Armand não é um herói qualquer - ele é O Rei da Evasão. 2ªf, IPJ, 21h30.


O argumento é espesso como uma folha de papel, e daí não vem mal pois a especiosa galeria de personagens de O Rei da Evasão e as situações que arrola, quase sempre a dar para o absurdo, mas ainda assim verosímeis, bastam-se a si próprias como expressão narrativa de uma comédia de costumes em crise.

A vida do gay de campo é, segundo Alain Guiraudie, bastante mais monótona que a vida do gay de cidade. No entanto, apesar da sua aparente rotina induzir ao aborrecimento, a existência de Armand Lacourtade (Ludovic Berthillot), vendedor de máquinas agrícolas na meia-idade, gira à brava quando – por ser um bocadito cobarde para lutar – paga a uns rufias para não violarem a jovem Curly Durandot (Hafsia Herzi), a rapariga se apaixona por ele, ele resolve dar uma volta experimental, e ambos embarcam numa fuga aventurosa.

Acossados por polícias e familiares e amigos e outros figurões de alguma forma relacionados, a perseguição serve também para a realização integrar na narrativa os segredos escondidos, os vícios que tornam a província interessante, e é aí, nessa revelação, que se apresentam os principais elementos desta fantasia realista, explorando Guiraudie a bizarria dos acontecimentos que cria com olhar sarcástico e terno.
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Rui Monteiro, Timeout


Falar de um filme em que o herói, um quarentão pachorrento chamado Armand Lacourtade (grande papel de Ludovic Berthillot), ganha a vida numa pequena terriola da região de Toulouse como vendedor de máquinas agrícolas pode parecer programa pouco sedutor. Porém, que as almas descansem: Armand não é um herói qualquer - e a vida do protagonista não deixará de seduzir-nos até ao fim. A sua 'crise dos quarenta' também não é comum: homossexual e celibatário, homem que (descobre-se depois) transpira generosidade e ternura por todos os poros, Armand é alguém que chegou a uma espécie de encruzilhada existencial e afetiva. Ele é o rei do título e a história deste filme coincide com a história da sua 'evasão'. Acrescente-se ainda que a 'evasão' tem nome de jeune fiille en fleur: uma adolescente fogosa, de 16 anos, chamada Curly (Hafsia Herzi, a jovem atriz de origem magrebina revelada em "O Segredo de um Cuscuz") que, por acasos do destino, se apaixona pelo nosso redondo bonacheirão e se atira para os seus braços. A relação entre ambos, independentemente das preferências sexuais de Armand, ficará na fronteira da amizade e do amor. E contar-se-á na história de uma fuga, com o seu quê de patusco e comovente, naquele bosque que recorda os policiais do film noir. Armand e Curly têm uma aliança secreta e uma relação pura, tão pura que talvez seja preciso recuar ao cinema de Jean Renoir para encontrar outra igual.

Guiraudie não é desconhecido no nosso país. A sua primeira longa-metragem, "Os Bravos Não Têm Descanso" (de 2003), tratado de revolta adolescente contra a estupidez dos adultos, esse road movie gay e sonâmbulo cheio de surpresas, estreou em Portugal. Guiraudie fez depois "Voici Venu le Temps" (de 2005) e quatro anos depois estreava em Cannes este 'rei' que agora chega às salas. É preciso contudo voltar às magníficas médias-metragens que o realizador assinou em 2001, "Du Soleil Pour les Gueux" e "Ce Vieux Rêve qui Bouge", para enquadrar seriamente o filme novo. Nessas médias-metragens, Guiraudie inventou uma nova espécie de herói, operário e homossexual, que casava, com délicatesse rara, uma afirmação sexual com outra de natureza política, espreitando o olho à poética das utopias. Esses 'heróis guiraudianos', provincianos e sonhadores (Armand é um deles), de modo algum se relacionam com as personagens homossexuais do cinema francês feito em Paris. É que, no cinema de Guiraudie, a homossexualidade jamais é a 'exceção', um 'direito à diferença', muito menos um fator de escândalo. Será por isso que os seus filmes, que respiram e vibram de vida para lá dos preconceitos, parecem depois tão escandalosos?

