Armand não é um herói qualquer - ele é O Rei da Evasão. 2ªf, IPJ, 21h30.


O argumento é espesso como uma folha de papel, e daí não vem mal pois a especiosa galeria de personagens de O Rei da Evasão e as situações que arrola, quase sempre a dar para o absurdo, mas ainda assim verosímeis, bastam-se a si próprias como expressão narrativa de uma comédia de costumes em crise.

A vida do gay de campo é, segundo Alain Guiraudie, bastante mais monótona que a vida do gay de cidade. No entanto, apesar da sua aparente rotina induzir ao aborrecimento, a existência de Armand Lacourtade (Ludovic Berthillot), vendedor de máquinas agrícolas na meia-idade, gira à brava quando – por ser um bocadito cobarde para lutar – paga a uns rufias para não violarem a jovem Curly Durandot (Hafsia Herzi), a rapariga se apaixona por ele, ele resolve dar uma volta experimental, e ambos embarcam numa fuga aventurosa.

Acossados por polícias e familiares e amigos e outros figurões de alguma forma relacionados, a perseguição serve também para a realização integrar na narrativa os segredos escondidos, os vícios que tornam a província interessante, e é aí, nessa revelação, que se apresentam os principais elementos desta fantasia realista, explorando Guiraudie a bizarria dos acontecimentos que cria com olhar sarcástico e terno.
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Rui Monteiro, Timeout


Falar de um filme em que o herói, um quarentão pachorrento chamado Armand Lacourtade (grande papel de Ludovic Berthillot), ganha a vida numa pequena terriola da região de Toulouse como vendedor de máquinas agrícolas pode parecer programa pouco sedutor. Porém, que as almas descansem: Armand não é um herói qualquer - e a vida do protagonista não deixará de seduzir-nos até ao fim. A sua 'crise dos quarenta' também não é comum: homossexual e celibatário, homem que (descobre-se depois) transpira generosidade e ternura por todos os poros, Armand é alguém que chegou a uma espécie de encruzilhada existencial e afetiva. Ele é o rei do título e a história deste filme coincide com a história da sua 'evasão'. Acrescente-se ainda que a 'evasão' tem nome de jeune fiille en fleur: uma adolescente fogosa, de 16 anos, chamada Curly (Hafsia Herzi, a jovem atriz de origem magrebina revelada em "O Segredo de um Cuscuz") que, por acasos do destino, se apaixona pelo nosso redondo bonacheirão e se atira para os seus braços. A relação entre ambos, independentemente das preferências sexuais de Armand, ficará na fronteira da amizade e do amor. E contar-se-á na história de uma fuga, com o seu quê de patusco e comovente, naquele bosque que recorda os policiais do film noir. Armand e Curly têm uma aliança secreta e uma relação pura, tão pura que talvez seja preciso recuar ao cinema de Jean Renoir para encontrar outra igual.

Guiraudie não é desconhecido no nosso país. A sua primeira longa-metragem, "Os Bravos Não Têm Descanso" (de 2003), tratado de revolta adolescente contra a estupidez dos adultos, esse road movie gay e sonâmbulo cheio de surpresas, estreou em Portugal. Guiraudie fez depois "Voici Venu le Temps" (de 2005) e quatro anos depois estreava em Cannes este 'rei' que agora chega às salas. É preciso contudo voltar às magníficas médias-metragens que o realizador assinou em 2001, "Du Soleil Pour les Gueux" e "Ce Vieux Rêve qui Bouge", para enquadrar seriamente o filme novo. Nessas médias-metragens, Guiraudie inventou uma nova espécie de herói, operário e homossexual, que casava, com délicatesse rara, uma afirmação sexual com outra de natureza política, espreitando o olho à poética das utopias. Esses 'heróis guiraudianos', provincianos e sonhadores (Armand é um deles), de modo algum se relacionam com as personagens homossexuais do cinema francês feito em Paris. É que, no cinema de Guiraudie, a homossexualidade jamais é a 'exceção', um 'direito à diferença', muito menos um fator de escândalo. Será por isso que os seus filmes, que respiram e vibram de vida para lá dos preconceitos, parecem depois tão escandalosos?

Nas suas pequenas fábulas do quotidiano, dirigidas por uma pulsão desenfreada e quase anarquista, o que Guiraudie celebra afinal são as leis do desejo e os seus sinuosos caminhos, um desejo que, pelos milagres da ficção, se descobre no gosto pela aventura e transforma este autor num dos mais inteligentes cineastas do hexágono. Por aquelas bandas, nunca a euforia foi tão doce.
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Francisco Ferreira, Expresso


Alain Guiraudie fez-se notar no princípio da década, na sequência de um punhado de curtas e médias-metragens, nomeadamente "Ce Vieux Rêve qui Bouge" (2001), que lhe valeram elogios importantes (como o de Godard - quando Godard diz bem de um filme isso tem um certo peso e causa um certo efeito, até porque ele não diz bem assim de tantos filmes). As longas-metragens que Guiraudie dirigiu posteriormente parecem nunca ter causado o mesmo tipo de reacções. Vimos por cá a primeira delas, "Os Bravos Não Têm Descanso" (um belo filme), mas a segunda, "Voici Venu le Temps", ficou por ver.

À terceira longa-metragem de Guiraudie voltamos ao contacto com ele. "O Rei da Evasão" serve, no mínimo, para constatar que o seu cinema conserva um conjunto de singularidades a que vale a pena prestar atenção. A mais saliente delas será o seu lado farsante, inclusive (ou sobretudo) na forma como joga com códigos de género e respectivo reconhecimento. "Os Bravos", se bem se lembram, era um filme que, sem sair de uma região do sul de França, "fingia" ser uma daquelas sagas de aviadores como as que na Hollywood de antanho (Hawks, etc) se cultivava. Em "O Rei da Evasão" encontramos outra figura narrativa clássica, também ela típica do cinema americano: o par condenado, o casal em fuga. Muito se falou, a propósito, de uma versão paródica do "Badlands" de Terence Malick. Desse, ou doutras variações sobre o mesmo motivo: faz algum sentido, de facto, desde que não se queira reduzir o filme a esse gesto de irrisão (e mesmo que "O Rei da Evasão" seja, provavelmente - não vimos "Voici Venu le Temps" - o mais descabelado dos Guiraudies, marxista sim mas de tendência Groucho).

O "regionalismo" igualmente se mantém. É um mundo rural, um mundo de aldeias e campos, posto completamente de pernas para o ar sem nunca se perder a relação com o real. É o que é mais interessante: a maneira como Guiraudie faz o filme deslizar do que começa por ser uma descrição realista de um ambiente (social, laboral, também sexual - o protagonista é um vendedor "gay") preciso e consideravelmente delimitado para um desenvolvimento narrativo onde já estamos num território meramente plausível (mas uma "plausibilidade" construída pelo filme, pela sua lógica). Comédia de costumes? De certa maneira, sim: é um filme onde tudo se põe em marcha a partir do olhar censório dos "outros". O "herói", o "bravo" deste filme, vê-se envolvido com uma miúda adolescente - uma noite salva-a das garras de um bando de rapazolas e ela afeiçoa-se a ele, que é "gay" mas está cansado da "vida de gay" em terra provinciana e começa a pensar em assentar "normalmente". Como a história com a miúda também não é propriamente a coisa mais "normal" naquelas bandas, o cansaço em vez de se atenuar aumenta. Mesmo fisicamente: "O Rei da Evasão" torna-se uma correria por montes e vales, pelas "bad lands" do sul de França, com o casal a fugir da fúria de vizinhos e familiares. Nessa loucura um bocado "screwball", um bocado caótica, é forçoso pensar que Guiraudie se perde um bocadinho. Mas, até pela maneira como a irrisão se volta para o próprio filme, como que o ameaçando, o sentido do risco, e toda a provocação inerente, permanecem intactos.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Título Original: Le roi de l'évasion
Realização: Alain Guiraudie
Argumento: Alain Guiraudie, Laurent Lunetta
Direcção de Fotografia: Sabine Lancelin
Música: Xavier Boussiron
Interpretação: Hafsia Herzi, Luc Palun, Ludovic Berthillot, Pierre Laur, Pascal Aubert
Origem: França
Ano: 2009
Duração: 93'
Classificação: M/12


quando abrir uma conta bancária pode beneficiar o titular e o cineclube de faro... no BANIF!

Caro/a Sócio/a ou Não-Sócio/a,

É com muita satisfação que informamos que abrimos uma nova conta num novo banco (a anterior será fechada) – na AGÊNCIA FARO-HOSPITAL (só nesta é que vale o que vamos explicar a seguir) DO BANIF.

