convites que lhe fazem sem se questionar ou constranger - como se ela não ousasse fazer uma decisão própria não fosse Deus estar a chamá-la nesse momento.

Nem esse contacto tão aberto com a realidade a consegue atrair para uma vivência de religiosidade inserida no quotidiano. Pelo contrário, leva-a a sentir um vazio maior, como se fora do convento estivesse abandonada.

O seu progresso na procura do regresso de Deus ao seu contacto termina na exigência da confirmação do Amor correspondido. Todo o adolescente acaba por confrontar o objecto do seu desejo, mas ela não tem mais do que um local representativo para onde correr e mesmo esse lhe está, muitas vezes, inacessível.

Ao cruzar-se com uma outra religião hesita em aceitar que esta esteja a um passo de comunicar com ela. A sua dúvida cresce e com ela a afirmação da sua entrega a Deus, etapa de negação da realidade de Céline.

A tese do filme surge então: a proximidade de todos os sentimentos de exasperação religiosa. A mesma necessidade de Deus, exigida com fúria, surge seja quem for que a sente: mulher ou homem, rico ou pobre, francês ou árabe, cristão ou islâmico.

E conclui com a certeza de que busca tão severa é sempre feita pela violência. Uma violência que pode estar confinada e ser dolorosa apenas para quem busca (como Céline no início do filme) ou que, como vemos mais adiante, pode exteriorizar-se e afectar todos.

Isto diz-nos (por vezes pela via da demonstração do seu oposto) o simbolismo de Dumont - seja a música de Bach ou a luz que surge e desaparece no rosto de Céline - que sobressai no filme porque a sua forma de filmar não procura artifícios.

Há uma inflexibilidade no percurso da protagonista a que Dumont corresponde, como se ele estivesse a submeter a câmara à realidade e não a representação ao realismo.

Daí que também os seus actores sejam imperfeitos mas admiráveis pela astúcia desse realismo.

Um filme admirável para o qual me resta agora descobrir a história de Hadewijch e, espero, compreender num próximo visionamento que significados ainda existirão para retirar do paralelo que Dumont terá estabelecido. Assim possa sentir que a minha percepção está à altura do que o filme tem a dizer.
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Carlos Antunes, splitscreen


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR

"A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva", diz-nos Bruno Dumont. "Hadewijch" é o quinto filme, e o primeiro a estrear-se comercialmente em Portugal, deste cineasta laico.

A quinta longa-metragem de Bruno Dumont, "Hadewijch", é a primeira a estrear-se em Portugal. Com data de 2009, é o penúltimo filme do cineasta, que já neste ano de 2011 apresentou em Cannes o seu mais recente opus, "Hors Satan". Religião e metafísica, sem aspas nem desculpas, são terrenos frequentes de Dumont, que não fazendo a coisa por menos começou logo por filmar uma "vida de Jesus" ("La Vie de Jesus", de 1997, primeira obra) e, depois, "a humanidade" ("L´Humanité", de 1999, um dos "filmes escandalosos" do Palmarés do Festival de Cannes desse ano).

Oriundo da Flandres francesa, nascido (em 1958) a poucos quilómetros da fronteira com a Bélgica, são nele comuns as referências e as inspirações de origem flamenga (o filme anterior a "Hadewijch" chamava-se mesmo "Flandres"). É o caso deste, claro, que traz logo para o título a lembrança da homónima escritora "mística" que viveu na Flandres do século XIII, depois prolongada numa personagem que usa Hadewijch como nome eclesiástico, e numa narrativa onde haverá alguns pontos de contacto (ou a imaginação de alguns pontos de contacto) com a vida da Hadewijch medieval. É um filme que trata, com uma força peculiar, a possibilidade contemporânea de um tipo de devoção "mística", menos para criar ou explorar um mero anacronismo, e mais para construir um grau de abstracção a partir das tensões geradas pelo que é, ou parece que pode ser, anacrónico.

A potência e a violência
Mas deixemos que Bruno Dumont, em resposta a uma meia-dúzia de perguntas que lhe enviámos por e-mail, nos fale do que viu e do que trouxe da Hadewijch histórica: "[nos seus escritos] cultivou um Amor Puro por Cristo seu Amante, que me inspirou a uma meditação contemporânea sobre a potência e a violência de que este amor tomado pelo absoluto é capaz".

No filme, estes dois termos - amor e violência - são indissociáveis, evoluem em paralelo, crescem como um mesmo tronco, explodem (com e sem jogo de palavras: o apogeu é um atentado terrorista no metro parisiense) ao mesmo tempo. Dumont, outra vez: "A coexistência paradoxal do amor e da violência desenvolvidos por Hadewijch - nas suas Visões, Cristo aparece como um guerreiro - é uma questão perturbante em termos de julgamento moral porque faz coincidir dois contrários que são hoje apanágio do terrorismo contemporâneo, onde a violência é um meio de atingir a plenitude em Deus". Dumont refere-se obviamente aos "mártires" do terrorismo islâmico, que no filme jogam um papel de confluência com esta Hadewijch ficcional.


