Sem pieguices nem patetices, Yuki e Nina ou o mistério da infância. 2ªf, 24, 21h30, IPJ.


FESTIVAL DE CANNES – QUINZENA DOS REALIZADORES
E FESTIVAIS DE BUENOS AIRES, SAN SEBASTIAN, VIENA, TAIPÉ, SÃO PAULO

Sem pieguices nem patetices
Um filme adulto para crianças, ou um filme sobre crianças para adultos: o segredo de "Yuki e Nina" está no tom, na delicadeza das suas modulações, na maneira como desliza entre crianças e adultos sem trair nem uns nem outros. Nobuhiro Suwa e Hyppolite Girardot trabalham aqui o cinema como uma arte que se faz de discrição e de um entendimento tácito entre a câmara e os actores.

Quase se podem adivinhar as razões da aliança entre os dois e o modo como ela se praticou. Girardot é actor, presença regular em filmes franceses, em "Yuki e Nina" pela primeira vez creditado como realizador. Nobuhiro Suwa é um realizador japonês que paulatinamente tem vindo a instalar-se no cinema francês - é o primeiro filme dele que se estreia em Portugal, mas os outros já foram vistos por cá, inclusive "Un Couple Parfait", outro filme francês, que tem algo a ver com este. Há aqui uma maneira de trabalhar os actores, naquele naturalismo todo feito de precisão, que vem da sólida escola francesa (será o contributo de Girardot); e uma mise-en-scène que funciona em tensão e distensão sucessivas, tirando todo o partido dos planos longos e da maneira como os actores partilham a sua presença neles (que é um traço que reconhecemos como uma das maiores virtudes de Suwa).

Há cenas, de resto, que podiam ser de um filme de Suwa (como o "Couple") em que as crianças tivessem tomado o ponto de vista. Na primeira parte há uma espécie de história contada em "off": os pais de Yuki (pai francês, mãe japonesa) vão-se separar, o que é um drama maior para eles do que para a miúda, mais intrigada com esta coisa do amor aparecer e desaparecer (como lhe explicam) do que propriamente amedrontada. Depois, assusta-se mais: é quando a mãe, que vai voltar para o Japão, lhe diz que quer levá-la (e o pai está de acordo). E então as crianças (Yuki e a sua amiga Nina) varrem os adultos da vista, ou varrem-se da vista dos adultos - aventuram-se sozinhas pelo bosque. Sem esquizofrenia nenhuma, bem pelo contrário, "Yuki e Nina" passa aí de "filme francês" a "filme japonês" - entre Ozu e Miyazaki - antes de chegar realmente ao Japão para que - mais que provável moral da história contida no derradeiro plano - se perceba que a infância é um território tão mágico como qualquer bosque de conto de fadas. A partir de uma história de pais separados Suwa e Girardot fazem um filme sobre a infância feliz. Sem pieguices nem patetices. É simples, mas é raro.
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Luís Miguel Oliveira, Público



Escrito e realizado a duas mãos pelo cineasta japonês Nobuhiro Suwa (que assina a sua quinta longa-metragem) e pelo ator francês Hyppolyte Girardot (que se estreia na realização), "Yuki e Nina" é, tanto pela sua produção e pelo seu elenco como pela sua geografia e pela sua estrutura, um filme com dupla nacionalidade. O que temos, então, aqui? Um belo olhar sobre a infância de Yuki, uma criança de pai francês e mãe japonesa radicada em Paris que, de súbito, se vê forçada a lidar com o divórcio dos pais e - pior ainda, na sua ótica - com a iminente rutura da sua amizade com Nina, a sua melhor amiga (pois a mãe planeia regressar ao Japão, levando-a consigo). Trata-se de um drama infantil que o filme explorará com delicadeza, centrando-se, sobretudo, na relação das duas crianças (e veja-se como, muitas vezes, os adultos ficam aqui confinados às margens do quadro ou ao fora de campo). Interpretadas por duas estreantes que, amiúde parecem ser abandonadas à sua sorte para poderem improvisar livremente (daí, talvez, a recorrência dos jump cuts), as crianças encerram-se no espaço a fim de escaparem à sufocante presença dos adultos. É um desejo de evasão partilhado em silêncio que será coroado, no filme, por uma evasão física no espaço: em nome da preservação da sua amizade, as duas amigas farão as malas e partirão à aventura por essa França fora. Com esse movimento de fuga sem destino, o filme tomar-se-á mais livre, é certo, mas também mais frágil, perdendo de vista a oposição fundamental que ia ritmando a mise en scène e cedendo, aqui e ali, a jogos cénicos que não adiantam nem atrasam (parece-nos forçada, por exemplo, aquela repentina comutação entre o espaço francês e o espaço japonês). Mas isso é apenas um pormenor sem importância no contexto de um belo filme vitalista (e impressionista...) que sabe decifrar, como poucos, o mistério da infância.
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Vasco Baptista Marques, Expresso