A satisfação advém que, segundo o Protocolo de Cooperação assinado, QUALQUER UM (sócio, familiar, amigo, conhecido, etc!) que abra uma conta em tal agência AO ABRIGO DO PROTOCOLO COM O CCF (o que deverá ser EXPLICITAMENTE REFERIDO no momento da abertura da conta), terá benefícios e dar-nos-á benefícios:

- se abrir uma CONTA ORDENADO Triplus* ou CONTA NOVA VIDA*, o CCF ganhará 20 euros;

- se abrir uma CONTA À ORDEM normal*, o CCF ganhará 10 euros;

- se pedir um CARTÃO DE CRÉDITO, o CCF ganhará 15 euros.

E o que ganha o novo titular? Contas SEM CUSTOS DE MANUTENÇÃO e primeira anuidade do cartão de crédito GRÁTIS (as seguintes deverão ser negociadas directamente com o gerente, que se mostrou disponível para continuar essa benesse).

Tentámos, mas sem êxito, que, por mais produtos subscritos, o CCF pudesse ganhar mais comissões – a razão aduzida foi que este é o protocolo-base...

Mas tentamos ainda que o BANIF possa vir a tornar-se apoiante ou patrocinador do CCF. Para tal sempre dará uma maior ‘forcinha’ se muitos dos nossos sócios (& Lda) abrirem lá conta… :-) Note que este protocolo tem a validade de 1 ano, após o que o CCF deixará de receber comissões por novas contas.

Assim:

1º - A TODOS OS SÓCIOS QUE DESEJEM PAGAR AS SUAS QUOTAS POR TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA, EIS O NOSSO NOVO NIB – 0038 0000 3929 4323 771 07 . Recordamos que até 14 de Fevereiro continua a promoção “pague o ano todo (36€) pelo montante de 10 meses (30€)”!

2º - As comissões só são pagas APÓS UM TOTAL DE 15 CONTAS ABERTAS (toca a mobilizar o pessoal!); a partir daí, de 3 em 3 meses, pagar-nos-ão as devidas pelas que entretanto forem criadas.



São boas notícias, não são? :-)


A Direcção do CCF


(*mínimo de depósito para abertura de conta – 100 euros.)

(A agência Faro-Hospital do Banif encontra-se na Av Cidade Hayward – a que sai da rotunda do Hospital em direcção a Olhão, 3º prédio do lado esquerdo. Tlf 289 895 330.)


Sem pieguices nem patetices, Yuki e Nina ou o mistério da infância. 2ªf, 24, 21h30, IPJ.


FESTIVAL DE CANNES – QUINZENA DOS REALIZADORES
E FESTIVAIS DE BUENOS AIRES, SAN SEBASTIAN, VIENA, TAIPÉ, SÃO PAULO

Sem pieguices nem patetices
Um filme adulto para crianças, ou um filme sobre crianças para adultos: o segredo de "Yuki e Nina" está no tom, na delicadeza das suas modulações, na maneira como desliza entre crianças e adultos sem trair nem uns nem outros. Nobuhiro Suwa e Hyppolite Girardot trabalham aqui o cinema como uma arte que se faz de discrição e de um entendimento tácito entre a câmara e os actores.

Quase se podem adivinhar as razões da aliança entre os dois e o modo como ela se praticou. Girardot é actor, presença regular em filmes franceses, em "Yuki e Nina" pela primeira vez creditado como realizador. Nobuhiro Suwa é um realizador japonês que paulatinamente tem vindo a instalar-se no cinema francês - é o primeiro filme dele que se estreia em Portugal, mas os outros já foram vistos por cá, inclusive "Un Couple Parfait", outro filme francês, que tem algo a ver com este. Há aqui uma maneira de trabalhar os actores, naquele naturalismo todo feito de precisão, que vem da sólida escola francesa (será o contributo de Girardot); e uma mise-en-scène que funciona em tensão e distensão sucessivas, tirando todo o partido dos planos longos e da maneira como os actores partilham a sua presença neles (que é um traço que reconhecemos como uma das maiores virtudes de Suwa).

Há cenas, de resto, que podiam ser de um filme de Suwa (como o "Couple") em que as crianças tivessem tomado o ponto de vista. Na primeira parte há uma espécie de história contada em "off": os pais de Yuki (pai francês, mãe japonesa) vão-se separar, o que é um drama maior para eles do que para a miúda, mais intrigada com esta coisa do amor aparecer e desaparecer (como lhe explicam) do que propriamente amedrontada. Depois, assusta-se mais: é quando a mãe, que vai voltar para o Japão, lhe diz que quer levá-la (e o pai está de acordo). E então as crianças (Yuki e a sua amiga Nina) varrem os adultos da vista, ou varrem-se da vista dos adultos - aventuram-se sozinhas pelo bosque. Sem esquizofrenia nenhuma, bem pelo contrário, "Yuki e Nina" passa aí de "filme francês" a "filme japonês" - entre Ozu e Miyazaki - antes de chegar realmente ao Japão para que - mais que provável moral da história contida no derradeiro plano - se perceba que a infância é um território tão mágico como qualquer bosque de conto de fadas. A partir de uma história de pais separados Suwa e Girardot fazem um filme sobre a infância feliz. Sem pieguices nem patetices. É simples, mas é raro.
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Luís Miguel Oliveira, Público



Escrito e realizado a duas mãos pelo cineasta japonês Nobuhiro Suwa (que assina a sua quinta longa-metragem) e pelo ator francês Hyppolyte Girardot (que se estreia na realização), "Yuki e Nina" é, tanto pela sua produção e pelo seu elenco como pela sua geografia e pela sua estrutura, um filme com dupla nacionalidade. O que temos, então, aqui? Um belo olhar sobre a infância de Yuki, uma criança de pai francês e mãe japonesa radicada em Paris que, de súbito, se vê forçada a lidar com o divórcio dos pais e - pior ainda, na sua ótica - com a iminente rutura da sua amizade com Nina, a sua melhor amiga (pois a mãe planeia regressar ao Japão, levando-a consigo). Trata-se de um drama infantil que o filme explorará com delicadeza, centrando-se, sobretudo, na relação das duas crianças (e veja-se como, muitas vezes, os adultos ficam aqui confinados às margens do quadro ou ao fora de campo). Interpretadas por duas estreantes que, amiúde parecem ser abandonadas à sua sorte para poderem improvisar livremente (daí, talvez, a recorrência dos jump cuts), as crianças encerram-se no espaço a fim de escaparem à sufocante presença dos adultos. É um desejo de evasão partilhado em silêncio que será coroado, no filme, por uma evasão física no espaço: em nome da preservação da sua amizade, as duas amigas farão as malas e partirão à aventura por essa França fora. Com esse movimento de fuga sem destino, o filme tomar-se-á mais livre, é certo, mas também mais frágil, perdendo de vista a oposição fundamental que ia ritmando a mise en scène e cedendo, aqui e ali, a jogos cénicos que não adiantam nem atrasam (parece-nos forçada, por exemplo, aquela repentina comutação entre o espaço francês e o espaço japonês). Mas isso é apenas um pormenor sem importância no contexto de um belo filme vitalista (e impressionista...) que sabe decifrar, como poucos, o mistério da infância.
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Vasco Baptista Marques, Expresso



DECLARAÇÕES DOS REALIZADORES

Um encontro

Hyppolyte Girardot
Conheci o Suwa em Maio de 2004. Estava a preparar o filme Un Couple Parfait e eu fui fazer casting para o papel masculino. Encontrámo-nos várias vezes, falávamos muito e essas conversas agradavam-nos. Um dia contei-lhe uma experiência muito peculiar que tinha tido enquanto actor: tinha realizado filmes em super 8 a partir de trabalhos de improvisação com jovens adolescentes. Isso interessou-o. Mais tarde, telefonou-me, dizendo que gostava que trabalhássemos juntos. Disse-me que queria escrever uma história comigo e co-realizá-la. Achei tudo tão improvável e surpreendente que aceitei. Era uma nova experiência para mim.

Nobuhiro Suwa
Nos meus filmes, procurei sempre uma colaboração e uma implicação mais profunda dos actores, sempre tentei ir mais longe. Mas, eu continuava a ser o único “mestre” do
filme. Aqui, pela primeira vez, queria tentar algo diferente.



À altura de uma criança

Hyppolyte Girardot
Queríamos que o nosso olhar fosse o de uma criança perante a compreensão desta situação, do mundo, e não a história de dois adultos que se separam. Por um lado, porque o Suwa tinha acabado de realizar um filme sobre uma separação, por outro lado porque acho que é mais fácil reencontrarmos o que é estar no lugar da criança. Todos fomos crianças, é uma experiência comum a todos.

Nobuhiro Suwa
Uma das primeiras conversas que tivemos foi sobre sermos pais. A partir daí, falámos várias vezes para escrever o argumento, mas mais que dar a relação entre pai-filho,
queríamos dar o olhar da criança.