Mas também é aí que entra o cinema, como modelo catártico: "As tragédias gregas, Shakespeare, Corneille, Racine, dão ao espectador a possibilidade de se purgar desta violência residual confrontando-o com personagens onde estes contrários coexistem, tomando-os não como um exemplo mas como uma prova". É este tipo de catarse que Dumont procura, e a sua Hadewijch "é esta parte absoluta da nossa alma de que é preciso fazer o luto: tanto o amor de Deus como a sua violência punitiva". A Hadewijch de Dumont "não é uma pessoa, é uma representação, uma representação de uma parte interior e primitiva de nós próprios".

Dumont reclama uma perspectiva "laica", acrescentamos nós que teórica e distanciada. Afinal de contas, Hadewijch é tanto uma "representação de nós próprios" como as personagens dos terroristas o são. "A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva". A sua Hadewijch, diz, "denuncia este arcaísmo revelando-o: o Amor Puro, que ela encarna, transporta os germes da morte e do extermínio, porque levando este amor ao absoluto estabelece-se a concidência dos contrários: Amor Puro e Pura Violência". O que se passa nas cenas finais, depois do atentado, é portanto uma superação desta equivalência? "É um renascimento, um renascimento para o amor humano como uma nova via espiritual, fora de Deus, numa refundação do Sagrado". Que o agente deste "amor humano" seja um homem vulgar, marginal, ex-presidiário, apenas circunstancialmente "providencial", constitui um "clou" tingido de ironia? "Antes uma impassibilidade [de Dumont] perante o destino trágico da personagem, de que me cumpre, fazer, sem vacilar, a representação".

Esta personagem masculina cuja função dentro do filme só se ilumina nos planos finais, acentua a possibilidade de se encontrarem pistas em comum entre um filme como "Hadewijch" e certos elementos caros ao universo bressoniano, cineasta de quem Dumont é frequentemente aproximado. Queremos saber, em primeiro lugar, o que pensa ele dessas associações: "Seria mais justa a referência a Jean Epstein, que se inscreve num realismo mágico, ou mesmo num simbólico, que para mim foi mais marcante". Prefere ir direito a Georges Bernanos [autor do "Diário de um Pároco de Aldeia" e da "Mouchette" que Bresson adaptou, e do "Sob o Sol de Satanás" que serviu de base ao filme de Pialat], à ideia de "um Mal recluso na natureza ordinária dos seres e das coisas e a procura da Salvação", que ele, Dumont, trata "a partir de uma leitura laica".
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Luís Miguel Oliveira, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR

"Hadewijch" - abram alas para um filme magnífico - acompanha o percurso de uma jovem devota que vai levar a sua fé em Deus ao extremo.

"É uma 'trip' mística" - palavras do cineasta francês Bruno Dumont.

Perante "Hadewijch", folheamos calendários passados: a quinta longa-metragem de Bruno Dumont chega a Portugal um ano e sete meses depois da sua estreia no hexágono. Chega tarde, dada a sua importância, mas não tarde de mais, pois este foi um dos filmes magistrais de 2009, de longe o mais conseguido no forte trajeto do cineasta francês. Recordamos que este ex-professor de Filosofia feito realizador no fim dos anos 90 ("La Vie de Jésus", "L'Humanité"...) é uma voz dissonante, revoltada, violenta contra a norma corrente do cinema do seu país. Dumont filma habitualmente na província, com atores não profissionais. Anda à procura das caves mais obscuras do âmago do ser humano. Realizou entretanto "Hors Satan", apresentado há semanas no Un Certain Regard de Cannes. A conversa que se segue foi gravada em Paris naquele ano de 2009. Em causa está Céline/Hadewijch (sublime aparição de Julie Sokolowski), devota adolescente a viver num convento. A madre superiora, temendo o fanatismo religioso, lança-a para o mundo exterior. Parisiense e filha de um diplomata, rapariga siderada por crucifixos, Céline não se adaptará a esse mundo. Conhecerá Yassine e Nassir, dois irmãos muçulmanos, encontrando em seguida uma desesperada forma de expressar a sua fé em Deus. É uma figura perplexa, meio humana, meio crística, solitária; quase louca.

O que procurou na personagem?
Um apelo à Graça e a história de um sacrifício. Céline sacrifica-se por todos nós. Põe um fim a tudo. Este filme quer recuperar a figura e a postura de uma religião, neste caso a cristã, levada ao seu apogeu, isto é, à sua própria demência.