Nas suas pequenas fábulas do quotidiano, dirigidas por uma pulsão desenfreada e quase anarquista, o que Guiraudie celebra afinal são as leis do desejo e os seus sinuosos caminhos, um desejo que, pelos milagres da ficção, se descobre no gosto pela aventura e transforma este autor num dos mais inteligentes cineastas do hexágono. Por aquelas bandas, nunca a euforia foi tão doce.
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Francisco Ferreira, Expresso


Alain Guiraudie fez-se notar no princípio da década, na sequência de um punhado de curtas e médias-metragens, nomeadamente "Ce Vieux Rêve qui Bouge" (2001), que lhe valeram elogios importantes (como o de Godard - quando Godard diz bem de um filme isso tem um certo peso e causa um certo efeito, até porque ele não diz bem assim de tantos filmes). As longas-metragens que Guiraudie dirigiu posteriormente parecem nunca ter causado o mesmo tipo de reacções. Vimos por cá a primeira delas, "Os Bravos Não Têm Descanso" (um belo filme), mas a segunda, "Voici Venu le Temps", ficou por ver.

À terceira longa-metragem de Guiraudie voltamos ao contacto com ele. "O Rei da Evasão" serve, no mínimo, para constatar que o seu cinema conserva um conjunto de singularidades a que vale a pena prestar atenção. A mais saliente delas será o seu lado farsante, inclusive (ou sobretudo) na forma como joga com códigos de género e respectivo reconhecimento. "Os Bravos", se bem se lembram, era um filme que, sem sair de uma região do sul de França, "fingia" ser uma daquelas sagas de aviadores como as que na Hollywood de antanho (Hawks, etc) se cultivava. Em "O Rei da Evasão" encontramos outra figura narrativa clássica, também ela típica do cinema americano: o par condenado, o casal em fuga. Muito se falou, a propósito, de uma versão paródica do "Badlands" de Terence Malick. Desse, ou doutras variações sobre o mesmo motivo: faz algum sentido, de facto, desde que não se queira reduzir o filme a esse gesto de irrisão (e mesmo que "O Rei da Evasão" seja, provavelmente - não vimos "Voici Venu le Temps" - o mais descabelado dos Guiraudies, marxista sim mas de tendência Groucho).

O "regionalismo" igualmente se mantém. É um mundo rural, um mundo de aldeias e campos, posto completamente de pernas para o ar sem nunca se perder a relação com o real. É o que é mais interessante: a maneira como Guiraudie faz o filme deslizar do que começa por ser uma descrição realista de um ambiente (social, laboral, também sexual - o protagonista é um vendedor "gay") preciso e consideravelmente delimitado para um desenvolvimento narrativo onde já estamos num território meramente plausível (mas uma "plausibilidade" construída pelo filme, pela sua lógica). Comédia de costumes? De certa maneira, sim: é um filme onde tudo se põe em marcha a partir do olhar censório dos "outros". O "herói", o "bravo" deste filme, vê-se envolvido com uma miúda adolescente - uma noite salva-a das garras de um bando de rapazolas e ela afeiçoa-se a ele, que é "gay" mas está cansado da "vida de gay" em terra provinciana e começa a pensar em assentar "normalmente". Como a história com a miúda também não é propriamente a coisa mais "normal" naquelas bandas, o cansaço em vez de se atenuar aumenta. Mesmo fisicamente: "O Rei da Evasão" torna-se uma correria por montes e vales, pelas "bad lands" do sul de França, com o casal a fugir da fúria de vizinhos e familiares. Nessa loucura um bocado "screwball", um bocado caótica, é forçoso pensar que Guiraudie se perde um bocadinho. Mas, até pela maneira como a irrisão se volta para o próprio filme, como que o ameaçando, o sentido do risco, e toda a provocação inerente, permanecem intactos.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Título Original: Le roi de l'évasion
Realização: Alain Guiraudie
Argumento: Alain Guiraudie, Laurent Lunetta
Direcção de Fotografia: Sabine Lancelin
Música: Xavier Boussiron
Interpretação: Hafsia Herzi, Luc Palun, Ludovic Berthillot, Pierre Laur, Pascal Aubert
Origem: França
Ano: 2009
Duração: 93'
Classificação: M/12


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