A história de uma rapariguinha

Hyppolyte Girardot
O facto de nos projectarmos numa rapariga permitiu-nos uma certa distância.
Quando fazemos um filme, falamos necessariamente da nossa intimidade, mas como éramos dois, ao conjugar as duas, criou-se a Yuki. É a nossa Madame Bovary!

Nobuhiro Suwa
A história de Yuki pode ser vista como o contra-campo do meu filme anterior, que abordava a separação de um casal. Mas o que me interessava sobretudo no filme era a possibilidade de mostrar crianças no cinema, era o desafio de trabalhar com elas. Acho que a maior parte das vezes, o olhar que temos sobre as crianças é um ponto de vista de um adulto: é uma visão das crianças interiorizada pelas pessoas grandes. Não conseguimos aproximar-nos de forma pura e não formatada pela influência dos adultos. O meu desejo era tentar essa aproximação.



A floresta, o lugar mágico entre a França e o Japão

Nobuhiro Suwa
No início, não era suposto filmarmos no Japão, nem numa floresta. Foi algo que apareceu a meio do processo, porque percebi que esta história tinha uma propriedade dupla. Por isso, imaginei a floresta como um local de passagem que, através do cinema, se torna real e exprime o meu trabalho com o Hippolyte. Esta floresta também representa o lugar fora da comunidade social e familiar, um mundo onde só vão as crianças, sem a influência da família.

Hyppolyte Girardot
A floresta, que no filme é o lugar de passagem de um mundo para o outro, tornou-se para nós num lugar “mágico” no filme. Na floresta, estávamos os dois sozinhos, sem marcações. E foi assim que aconteceram momentos que nasceram da improvisação, negligenciando o que estava programado no argumento.

As crianças no cinema

Hyppolyte Girardot
O poder de imaginação de uma criança é inacreditável. São coisas que perdemos quando nos tornamos adultos. Todas as crianças são artistas, conseguem mudar e transformar a realidade. Filmar com crianças é complicado porque apercebo-me que, muitas vezes, as crianças imitam imagens que recebem, muitas vezes da televisão de personagens americanas dobradas em francês. Há uma uniformização nas crianças que vêem muita televisão, como há nos actores que se regem segundo determinado actor do Actors Studio. A inocência, a frescura são coisas difíceis de encontrar. A nossa sorte foi encontrar Noë. Fazer de conta não fazia sentido para ela. Ela tem imenso pudor, mas também uma força cheia de confiança. Ela concentrava-se num plano e depois voltava às suas actividades de uma forma muito simples. Isso faz com que a personagem de Yuki tenha uma espécie de mistério, uma intimidade em que é difícil entrar. Ela disse-nos que as crianças são muito secretas. E acho que o nosso filme conta isso: o mistério, essa opacidade, algo em que não podemos entrar. Enquanto espectador, acho que ficamos intrigados com este enigma.

Nobuhiro Suwa
É verdade que é difícil filmar crianças. Com os adultos, trocamos frases e conseguimos compreendermo-nos uns aos outros. Com as crianças, não temos uma linguagem comum, muitas vezes elas estão a representar pela primeira vez. Mas o que foi muito positivo foi que elas compreenderam muito bem o filme e a comunicação era feita de outra forma. Elas apropriaram-se dele. Mais do que a direcção de actores, eu diria que foi a compreensão delas do filme que foi primordial.



Um filme a dois

Hyppolyte Girardot
Não queríamos um argumento muito escrito, com muitos diálogos, queríamos poder introduzir alterações, partir para direcções inesperadas. Conseguir criar situações de rodagem para que as personagens pudessem improvisar. Milagrosamente, conseguimos ter dinheiro para fazer este filme com um argumento de apenas 30 páginas. Depois, a realização foi uma nova forma de escrita, e por isso uma nova aventura. O grande desafio foi a pré-produção, uma vez que não estávamos juntos. Tomei muitas decisões sozinho, mas quando o Suwa chegava havia uma reflexão comum. Nunca quisemos estabelecer um “método” de rodagem para estarmos abertos a todas as oportunidades. Não podíamos trabalhar oito horas por dia com as crianças. Faltava-nos tempo e era preciso improvisar, plano a plano. Também não fizemos a montagem juntos, por isso fizemos uma espécie de montagem em paralelo. Suwa montava no Japão e eu em França, trocávamos ficheiros. Foi talvez o processo mais complicado, porque acabámos por ter visões diferentes do filme e cada um tem a sua visão do cinema. O que me guiou foi a personagem de Yuki. Qual é a história desta menina? O que lhe aconteceu? Que força tem por causa de pertencer a duas culturas? O que é que ela me diz?

Nobuhiro Suwa
Na rodagem, falámos da repartição do trabalho. Não queríamos fazer tudo a duplicar e não reagíamos da mesma forma. Por isso, na rodagem, o mais simples era que o Hippolyte ficasse com os actores e eu me ocupasse do conjunto das cenas. Na montagem, as nossas diferenças voltaram a revelar-se. No início, eu deveria fazer uma primeira montagem e enviar o resultado à equipa francesa. Houve muitas trocas, foi um processo bastante longo. A experiência de co-realização foi uma grande experiência para mim. Quando vejo o filme agora, há momentos que não teria imaginado assim. Mas acho que era isso que procurava nesta experiência. Graças a esta colaboração, compreendi melhor o meu cinema e o meu desejo de fazer filmes, o que sei fazer e o que tenho vontade de fazer.

Realização: Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa
Argumento: Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa
Imagem: Josée Deshaies
Som: Dominique Lacour, Raphaël Girardot, Olivier Dô Hùu, Takeshi Ogawa
Décors: Emmanuel de Chauvigny, Véronique Barnéoud, China Suzuki
Montagem: Hisako Suwa & Laurence Briaud
Música: Foreign Office
Guarda-roupa: Jean-Charline Tomlinson
Interpretação: Noë Sampy, Arielle Moutel, Tsuyu, Hippolyte Girardot, Marilyne Canto
Origem: França/Japão
Ano: 2009
Duração: 92’



dos respeitos mútuos, 2ªf, 17, 21h30, IPJ - lola + a history of mutual respect



Em complemento, exibe-se também A History of Mutual Respect, filme que valeu a Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt o Leopardo de Ouro no recente Festival de Cinema de Locarno. São 23 minutos visualmente muito atraentes, servidos com um argumento risível e uma representação patética das aventuras de dois rapazes em busca do amor verdadeiro na selva sul-americana.

Um big bang chamado Brillante Mendoza

Este filme é uma catedral em céu aberto do cinema de um cineasta chamado Brillante Mendoza.

Com a retrospectiva, em Janeiro, que a Zero em Comportamento dedicou à obra do filipino Brillante Mendoza - do primeiro filme, "Massagista", 2005, aos dois últimos, de 2009, "Kinatay" e "Lola" -, testemunhámos um "big bang": vimos um universo em expansão, o de alguém que começou em territórios próximos do "exploitation", do erótico (há um filme, "Pantasya", de 2007, que ele não considera na sua filmografia oficial, que assinou como Dante Mendoza) ou até da saga telenovelesca e "glossy" ("Kaleido", 2006), e que se decide a inverter a direcção: da óbvia dança do ventre a um certo tipo de cinema e de espectadores para aquilo que o próprio realizador, em entrevista que publicamos neste suplemento, chama de percurso de auto-descoberta. Tudo terá começado com a visão, tardia, do neo-realismo italiano... e como ele transcedeu isso e se transcendeu.

Veja-se aonde ele chegou: já estando disponível em DVD em Portugal "Serbis"/ "Serviços" (2008) - a verdade é que, valendo o que vale a comparação entre universos distintos, este filme é aquilo que "Goodbye Dragon Inn", de Tsai Ming-liang, não conseguiu ser -, passa agora a estar acessível em DVD "Kinatay" (um "tour de force" infernal em que todos, a personagem principal e nós, espectadores, perdem a inocência) e, em sala e DVD, "Lola", melodrama em que o realizador se despoja daquilo que pode restar de provocador, até mesmo de confronto algo ingénuo, em algumas sequências dos seus filmes, para uma súmula de (neo-?)realismo e melodrama, de documental e artifício.

Filmando a odisseia de uma avó que procura o corpo do neto assassinado, as suas dificuldades para organizar o funeral, a sua incapacidade de fazer notar a sua existência pela Justiça, e o drama de uma outra avó cujo neto é o suspeito daquele assassínio, Mendoza juntou em "Lola" ("Avó") o que eram duas histórias verídicas separadas. É um atitude e um gesto de contornos algo "pulp fiction", porque podia ter resultados grosseiros, óbvios - reparo que alguns continuam a fazer ao cinema de Mendoza. Mas o que nos é devolvido é de uma subtileza imensa e intensa, tão frágil e tão lírico, mas tão destemido, como uma folha de papel ameaçada pelo vento. E que faz uma síntese e, simultaneamente, uma renovação dos procedimentos do filipino: mistura não profissionais com actores (para quem não duvida que as duas "avós" são mulheres que o realizador encontrou na chamada "vida real" para caucionar a "verdade" do seu filme, saiba que elas são Anita Lindo e Rustica Carpio, vedetas do "star system" filipino), continua a fazer-nos descobrir, através do périplo com as personagens pelas cidades, uma geografia física e humana implacáveis - como que querendo manter-se o mais próximo do documento de uma sociedade que, é esse o ponto de Brillante, é uma ratoeira -, mas cresce na forma como progressivamente integra o artifício.