DECLARAÇÕES DOS REALIZADORES

Um encontro

Hyppolyte Girardot
Conheci o Suwa em Maio de 2004. Estava a preparar o filme Un Couple Parfait e eu fui fazer casting para o papel masculino. Encontrámo-nos várias vezes, falávamos muito e essas conversas agradavam-nos. Um dia contei-lhe uma experiência muito peculiar que tinha tido enquanto actor: tinha realizado filmes em super 8 a partir de trabalhos de improvisação com jovens adolescentes. Isso interessou-o. Mais tarde, telefonou-me, dizendo que gostava que trabalhássemos juntos. Disse-me que queria escrever uma história comigo e co-realizá-la. Achei tudo tão improvável e surpreendente que aceitei. Era uma nova experiência para mim.

Nobuhiro Suwa
Nos meus filmes, procurei sempre uma colaboração e uma implicação mais profunda dos actores, sempre tentei ir mais longe. Mas, eu continuava a ser o único “mestre” do
filme. Aqui, pela primeira vez, queria tentar algo diferente.



À altura de uma criança

Hyppolyte Girardot
Queríamos que o nosso olhar fosse o de uma criança perante a compreensão desta situação, do mundo, e não a história de dois adultos que se separam. Por um lado, porque o Suwa tinha acabado de realizar um filme sobre uma separação, por outro lado porque acho que é mais fácil reencontrarmos o que é estar no lugar da criança. Todos fomos crianças, é uma experiência comum a todos.

Nobuhiro Suwa
Uma das primeiras conversas que tivemos foi sobre sermos pais. A partir daí, falámos várias vezes para escrever o argumento, mas mais que dar a relação entre pai-filho,
queríamos dar o olhar da criança.

A história de uma rapariguinha

Hyppolyte Girardot
O facto de nos projectarmos numa rapariga permitiu-nos uma certa distância.
Quando fazemos um filme, falamos necessariamente da nossa intimidade, mas como éramos dois, ao conjugar as duas, criou-se a Yuki. É a nossa Madame Bovary!

Nobuhiro Suwa
A história de Yuki pode ser vista como o contra-campo do meu filme anterior, que abordava a separação de um casal. Mas o que me interessava sobretudo no filme era a possibilidade de mostrar crianças no cinema, era o desafio de trabalhar com elas. Acho que a maior parte das vezes, o olhar que temos sobre as crianças é um ponto de vista de um adulto: é uma visão das crianças interiorizada pelas pessoas grandes. Não conseguimos aproximar-nos de forma pura e não formatada pela influência dos adultos. O meu desejo era tentar essa aproximação.



A floresta, o lugar mágico entre a França e o Japão

Nobuhiro Suwa
No início, não era suposto filmarmos no Japão, nem numa floresta. Foi algo que apareceu a meio do processo, porque percebi que esta história tinha uma propriedade dupla. Por isso, imaginei a floresta como um local de passagem que, através do cinema, se torna real e exprime o meu trabalho com o Hippolyte. Esta floresta também representa o lugar fora da comunidade social e familiar, um mundo onde só vão as crianças, sem a influência da família.

Hyppolyte Girardot
A floresta, que no filme é o lugar de passagem de um mundo para o outro, tornou-se para nós num lugar “mágico” no filme. Na floresta, estávamos os dois sozinhos, sem marcações. E foi assim que aconteceram momentos que nasceram da improvisação, negligenciando o que estava programado no argumento.