Como assim?
Eu acho que o ser humano tem necessidade da vida espiritual e da vida sagrada, mas fora do cartão postal religioso e institucional das igrejas. Uma espiritualidade sem transcendência. "Hadewijch" não é um ato de fé. E se estou interessado no misticismo é porque ele também nos leva para além da filosofia, para além das questões da razão, da palavra e da nossa compreensão do mundo. O olhar místico não é intelectual, e o cinema para mim não é nenhuma igreja. Mas o cinema pode ser um lugar de experiência do sagrado. Julgo por isso que misticismo e cinema estão muito próximos, há entre ambos uma circulação possível. Ao mesmo tempo, descubro-me metido num terreno difícil de descrever. Não sou religioso, não sou crente, mas acredito na Graça e no valor do sagrado. Vejo-os como valores humanos.

Mentes mais 'clínicas' poderão ver em Céline outra coisa: o retrato de uma histérica. Em tempos idos, mais sensíveis às questões da fé que o mundo atual, essa histeria seria sinónimo do que outrora se chamava uma vida de santa. Concorda?
É evidente que estamos perante uma histérica, mas sobre isso tenho algo a dizer: o que está em jogo neste filme é a parte de histeria que existe em nós próprios. A visão do filme está condicionada por essa camada residual de espiritualidade que existe em nós e que pode tomar formas absolutamente monstruosas. Céline caminha para isso. Ela possui uma santidade laica. É atraída pela santidade, que tende a tomar a forma de uma elevação poética comum aos seres humanos. Qualquer pessoa que esteja apaixonada é atraída por essa força, e Céline está apaixonada por Deus, pelo seu mistério. Quanto mais ele se esconde, mais ganha presença. E sem privação não há regozijo. Amar alguém é ser capaz da privação. Mas quando se ama o espírito, como lhe dar forma? Este é o meu maior problema enquanto cineasta, porque o espírito não se filma, é invisível, e eu só consigo filmar o que está à minha frente.

Céline é uma personagem consciente do seu destino, coisa rara num filme de Bruno Dumont. E a mise en scène de "Hadewijch" é a mais clássica de todos os seus trabalhos.
Há uma tradução do classicismo do pensamento e do corpo da protagonista, e o facto de ela ser mulher tem também importância para mim. Era preciso filmar Céline pelo seu modo de expressão mais puro, num formato 16:9, sensível a questões de luz, porque Céline é, também ela, uma personagem iluminada. Tentei que os aspetos técnicos se aproximassem da humildade da personagem. Também fiz as misturas de som em mono para que o som ficasse o mais fixo possível ao enquadramento. "Hadewijch" está fatalmente preso a uma expressão de cinema que tem os seus rituais, aspetos que pertencem a uma história iconográfica do religioso.

Uso da elipse?
A matéria de "Hadewijch" encontrou essa escolha. O tempo racional não se coaduna com o filme. O apartamento de Céline, o concerto rock, a própria cidade de Paris: nenhum desses elementos é aqui racional. No argumento havia noções de casualidade muito precisas que a montagem depois anulou: a elipse aumenta a natureza do poético, recusa a explicação racional, e Céline não se explica. Nem é racional o que ela acaba por fazer no fim. A elipse permitiu-me erguer a trip 'mística' da personagem e, justamente, unir os dois polos de "Hadewijch" comuns a todos os meus filmes: o amor e a violência.

Porque desaparece o pai de Céline?
Ele é inexistente. Um homem da política, incapaz de acompanhá-la. Nassir, o seu irmão espiritual, talvez a compreenda. Já Yassine é uma personagem fundamental, pois é o único que mantém contacto com a realidade.

Como encontrou Julie Sokolowskl?
À saída de uma projeção do meu filme "Flandres", numa sala da Normandia. Gostei da sua presença. Ela não tinha vontade nenhuma de fazer filmes, mas eu já estava à procura de uma atriz e convidei-a para o papel. Julie não se deixou deslumbrar pelo cinema um único segundo.

Houve algum debate especial em França em tomo de questões religiosas devido ao desfecho do filme?
Não. "Hadewijch" foi feito contra a religião. Se Céline se convertesse ao Islão, isso seria um problema, uma provocação inútil e estúpida. Não é o caso. Ela permanece cristã do início ao fim. O seu ato extremista é indissociável da sua fé. O problema de Céline é só um: onde está Deus? No amor? Na contemplação? Ou na luta armada? A fé é uma alienação - é o que eu quero dizer. Seja cristã, muçulmana ou outra qualquer. O crente é um ser alienado.
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Francisco Ferreira, Expresso




Título original: Hadewijch
Realização e Argumento:Bruno Dumont
Director de Fotografia: Yves Cape
Montagem: Guy Lecorne
Interpretação: Julie Sokolowski, Yassine Salime, Karl Sarafidis, David Dewaele, Brigitte Mayeux-Clerget, Michelle Ardenne, Sabrina Lechêne, Marie Castelain
Origem: França
Ano: 2009
Duração: 120’
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