Isto é grande cinema, e grande cinema político, como também o é a obra de Rainer W. Fassbinder e Douglas Sirk (estes com um acréscimo de masoquismo e de tortura na relação entre as personagens, aspecto que não se destaca no cinema de Mendoza). Isto é grande melodrama, transfigurando as ruas como se elas fossem um cenário de estúdio, mas sendo as as ruas de Manila e não a sua reprodução - os bairros inundados, a sequência do funeral, as noites de chuva, a vegetação como uma estufa, a chuva e o vento, naturais e criadas pela máquina de cinema. Isto é uma catedral em céu aberto do cinema de um cineasta chamado Brillante Mendoza. A Rainha "Lola", de Brillante Mendonza.
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Vasco Câmara, Público



"Lola" é um filme belíssimo com a noção perfeita das forças desencadeadas pela emoção, desde as tempestades exteriores que varrem o espaço urbano, assolado por ventos ciclónicos e chuvas torrenciais, até aos conflitos interiores em duas velhas senhoras dignas, confrontadas com crimes e sentimentos contraditórios de sobrevivência familiar. Todas as condições do grande melodrama se conjugam para fazer explodir o que, de certo modo, parece apenas iminente: as reuniões familiares, a perda do controlo, o excesso de pobreza, uma criminalidade reinante que se abate sobre o domínio do individual. Apenas existe um limite fundamental, que impede que o filme arranque para o delírio absoluto, próprio das obras-primas melodramáticas, uma excessiva atenção à mensagem social, uma espécie de necessidade de explicar o excesso pelas condições circundantes, um "realismo" quase próximo do "film-vérité". Dito isto, trata-se, apesar de tudo de um filme a não perder por nada deste mundo, confirmando um grande cineasta de uma interessante cinematografia filipina, pouco conhecida e valorizada: Brillante Mendoza. Não esqueçam o nome.
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Mário Jorge Torres, Público



Brillante Mendoza passou pela Culturgest em Janeiro. Nome consagrado em festivais de cinema - conquistou prémios em Cannes, Las Palmas e Miami - o último filme do realizador é também o primeiro dele a chegar aos cinemas nacionais: Lola ("avó", nas Filipinas).

Uma velhota está a tentar acender uma vela no meio de uma tempestade. Tem uma criança ao seu lado e quando acender a vela vai colocá-la no local onde o seu neto foi esfaqueado.

Estamos em Manila, nas Filipinas, onde não é coisa estranha alguém perder a vida por causa de um telemóvel. A tempestade – o barulho intimidante do vento – vai continuar enquanto ela se desloca para a esquadra, onde descobre que já há um suspeito para o homicídio. Neste momento não se vão cruzar, mas há outra velhota que está ali para dar comida ao seu neto – preso por esfaquear um homem. Por causa de um telemóvel.

A premissa é avassaladora. O neto de uma matou o neto da outra. Uma procura dinheiro para o funeral. A outra procura uma segunda oportunidade para o neto. E em todo este percurso testemunhamos uma realidade bruta, numa cidade cujas ruas inundadas lembram uma Veneza triste e miserável.

Brillante Mendoza sabe dar-nos subtileza sem nunca nos poupar à realidade. Temos planos próximos em que as rugas não são camufladas, temos cenas que se prolongam com calma – como a de uma das avós à procura de uma casa de banho no tribunal –, desafiando-nos a não desviar o olhar. Há problemas sociais e económicos e há pobreza sujeita a burocracias tolas. E tudo isso está aqui, sem que Lola se assuma como manifesto político, sem se deixar corroer por excesso de moralismo. Pelo contrário: nunca deixamos de sentir que o importante está naquelas duas mulheres, envelhecidas e aparentemente frágeis, mas incapazes de desistir.

Lola é assim: um trabalho extremamente seguro, num ritmo pausado mas implacável a cada cena.

É também um exercício difícil para os seus espectadores. Algo ingrato, até, para quem pensa poder encontrar aqui uma sensação de closure, de lição moral e definitiva. Mas tudo se esbate quando percebemos que é possível negociar coisas tão absolutas como a morte e a vida, apenas porque é necessário prosseguir caminho. Às vezes o cinema não tem nada de divertido; muito menos de escapista. É um soco no estômago que dói que se farta. E vale a pena por isso mesmo.
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Pedro Filipe Pina, vousair.com




INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
No espaço de quatro meses, no ano de 2009, Brillante Mendoza passou de besta a bestial.

Maio, Festival de Cannes, "Kinatay", gente a abandonar a sala, irada, violentada, a precisar de cortar com uma experiência tão negra e a necessitar de espantar fantasmas - e aquela declaração (apressada) de um crítico americano de que talvez não houvesse 10 espectadores no mundo que dessem por bem empregue o dinheiro no filme (o que, apostamos, ele já engoliu).

Setembro de 2009, Festival de Veneza, e aqueles que tinham feito o manguito meses antes ao prémio de realização dado em Cannes, pelo júri presidido pelo actriz Isabelle Huppert, a descobrirem que o sádico filipino que não resistia a ir sempre até ao fim das coisas afinal era capaz "disto" - e isto é "Lola".

É natural que tenha sido assim, porque o próprio Brillante também precisou de oscilar.

"'Kinatay” foi muito difícil de filmar, técnica e emocionalmente, tive de estar a 100 por cento. Depois de Cannes o filme continuava comigo, tinha tirado tudo de mim, obrigou a uma exposição profunda do meu ser na forma como vivi alguns dos momentos do filme. Precisei de fazer outro logo a seguir, de colocar a minha energia artística ao serviço de outra obra.

'Lola' era um projecto com três anos, era a estação das chuvas nas Filipinas, que inunda tudo, o que me convinha, e não esperei. Precisava deste filme emotivo, como uma pausa para respiração. Queria provar a mim próprio que podia ser uma pessoa emotiva. Que não sou apenas soturno", diz-nos, ao telefone, de Manila.

Mas numa coisa e noutra, Brillante Mendoza fez "bingo". Bem vistas as coisas, é o mesmo negrume nos dois filmes, que não são diferentes como o dia da noite, embora haja mais escuridão em "Kinatay" e mais luz - e sobretudo mais água em "Lola".
Mantém-se, por exemplo, essa forma de colocar as personagens em movimento, sempre a andar, sempre a andar, sempre a andar, para mostrar no final (Brillante não recusa que esse dispositivo pode ser lido como "statement”, esses finais de filmes em que há uma falsa e amarga resolução) que não chegam a lado nenhum na sociedade fllipina - não precisa de ser um périplo por uma cidade, pode ser o interior de um cinema delapidado tornado hora de ponta para os corpos, como em "Serbis" /"Serviços" , de 2008 .

São como os hámsters na roda da gaiola, sempre em movimento e sempre no mesmo sítio, de onde nunca se sai, porque qualquer hipótese de saída tem um preço emocional e moral que obriga a que se desça mais um degrau na escala da integridade humana. "É uma forma de mostrar que nas Filipinas as pessoas estão enjauladas".

"Kinatay", então: um aspirante a polícia, acabado de casar, com filho já nascido, e com direito à vida nor¬mal, vê-se metido numa carrinha na noite de Manila - e o espectador vai com ele, não tem outro remédio se vê o filme ... - em direcção à violação e desmembramento, porque o trabalho é completo, de uma prostituta que não pagou as dívidas. O espectador é "voyeur" e passivo como esse jovem normal, e deve ser isso o que (nos) leva a perguntar: "Mas aonde é que este Brillante nos quer levar, o que é que ele quer provar?". E tal como o jovem, normal como nós, acaba como se nada tivesse acontecido à sua vida, que pode continuar, também o espectador sai, aparentemente, sem ponta de sangue no vestuário - mas não fica incólume, e assim se explica que se vire contra o realizador. As reacções de Cannes estão explicadas.

"Lola": duas avós com percursos cruzados numa Manila inundada pela estação das chuvas que transforma bairros da capital filipina na Veneza da Ásia, mas esta Veneza é proletária e endurecida, já se acostumou aos caprichos naturais e anda de barco onde antes andava a pé.

Uma avó vai reconhecer o cadáver do neto morto na véspera num assalto - compra o caixão e trata do ritual funerário, mas quer ver o rosto do assassino, e Brillante, ao ir atrás dela, tanto desenha a geografia de uma cidade como descreve o mundo relacional da personagem, e assim o nosso mundo de espectadores também se expande.