As crianças no cinema

Hyppolyte Girardot
O poder de imaginação de uma criança é inacreditável. São coisas que perdemos quando nos tornamos adultos. Todas as crianças são artistas, conseguem mudar e transformar a realidade. Filmar com crianças é complicado porque apercebo-me que, muitas vezes, as crianças imitam imagens que recebem, muitas vezes da televisão de personagens americanas dobradas em francês. Há uma uniformização nas crianças que vêem muita televisão, como há nos actores que se regem segundo determinado actor do Actors Studio. A inocência, a frescura são coisas difíceis de encontrar. A nossa sorte foi encontrar Noë. Fazer de conta não fazia sentido para ela. Ela tem imenso pudor, mas também uma força cheia de confiança. Ela concentrava-se num plano e depois voltava às suas actividades de uma forma muito simples. Isso faz com que a personagem de Yuki tenha uma espécie de mistério, uma intimidade em que é difícil entrar. Ela disse-nos que as crianças são muito secretas. E acho que o nosso filme conta isso: o mistério, essa opacidade, algo em que não podemos entrar. Enquanto espectador, acho que ficamos intrigados com este enigma.

Nobuhiro Suwa
É verdade que é difícil filmar crianças. Com os adultos, trocamos frases e conseguimos compreendermo-nos uns aos outros. Com as crianças, não temos uma linguagem comum, muitas vezes elas estão a representar pela primeira vez. Mas o que foi muito positivo foi que elas compreenderam muito bem o filme e a comunicação era feita de outra forma. Elas apropriaram-se dele. Mais do que a direcção de actores, eu diria que foi a compreensão delas do filme que foi primordial.



Um filme a dois

Hyppolyte Girardot
Não queríamos um argumento muito escrito, com muitos diálogos, queríamos poder introduzir alterações, partir para direcções inesperadas. Conseguir criar situações de rodagem para que as personagens pudessem improvisar. Milagrosamente, conseguimos ter dinheiro para fazer este filme com um argumento de apenas 30 páginas. Depois, a realização foi uma nova forma de escrita, e por isso uma nova aventura. O grande desafio foi a pré-produção, uma vez que não estávamos juntos. Tomei muitas decisões sozinho, mas quando o Suwa chegava havia uma reflexão comum. Nunca quisemos estabelecer um “método” de rodagem para estarmos abertos a todas as oportunidades. Não podíamos trabalhar oito horas por dia com as crianças. Faltava-nos tempo e era preciso improvisar, plano a plano. Também não fizemos a montagem juntos, por isso fizemos uma espécie de montagem em paralelo. Suwa montava no Japão e eu em França, trocávamos ficheiros. Foi talvez o processo mais complicado, porque acabámos por ter visões diferentes do filme e cada um tem a sua visão do cinema. O que me guiou foi a personagem de Yuki. Qual é a história desta menina? O que lhe aconteceu? Que força tem por causa de pertencer a duas culturas? O que é que ela me diz?

Nobuhiro Suwa
Na rodagem, falámos da repartição do trabalho. Não queríamos fazer tudo a duplicar e não reagíamos da mesma forma. Por isso, na rodagem, o mais simples era que o Hippolyte ficasse com os actores e eu me ocupasse do conjunto das cenas. Na montagem, as nossas diferenças voltaram a revelar-se. No início, eu deveria fazer uma primeira montagem e enviar o resultado à equipa francesa. Houve muitas trocas, foi um processo bastante longo. A experiência de co-realização foi uma grande experiência para mim. Quando vejo o filme agora, há momentos que não teria imaginado assim. Mas acho que era isso que procurava nesta experiência. Graças a esta colaboração, compreendi melhor o meu cinema e o meu desejo de fazer filmes, o que sei fazer e o que tenho vontade de fazer.

Realização: Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa
Argumento: Hippolyte Girardot e Nobuhiro Suwa
Imagem: Josée Deshaies
Som: Dominique Lacour, Raphaël Girardot, Olivier Dô Hùu, Takeshi Ogawa
Décors: Emmanuel de Chauvigny, Véronique Barnéoud, China Suzuki
Montagem: Hisako Suwa & Laurence Briaud
Música: Foreign Office
Guarda-roupa: Jean-Charline Tomlinson
Interpretação: Noë Sampy, Arielle Moutel, Tsuyu, Hippolyte Girardot, Marilyne Canto
Origem: França/Japão
Ano: 2009
Duração: 92’



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