A outra vai visitar o neto que está preso, acusado de ter assassinado um rapaz num assalto.

As duas, interpretadas por velhas divas do cinema filipino, Anita Lindo e Rustica Carpio, chegam a um compromisso, porque não há dinheiro para advogados e para levar o caso em frente. A lei, a moral e a ética não são a mesma coisa, é verdade, mas as três ficam na mesma situação - para trás - e o último plano é significativo sobre a vida e o esforço dos hámsters.



O que se assinala em "Lola" - diferença assinalável em relação a "Kinatay" - é que, com este filme, o homem, Brillante Mendoza, ascende ao modo cruel do melodrama de que Douglas Sirk e, inspirado por ele, Rainer W. Fassbinder foram cultores: um afago às personagens na ratoeira. Colocando de fora a tortura sadomasoquista em que o realizador alemão de "O Medo Come a Alma" se esmerou com as suas personagens e com os seus actores - o cinema de Mendoza prescinde disto -, também aqui o melodrama é arma política. Não que Brillante não tivesse já estado nesse território - "Foster Child" (2007), sobre os meandros do mercado da adopção nas Filipinas e sobre as dependências emocionais e económicas que isso engendra, já era um magnífico e comovente melodrama. Mas desta vez a fusão entre o documental e o artificioso é mais imbricada e estarrecedora - continuando fiel à forma de trabalhar do realizador, que se baseia em históricas verídicas, mistura actores profissionais com não-actores, não os dirigindo, integrando os "acidentes". A chuva, por exemplo, em "Lola". E aquela sequência, uma avó ("lola", em filipino), o neto, um guarda-chuva e uma vela que o vento não deixa acender, que é tão lírica - e tão coreografada - como uma sequência de um mudo filmado em estúdio, e não é excessivo delírio ver em Anita Lindo a fragilidade de papel ao vento de Lilian Gish num filme de Sjostrom ou de Griffith. Há momentos em que os cenários naturais, os exteriores, parecem tão naturais como uma estufa.

"Os planos com cenas de chuva e de vento misturam artificio e realidade, sim" , confirma o realizador. "Não estou a perder o que desenvolvi antes, ou seja, esse sentimento de verdade do cinema. Estou a trazer algo de novo ao meu cinema. E alguns efeitos existem para tornar as coisas mais eficazes. Mas, tal como nos outros meus filmes, também aqui não ensaiei com os actores, a não ser questões técnicas. Digo-lhes para fazer o que têm a fazer e filmo-os. Essa sequência, concretamente, filmei-a às 7h30 da manhã. Queria apanhar aquela luz quando ainda é um bocado escuro. Tínhamos uma máquina de vento. E aconteceu uma coisa: acabámos de filmar, e alguém que vivia naquele bairro aproximou-se de mim e disse: 'Ainda bem que filmou hoje, porque ontem um ladrão foi morto exactamente no sítio onde você colocou a vela.' Eu não queria acreditar: era essa a história do filme, aquilo que estávamos a filmar, uma avó a colocar uma vela no lugar onde o neto foi morto. Nem disse nada aos meus actores, mas isso para mim, no primeiro dia de rodagem, foi como uma premonição: que o filme ia conduzir-os." Apanhemos então este melodrama, está escrito no vento.

"Já era realizador quando vi os filmes do neo-realismo italiano. Como espectador, antes de ser cineasta, não eram estes os filmes a que eu dava valor. Foi quando comecei a fazer filmes percebi o que é que ali estava. E isso é algo que cresce connosco. Aquilo que é hoje o meu cinema é uma descoberta minha. Eu adorava ver os 'blockbusters' de Hollywood. Mas depois tive a sorte de ser verdadeiro em relação a mim próprio, de seguir os meus instintos, e assim desenvolvi a minha estética. Afastei-me do que gostava antes. É uma descoberta. De mim próprio".

E uma forma de construir para si um lugar, no novo cinema filipino, de uma certa solidão. Que convive com a aclamação internacional. Como reconhece, o público filipino "em geral" não vai ver os seus filmes. "Por isso, quando estreio, adopto um 'low profile' , duas ou três salas, sessões especiais. Os meus filmes não são para o público 'mainstream' filipino. Mesmo que tenhamos muitos prémios, não haverá muita gente a ver os meus filmes" - estamos a falar de Manila e das Filipinas, só que sabemos que isto se passa em outros países e outras cidades. "Talvez numa outra vida. É preciso estar desperto para apoiar este cinema".

Depois do prémio de Cannes, a "Kinatay" - e logo a um filme tão implacável como "Kinatay" -, o Governo filipino e a então Presidente do país, Gloria Arroyo, foram obrigados a não-estranheza pelo silêncio governamental e presidencial e Arroyo teve de dar os parabéns. "É irónico, porque a pessoa que traz as honras ao país é a pessoa que critica a sociedade desse país. Mas eles não tinham hipóteses de não me cumprimentarem." Até Tarantino, que em 2009 competia, com o seu "Sacanas sem Lei", contra "Kinatay" para a Palma de Ouro mandou uma mensagem ao realizador, felicitando-o pelo que tinha conseguido fazer.
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Vasco Câmara, Público

Título original:
Realização: Brillante Mendonza
Argumento: Linda Casimiro
Interpretação: Anita Libna, Rustica Carpio, Tanya Gomez, Jhong Hilario,
Ketchup Eusebio, Benjie Filomeno, Bobby Jerome Go, Geraldine Villamil, Nico Nullan, Hope Matriano, Tim Yap
Fotografia: Odyssey Flores
Montagem: Kats Serraon
Música: Teresa Barrozo
Origem: França/ Filipinas
Ano de Estreia: 2009
Duração: 110’


A HISTORY OF MUTUAL RESPECT, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt
Curta-metragem rodada no Brasil, Argentina e Portugal, produzida com um orçamento muito reduzido por uma equipa de três elementos: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt e Natxo Checa. O elenco de actores tem como principais intérpretes os dois realizadores e uma série de actores não profissionais provenientes dos locais de filmagem. O filme narra a história de dois jovens rapazes americanos confrontados com a desilusão da experiência na cidade utópica e modernista de Brasília. Partem então em busca do "amor puro", que irão encontrar numa jovem indígena da floresta virgem.


Título original: A History of Mutual Respect
Realização: Daniel Schmidt, Gabriel Abrantes
Argumento: Gabriel Abrantes
Interpretação: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt, Alcina Abrantes, Joana nascimento
Fotografia: Natxo Checa
Montagem: Gabriel Abrantes, Daniel Schmidt
Origem:
Ano de Estreia: 2010
Duração: 23’

Entrevista aos realizadores



RUÍNAS NO INTERIOR - voltamos ao Museu, mas desta vez começamos numa 4ªf. a de 12. 21h30. depois, continua até ao fim do mês nos moldes do costume.

Regressado a Portugal em 1973, após treze anos de formação e experiência em Inglaterra, José de Sá Caetano viu aprovado, pouco antes do 25 de Abril de 1974, um projecto de longa metragem - cuja rodagem decorreu, já, entre o Verão e Outubro de 1975, vindo a intitular-se As Ruínas no Interior. Sá Caetano reparou que, “no poder e suas margens, estavam então os que eram adolescentes, à época em abordagem”. A acção decorre por 1943, próximo duma aldeia de pescadores, durante as férias da Páscoa. Um avião de combate despenha-se no mar, junto à praia, sobrevivendo os dois tripulantes - que serão protegidos pelos filhos de uma belga ali refugiada.

A produção coube à Tobis Portuguesa, a cargo de Henrique Espírito Santo, sendo o orçamento avaliado em 3.500 contos. Elso Roque dirigiu a fotografia, com exteriores em Olhão - Marim, Ilha de Armona e Costa de Caparica. Em sugestivo preto-e-branco na definição de atmosferas, mistérios e cumplicidades, com rigorosa construção narrativa ou dramática, As Ruínas no Interior foi galardoado em 1977 com o Prémio à Primeira Obra, no Festival de Hyères.
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(Instituto Camões)


Situado durante a Segunda Guerra Mundial, As Ruínas no Interior é um filme belíssimo e dolorido, assente nos contrafortes da memória e da mágoa.

Travessia de um tempo de silêncio, lugar de uma infância burguesa, placidamente triste, esta película em que Sá Caetano se inicia na longa-metragem de ficção é uma das esperanças mais seguras do cinema português da década de 70.

As Ruínas no Interior marca, por assim dizer, o princípio de uma reflexão sobre as raízes do nosso presente, não enjeitando origens de classe, nem oblíquas fascinações, antes esforçando-se por fixar, pedra a pedra, o espaço de uma realidade social, no seio da qual muito do que hoje somos encontra seiva e impulso.

Extremamente sóbrio, preciso, económico de meios, este filme é feito de ritmos asfixiantes, durações de tédio, uma paz poder nos arredores do medo; por isso é um filme apaixonante.
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Jorge Leitão Barros, Dicionário do Cinema Português 1962-1388

Portugal, 1943. Semana Santa na costa algarvia. Uma casa palaciana de influência árabe, os seus velhos senhores em visita de férias, uma belga refugiada, crianças. A neutralidade portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial vista pelos olhos e pela memória de uma criança, hoje cineasta. José de Sá Caetano nasceu em Portugal, em 1933. Teria dez anos quando viveu seguramente o que agora recorda. Depois estudou arquitectura, e foi até Londres, onde se formou em cinema pela London School of Fihn Technique e pela Salde School of Art. Antes do 25 de Abril, já em Portugal, foi vivendo, trabalhando em cinema digestível (anúncios, etc), até que pôde, finalmente, rodar o seu primeiro filme pessoal: "As Ruínas no Interior", um filme que data ainda do plano de produção de 1974, última atribuição de subsídios do Ministério de Moreira Baptista, mas que Sá Caetano pôde, felizmente, realizar em completa liberdade. "As Ruínas no Interior" denuncia-se desde logo como obra confessional, de quem fez suas aquelas mesmas imagens (ou outras idênticas), vividas durante os anos de uma guerra, "perdoados" a Portugal. Na costa algarvia, a burguesia portuguesa improvisava piqueniques ritualistas, que relembravam à distância o "déjeuner sur l'herbe" dos franceses Renoirs. "Vamos sentir a vossa falta, quando acabarem as férias", confessa a belga refugiada, dirigindo-se ao casal de anfitriões. "Tempo de férias", as "férias" de um Verão de 43 português. Um tempo cristalizado que se situa entre o Verão romantizado por Mulligan e o Verão violento de um Zurlini, a sofrer na carne a guerra. Um tempo de guerra português, que era necessário ver reconstruído, mesmo com "um suceder de cenas de uma família teatral, com propensão trágica". É pois, o próprio filme que nos fornece um país que passa ao lado de uma guerra (Salazar negociando as listas de resistentes portugueses com a Inglaterra, a quem cede ainda bases militares nas ilhas, a troco da sobrevivência do regime fascista). Um país onde, para lá das brincadeiras de crianças que se salpicam à beira-mar, existem as tensões latentes e apenas encobertas: resistência que trabalha na sombra reunindo então a burguesia liberal e o proletariado (que ouve notícias das frentes através da voz de Fernando Pessa, via BBC), a repressão que vigia de perto e de longe, e no momento exacto irrompe do nevoeiro, que tudo envolve, para se mostrar activa e sempre presente: os desequilíbrios sociais gravosos. Será neste pântano adormecido que irão cair dois pilotos de um "caça" inglês. Homens sequiosos da sua terra ("Quando esta guerra acabar vou ver 'E Tudo o Vento Levou'") que vêm despertar emoções esquecidas. Depois da sua rápida passagem pelas praias do Algarve, as brincadeiras das crianças são já outras, marcadas agora pelos "raids" aéreos, pela descoberta de uma guerra longínqua, da qual junto a si têm apenas as silhuetas dominadoras dos guardas do templo dessa felicidade fictícia.

O que mais surpreende nesta primeira obra é a rigorosa secura da sua escrita, sacudida, impondo a ruptura como constante, de grande expressividade visual, denotando uma sensibilidade intimista que recusa a demagogia fácil e a demonstração de virtuosismo estéril. Estamos seguramente na presença de um cineasta de quem haverá muito a esperar, o que pode já vir a acontecer na sua próxima obra, a adaptação do romance de José Cardoso Pires "O Delfim".
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Lauro António, in Diário de Notícias, 3 de Novembro de 1977

Os filmes de Sá Caetano são verdadeiros «objectos estéticos não identificados». Não se inserem em nenhuma tradição explícita, não se referem a nenhum outro campo artístico privilegiado (nem a literatura, nem o teatro, nem a pintura). Mas há mais do que isso: são obras que parecem viver voltadas para dentro de si mesmas, não desferem sinais para o exterior, não enviam apelos. A imagem em Sá Caetano recolhe-se numa espécie de ensimesmamento. Quem recordar sem grande atenção As Ruínas no Interior e o filme seguinte de Sá Caetano, estranhamente intitulado Um S Marginal, poderá supor, e com motivos de sobra para tal, que se trata de duas películas inteiramente estranhas uma à outra. Até certo ponto, isso é verdade. Mas elas são estranhas uma à outra porque são estranhas seja ao que for, e é essa estranheza, esse modo convicto com que parecem repelir qualquer aproximação. que as irmana. (...)

Nenhuma das suas histórias tem uma origem e um desenlace, todas elas parecem surpreendidas a meio de um desenvolvimento cujas pontas nos escapam. Mas este filmar a meio de é uma constante de Sá Caetano. Porque o filme também não é uma galeria de perfis psicológicos; pelo contrário, as personagens têm contornos tão precários que mal chegam a emergir da nebulosa narrativa donde parecem cair. Mas também não é um filme que se sustente como documento sociológico: as oposições que se estabelecem são quase sempre sumárias e parecem resumir-se a um paradigma pobreza/ riqueza «que fazem as crianças ali penduradas na arvore?», pergunta a mãe; «estão a vê-los comer», responde a criada. É esta silenciosa ruminação de todos os sentidos que confere ao cinema de Sá Caetano uma opacidade inamovível.

Tal opacidade perturba e desconcerta na medida em que um grande apuro formal parece denunciar uma premeditação imensa neste trabalho. E, por outro lado, a constante utilização de uma montagem em paralelo cria a suposição de que as múltiplas interferências de imagens irão desencadear uma teia de significações. Ora o trabalho do filme é, à maneira de Penépole, um adiar obstinado dessa teia. Certas imagens caem sobre outras imagens com o mesmo acaso cósmico com que descem do céu os dois sobreviventes de um avião perdido no mar.

O que pode existir de fascinante em As ruínas no interior é a sensação de estarmos perante um documento histórico que se refere a realidades irreconstituíveis e que pertence a parâmetros de comunicabilidade definitivamente perdidos. Não será por acaso que este cinema do ensimesmamento nos irá dar, com Um S Marginal. um filme sobre os efeitos perversos das tecnologias contemporâneas da comunicação.
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Eduardo Prado Coelho, Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982

Realização: José de Sá Caetano
Argumento: José de Sá Caetano
Fotografia: Elso Roque
Elenco: Françoise Ariel, Keith James, Brian Ralph, Jacinto Ramos, Catarina Avelar
Música: Rui Cardoso
Montagem: José de Sá Caetano e Clara Diaz Bérrio
Produção: Tobis Portuguesa


Dia 12, 21h30; de 13 e 30 Janeiro em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, Museu Municipal (sala audiovisual r/c), entrada livre.
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que mistérios são estes, os de lisboa? grandes! (também) por isso dividimos o filme em 2 partes: dias 10 e 11, 21h30, IPJ, o mesmo bilhete. :-)


O sucesso internacional de Mistérios de Lisboa (site) tem sido verdadeiramente esmagador com uma recepção elogiosa em periódicos como o «New York Times», «Les Inrockuptibles», «Cahiers du Cinéma», «Le Figaro», «Libération», «Paris Match» ou «Le Monde», tendo neste último até espaço na primeira página. Ganhou a Concha de Prata no Festival de San Sebastian e foi agraciado com o prestigiadíssimo prémio Louis Delluc em França.

VIDEOS
Entrevistas a
Raúl Ruiz, Carlos Saboga, Adriano Luz, Maria João Bastos, Ricardo Pereira

Mistérios de Lisboa - Making Of

Reportagem de
rodagem

O filme
em San Sebastian

Programa Janela Indiscreta


O maior mistério de Os Mistérios de Lisboa é perceber o fascínio que exerceu sobre o chileno Raoul Ruiz esta novela excêntrica camiliana, cheia de fidalgas ultrajadas, pondonores, bastardos, piratas, freiras e duelos.

E não é que parece que somos mesmos nós, os portugueses? Este povo fantasista lusitano, carregado de melancolia e menosprezo continua a exercer algum magnetismo sobre realizadores com Raoul Ruiz. Pelo menos, é o que o franco-chileno, 69 anos, autor de mais de 100 obras (em vários formatos e suportes) tem dito em entrevistas em França, a propósito das 600 páginas dos folhetins de Camilo Castelo Branco, Os Mistérios de Lisboa, reduzidas (o verbo reduzir é mesmo para gerar contraste...) a quatro horas e meia de filme (estreia-se hoje, dia 21) e a seis episódios de série televisiva (no canal ARTE em Abril de 2011). Misterioso, de facto. Parece que há qualquer coisa no nosso silêncio. Nas pausas que fazemos quando falamos. Um certo ritmo langoroso que nos impõe a língua e o sentido de ser português. Por isso é que quando lhe Paulo Branco (com quem já colaborou em diversas ocasiões) lhe propôs os Mistérios de Lisboa (1854), de Camilo Castelo Branco, ou um romance de Don Delilo, Ruiz escolheu logo a obra do nosso mais truculento, reaccionário e genial escritor do romantismo. Ao realizador interessava-lhe em termos cinematográficos os tais "silêncios", queria mostrar o ritmo da conversação portuguesa, tão diferente, diz ele, da língua francesa que dá um peso diferente aos diálogos e às palavras. O francês é mais peremptório, o português admite uma forma especial de divagar, de conversar erraticamente, o que, ainda segundo Ruiz, faz parte da vida e do carácter das gentes. As nossas.

Daí ter Ruiz (Tempo Reencontrado, 1999, ou Klimt, 2006) mergulhado neste universo exarcebado de amores de carnalidade pecaminosa, de heroínas febris com olheiras maceradas que sofrem ultrajes e ignomínias, de reclusões conventuais, de filhos enjeitados e bastardos inglórios, de fidalgos que se batem pela honra, de padres atormentados e piratas redimidos... Contava então Camilo 29 anos, os Mistérios era a sua segunda incursão literária, a escrita, ainda não apurada, desfiavam-se em folhetins num diário portuense. Tão distante ainda da perfeição alcançada em Amor de Perdição, já obra da maturidade, aos 35 anos, escrita, aliás, romanticamente nas masmorras, negando o réu Camilo a pés juntos a sua relação ilícita com Ana Plácido. Só que o que em Amor de Perdição era hipérbole, em Mistérios de Lisboa é caricatura. Das suas páginas pigam lágrimas, lamentos e sentimentalismo. É impossível levar a sério o que seria uma espécie de telenovela à século XIX, de consumo pouco exigente. Daí o inteligente estratagema de, no filme, colocar-se em campo um teatrinho de brinquedo. Onde se vai, a cada mistério, acrescentando mais uma personagem. É um assumir do artificialismo. O filme segue a lógica coral e folhetinesca dos Mistérios, de uma forma desconcertantemente linear e metódica. A cada personagem, se abre como que um novo capítulo, muda-se de narrador, de ponto de vista e de voz off. Nem uma gota do vale de lágrimas que se esvai pela tela nos atinge, a emoção não passa, mas tudo está filmado com predominância dos planos-sequência, sem a habitual gramática dos campos e contra-campos. Aliás, às vezes, Ruiz abre tanto o ângulo que apanha grandes quadros, objectos, um papagaio, velas em primeiro plano, personagens ao fundo, transparências e duplos enquandramentos, através de janelas, portas entreabertas, ou as portinholas das caleças. Os décors, os figurinos, a direcção de actores estão a um nível a que não estamos habituados em produções de época nacionais. Os Mistérios enchem o olho, mas no bom sentido. No do bom gosto, pelo menos. E têm a prudência de estacar ainda antes de soar os alarmes do sentido do ridículo.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão




ENTREVISTA AO REALIZADOR
Homem elegante e cordial que parece guardar mil segredos, o chileno Raúl Ruiz, que por vezes assina Raoul ("depende do contexto...", disse-nos), recebeu-nos na sua casa parisiense de Belleville para uma conversa em torno de '''Mistérios de Lisboa." O passado, a infância e o sonho estão fre¬quentemente em jogo no seu trabalho. A sua assinatura artística é única. Aos 69 anos, 117 filme depois ("mas não fui eu que os contei...") e já recuperado de uma intervenção cirúrgica em Lisboa, logo após a, rodagem de "Mistérios...''' que o levou a temer pela vida, continua um cineasta de olhos abertos para o mundo. A entrevista não se esgotou no cinema.
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Origem deste filme?
Paulo Branco propôs-me que escolhesse um de dois argumentos: o de "Mistérios de Lisboa" e uma adaptação de "Cosmopolis", de Don DeLillo, que acabou por interessar a Cronenberg. Não sou suficientemente violento para a violência que o livro de DeLillo exigia. Virei-me então para "Mistérios...", que não conhecia. Sou um corredor de fundo, comecei a trabalhar, nos anos 60, como argumentista de fim de capítulos de novelas mexicanas e fui desde cedo atraído pelo lado arborescente dos folhetins do século XI. O que me agrada neles é a sua disponibilidade narrativa. Nada se abre ou fecha por completo. O folhetim é a coisa mais adversa ao pitch, esse conceito horrível, inventado recentemente.

O que o seduziu no livro?
O som e a essência da língua portuguesa. Tal como o castelhano do Chile, o português é uma língua de discursos implícitos. Dá-se a mal-entendidos e procura-os. Reconheci na prosa de Camilo e no seu romantismo exacerbado essa natureza alusiva da língua. E quis fazer um filme 100% português na perspectiva de um estrangeiro, tal como Eugenio de Liguoro, que era italiano, fazia filmes no Chile, revelando coisas que escapavam aos chilenos. "Mistérios de Lisboa" está mais longe de Eugene Sue e de Balzac do que de Stendhal. Salvo que a prosa de Camilo é frenética. Baseia-se numa estrutura melodramática clássica que, por assim dizer, se dissolve no ar, em reticências. No livro chora-se muito, às vezes a uma média de três cenas por página. Isso, nós cortámos. Carlos Saboga escreveu um argumento que considero de grande nível.


O tempo escapa-se da linearidade nos seus filmes. Em "Mistérios de Lisboa", esse tempo é o do século XIX. Foi fácil encontrá-lo?
O tempo é outro planeta. Para este filme, precisava de um tempo lento, lânguido... De um 'tempo morto.' Procurei aquilo a que um político chileno oitocentista chamou "peso da noite", ou seja, a nostalgia, o passado, a fascinação pela morte e até uma determinada retórica reacionária: tudo isto faz o tempo do século XIX e de Camilo. Ora, este tempo adapta-se na perfeição à mise en scène que mais me agrada, baseada em planos-sequência. Outro fator decisivo: foi a alta definição do cinema digital que me permitiu mergulhar na temporalidade do século XIX. Porquê? Porque com o HD podemos filmar à distância, fazer planos largos, ver o movimento das personagens... 'Nada escapa' ao HD, consegue ver-se de facto o que é a precariedade de um décor do século XIX. Sentir o frio que ele representa. Já para grandes planos, o HD é problemático. A sua textura dispersa a energia em vez de a concentrar. Não me convence.
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O décor é uma personagem do filme?
Absolutamente.. É o coração do filme e a personagem coral que o acompanha.
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Os seus atores disseram que você trazia para o plateou uma tranquilidade contagiante. Como se a rodagem se fizesse por si própria e pela graça natural do seu movimento. Que mistério é este?
Não sei responder. Quando um realizador faz um filme de quatro em quatro anos e se descobre a trabalhar com uma equipa técnica que faz quatro filmes por ano, fica nervoso. Torna-se o único 'amador' da equipa. A única coisa que tentei impor na rodagem foi um certo ritmo de novelista do século XIX.

Um ritmo desportivo?
Desportivo é o termo. Numa rodagem, esse ritmo acalma. Eu respeito muito os atores. Intuitivamente, eles sabem mais do que estão a fazer do que eu. Sou uma espécie de 'parteira' que recebe o dom que eles me dão.

O padre Dinis é uma personagem tipicamente ruiziana: entra e sal de campo como um fantasma...
No livro ele tem tendência para fazer o bem. É uma espécie de Amélie Poulain, um buonista, como dizem os italianos. Mas no filme senti que ele se torna um escravo dos bons sentimentos. Há nele um lado faustiano. A sua bondade vem de um pacto diabólico. O padre Dinis podia estar próximo de Cagliostro. Ser um místico envolto numa seita secreta. Interessa-me a tal ponto que vou filmar "Livro Negro do Padre Dinis", a sequela de "Mistérios de Lisboa".

De onde vem a ideia do teatro de cartão?
Da minha infância. E dos ciúmes que eu tinha de um amigo que tinha um teatro desses. Descobri depois que o teatro de cartão resolvia problemas de rodagem mais complexos. Apesar das condições de produção excecionais deste caso, o dinheiro, como é hábito, começou a escassear na rodagem. Mas a falta de meios sempre me despertou a imaginação. Foi preciso cortar algumas cenas do guião. Só que havia cenas que não se podiam eliminar - e servimo-nos do teatro de cartão para as filmar. Esse teatro vai propor uma releitura do filme com esta hipótese: a criança morreu mas antes de morrer sonhou o que vimos. Sonhou 4h26 de filme. Ou talvez a criança seja apenas um adulto que, na hora da morte, se recorda da infância. Há sempre um olhar de criança no meu cinema, é demasiado tarde para alterar isso. Ignoro porque o faço. Tenho medo de resolver este enigma porque se as crianças desaparecerem dos meus filmes, acho que os filmes vão desaparecer com elas.

Fazia ideia da duração final?
De modo nenhum. Sabia que tinha 250 páginas para uma série de TV. E sabia que, da série, montaríamos um filme. Nunca pensei que o produtor permitisse 4h26, nem que o filme aguentasse. Mas, hoje, acho que se ele fosse mais curto, ficaria coxo. A durée deu-lhe um feedback muito estranho. Afinal, já não preciso de fantasmas porque num folhetim assim as personagens aparecem e desaparecem. "Mistérios..." é um filme de 'retornados' à ficção. Pensamos que certas personagens estão mortas, mas elas lá acabam por reaparecer.

Continua a ir ao cinema?
Agora não posso. Depois da operação, só posso ver fracassos de bilheteira: as salas têm que estar às moscas. O médico disse-me que, no meu estado, há 'lugares interditos' e foi perentório: nada de cinemas, teatros, cafés e igrejas. Posso apanhar uma gripe. É um protocolo de hospital certamente escrito por ateus, porque as igrejas estão vazias. São um pouco frias, quand même.
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Mas você não é católico...
Nem partilho o verdadeiro catolicismo de Camilo, que foi um transgressor da religião. Não sou praticante. Eu acredito em tudo. Ou seja, tenho o mesmo problema de quem não acredita em nada. Mas quem não acredita em nada não pode acreditar que em nada acredita. Enfim... é um paradoxo famoso que me atrai, sempre é mais excitante. Do futuro, não se sabe nada. É difícil de prever. E pensar nisso é um gasto de energia desnecessário. Por isso, prefiro ser um 'futurólogo ao contrário': ver o passado como se fosse o futuro. Esta ideia está muito presente nos meus filmes. Quando estava doente, as anestesias dos hospitais de Lisboa faziam-me ter sonhos. Sonhos digitais. Tornava-se tudo real, é uma situação que mete muito medo. O Nerval deve ter sentido algo parecido. Os médicos chamam a isso a síndroma confusional. Pode-se ficar curado ou ficar preso à confusão para sempre. Acontece que, enquanto cineasta, eu já pratico esta 'doença' há muito tempo. Et voilà: sabia como me escapar dela!
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Francisco Ferreira, Expresso




INCLUI DECLARAÇÕES DOS ACTORES
ATO I. A vida. "Falámos sobretudo da vida. O nosso assunto era a vida." Nos cinco meses que Ricardo Pereira, 31 anos, trabalhou com Raúl Ruiz, nem todos foram feitos de plateau nem de filma¬gens. O ator português recentemente contratado para os quadros da TV Globo não se recorda de ter tido em toda a sua carreira profissional tanto tempo de preparação e criação de uma personagem. O Alberto de Magalhães que ele encarna em "Mistérios de Lisboa", de Raúl Ruiz, é uma das personagens mais complexas ao enredo. O seu primeiro nome é “Come Vacas" - e a sua vida a de um assassino contratado, vagabundo e homem de muito maus modos. E se a vida o redime, como quase sempre acontece em Camilo Castelo Branco, transformando-o num desejado cavalheiro de salões, a verdade é que dentro dele o mostro que foi à nascença nem sempre se reprime. Antes explode. Ao telefone do Leblon, no Rio de Janeiro, Ricardo Pereira avança ao Expresso: "Raúl Ruiz dá-nos asas..." Além das muitas conversas sobre a vida que Ruiz fez questão de desenvolver com os atores, evitando, por método assumido, trabalhar diretamente sobre as personagens que iriam representar, o realizador chileno fez inúmeros ensaios, promoveu aulas de francês, equitação, esgrima, história de época e literatura. "Ele é um abstrato objetivo", continua o ator. "Leva-nos a criar uma personagem depois de nos encher de informação, de contextualizar as épocas e as vidas, dá-nos uma bagagem e uma abertura que nos permitem saber exatamente o que fazer." Maria João Bastos, outra das personagens fulcrais de um filme sem figuras secundárias ou de terceira linha, também fala desses encontros com Ruiz muito tempo antes de começar a filmar: "Os encontros não incidiam sobre a personagem, mas sobre o que ambos sentíamos. Raúl Ruiz até podia fazer uma análise, mas era muito importante para ele ouvir a nossa. Foram tantas as conversas, os almoços. O Raúl é uma pessoa muito engraçada, um contador de histórias extraordinário." O resultado, diz Ricardo Pereira, tinha de ser outro: "Toda a preparação foi muito importante. Falámos de uma vida, a vida das novelas, onde tudo é possível, e trouxemo-la para a tela, para o cinema." Ricardo Pereira não espera pelo fim da entrevista e avança logo à partida: "É uma personagem que marca muito a minha vida, especialmente a minha carreira no cinema." E se Maria João Bastos 'não quer descurar outros trabalhos que fez, tal como Ricardo Pereira, a verdade é que, perante a hipótese de uma inundação que lhe fizesse desaparecer todos os papéis que já fez até hoje ao longo dos seus 35 anos de vida, não hesitaria: "Salvava este" o da pobre Ângela de Lima, condessa entregue a fu¬nestos amores e profundos desgostos.



ATO II: As emoções. A obra de Camilo não chegou ao coração de Maria João Bastos quando a leu na escola. Precisaria de "Mistérios de Lisboa" para chorar. Hoje duvida que a adolescência - apesar de ser a época dos primeiros amores - seja adequada à leitura de “Amor de Perdição". "O 'Amor de Perdição' não teve qualquer impacto em. mim. Se o tivesse lido hoje teria sido diferente." Mas "Mistérios de Lisboa" fê-la entrar no universo camiliano e seguir para outras obras do escritor. Agora lê "A Queda de Um Anjo" e acredita que as experiências vividas lhe deram mais maturidade para compreender Camilo. Já viu o filme quatro ou cinco vezes, como Ricardo Pereira, e acha inevitável emocionar-se não por ter neste filme um dos papéis mais dramáticos mas pelas emoções que se jogam "neste quadro vivo".

Fica fascinada: "Estou perante uma obra-prima. Aquela história é parte da realidade, as emoções são as mesmas, a única coisa que muda são as épocas. Os sentimentos perduram no tempo. Fico agastada com tanta beleza e com tanta genialidade que o filme tem." Ricardo lembra que a adaptação de Carlos Saboga o ajudou muito. Leu o guião cinco ou seis vezes, em português e francês, para entrar num enredo que equipara à vida de hoje. Nada de Camilo Castelo Branco lhe soa distante: "Acho que a nossa vida é um enredo de histórias que se cruzam." E é, de facto, essa certeza que o faz acreditar que Camilo pode ser muito claro para o espectador, mesmo quando não se é português.

ATO III. A serenidade. A admiração pela competência de Ruiz, mas também pela sua humanidade e generosidade, que ambos os atores sublinham ao Expresso, estende-se ainda à sua enorme serenidade e ao modo como ele a consegue transmitir ao elenco e equipa técnica: "Nunca encontrei a calma dele em nenhum outro trabalho. Ele conseguia fazer com que as coisas acontecessem com uma calma e uma energia muito positiva e com muito sentido de humor. Tinha todos os ingredientes bem distribuídos, e o trabalho acontecia de facto de um modo muito diferente", diz Maria João. Ricardo até tem pena de que o filme não seja maior (quase quatro horas e meia na versão cinematográfica): "Se houvesse um segundo filme, eu ainda teria feito mais, porque a minha personagem teve outras vidas além daquelas que foram tratadas. Viveu na Bélgica com outro nome, no Brasil, em Paris. Teria sido muito interessante fazer essas sete ou oito personagens do Alberto de Magalhães." O ator avança: "Ruiz é brilhante, é o 'homem que atingiu o estado pleno, o patamar mais alto da consciência humana e isso é obviamente transportado para os atores e equipa técnica. O processo de criação acontece sem drama, permite que todos intervenham e juntem ideias para chegar a um lugar melhor. Foi isso, aliás, que funcionou no filme e explica o seu êxito internacional."
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Expresso




Título original: Mistérios de Lisboa
Realização: Raoul Ruiz
Argumento: Carlos Saboga, segundo o livro homónimo de Camilo Castelo Branco
Interpretação: Adriano Luz, Maria João Bastos , Ricardo Pereira, Clotilde Hesme, Afonso Pimentel,
João Luís Arrais, Albano Jerónimo, João Baptista, Martin Loizillon, Julien Alluguette,
Rui Morisson, Joana de Verona, Carloto Cotta, Maria João Pinho, José Manuel Mendes
Fotografia: André Szankowski
Montagem: Ruy Diaz, Carlos Madaleno, Valeria Sarmiento
Música: Jorge Arriagada
Origem: Portugal/ França/Brasil
Ano de Estreia: 2010
Duração: 272’