depois da heresia, a subversão da noção de família: QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO?, Almodovar e a sua saudável loucura, n'Os Artistas, 5ªf, 22h. Borla!

O dia-a-dia de uma típica dona de casa madrilena. Viciada em anfetaminas (para conseguir ter energia para trabalhar também como mulher-a-dias), Gloria (Cármen Maura) vive num apartamento exíguo e sobrelotado com o marido, António (Angel De Andres-López), um taxista apaixonado pela cantora alemã de quem foi motorista, dois filhos que descobriram os benefícios monetários do tráfico de droga e da prostituição e a sogra avarenta que vende aos restantes membros da família madalenas e água com gás. Há ainda a vizinha prostituta (Verónica Forqué), um polícia impotente, dois escritores falhados e alcoólicos, uma criança com estranhos poderes mentais e um lagarto de estimação chamado “Dinheiro”…

“Que Fiz Eu para Merecer Isto?” (1984) é o quarto filme de Pedro Almodóvar, provavelmente o realizador espanhol mais internacionalmente aclamado desde Luis Buñuel. Por esta época, os Óscares e o reconhecimento de Hollywood ainda vinham longe e Almodóvar era “apeuma das figuras de proa da “Movida”, o movimento contracultural surgido em Madrid no final dos anos 70 como reacção ao final da ditadura franquista.

Nesses primeiros tempos a Espanha permissiva e democrática, o realizador fez um pouco de tudo, desde o teatro à BD, passando pela escrita e o cinema em Super-8 (ao mesmo tempo em que, durante o dia, trabalhava na Companhia Telefónica Nacional…), assumindo-se desde o início como um observador atento e mordaz da realidade espanhola, dos seus vícios e peculiaridades, num tom provocatório e ousado.

“Que Fiz Eu…” fica então como um dos melhores exemplos desse cinema neurótico e dinâmico, fazendo gala de uma sensibilidade marcadamente “camp” e “kitsch” (ainda hoje presente nos filmes mais recentes e “sérios” do cineasta) e pondo em cena uma galeria irresistível de personagens excêntricas.

Numa sucessão de “gags” tresloucados por onde passa um humor absurdo e negro, entre o grotesco e o escabroso, Almodóvar propõe uma visão satírica e subversiva das relações familiares e pessoais na sociedade moderna. É um objecto delicioso e inclassificável — da farsa ao drama, da comédia ao fantástico — que mistura, de forma improvável, Buñuel, De Palma, Wilder ou John Waters.

Vasco Menezes, Público

Repleto do melhor estilo almodovariano, o filme é uma coleção irresistível de personagens esquisitos e valores distorcidos mas que por vezes fazem sentido no contexto. Lembra um pouco o início da filmografia de John Waters, só que melhor e com Madri como cenário. Como na maioria de seus filmes, há um certo choque principalmente na tentativa de perceber se é possível ir tão longe numa Espanha oitentista pós-era Franco. Em Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, Almodóvar desfila uma postura bem-humorada, ultrajante mas sem ser ofensiva. O trunfo é nunca julgar seus personagens. Eles são soltos, vivendo e agindo como querem e com suas razões. É subversivo e tremendamente divertido.

Ricardo Balata

O quarto longa-metragem do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), é uma reunião dos personagens excêntricos que marcaram os primeiros filmes do diretor. Viciada em anfetaminas (para conseguir suportar o dia-a-dia do trabalho como dona de casa), a protagonista Gloria (Cármen Maura) reprime seus desejos em prol da atenção que dedica à família que, por sinal, é bem "esquisita". Seu marido, António (Angel De Andres-López), é um taxista apaixonado por uma cantora alemã. O filho mais velho é traficante de drogas, o caçula homossexual se prostitui e a sogra sovina traz para casa um lagarto de estimação chamado "Dinheiro". Para completar, há ainda a vizinha prostituta (Verónica Forqué), o policial impotente e a criança paranormal.

Com diálogos carregados de humor sarcástico, o roteiro - escrito por Almodóvar - coloca os personagens em constante confronto com as situações absurdas que encontram. O cineasta parece se divertir com as possibilidades cômicas de cada ação, provocando riso no espectador e facilitando a identificação do público com os protagonistas. Embora excêntricos, os personagens são demasiadamente humanos e acabam subvertendo os limiares éticos que definem o que é certo e o que é errado. Os acontecimentos estão para além do bem e do mal.

Quem é fã da cinematografia de Pedro Almodóvar certamente identificará, em Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, algumas seqüências - como é o caso da cena do homem morto na cozinha - que foram retomadas em Volver, o último filme do cineasta espanhol. Entre o non sense e o corriqueiro, Que Fiz Eu para Merecer Isto? assume seu olhar mordaz e provocativo acerca dos vícios e das peculiaridades de qualquer família.

Camila Vieira


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5ªf, 22h, Artistas, à borla: o mais herege filme de Almodovar - Pedro, o LOUCO! surreal e hilariante!

O espanhol Pedro Almodóvar traz uma comédia irreverente e provavelmente um dos argumentos mais non-sense já escritos por ele.

Sabida a sua pouca estima pela religião, especialmente a católica, o realizador dá a conhecer uma outra faceta de um grupo de freiras, com as suas vidas duplas e negros hábitos. Numa vida de convento, mostram-se outras dependências que não apenas as de Deus. Estreado no início da década de 80, o que teríamos sobretudo a destacar deste Negros Hábitos será a irreverência e originalidade do autor em retratar de uma forma assim tão descabida, mas ao mesmo tempo tão humana e realista a vida de um grupo de freiras, que antes de o serem, são mulheres com defeitos e fraquezas.

O estilo do realizador evidencia-se desde logo, com um contraste divertido entre a cor negra dos hábitos das freiras e as cores garridas dos seus costumes e dependências. Uma junção improvável de personagens exuberantes que surpreendem numa mistura de terços, rosários, drogas e livros eróticos. A estética de Pedro Almodóvar é a habitual: os tons vivos, os ângulos arriscados e exactos e o surrealismo espreitam entre cada cena do filme.


Mais uma vez o tema central do realizador são as mulheres. As suas musas. Com muito de auto-biográfico, com muito egocentrismo que faz de Pedro Almodóvar um realizador que se auto-cita frequentemente, mas também que o torna num dos mais bem sucedidos além fronteiras. Cristina Sánchez Pascual, Julieta Serrano, Cecilia Roth, Carmen Maura entre outras são constantes na filmografia do realizador. São referências das mulheres da sua vida, são excelentes actrizes que dão cor às suas obras.

Tiago Ramos


É com um dos tematicamente mais controversos filmes da sua carreira e com uma certa dose de non-sense que Almodóvar faz uma arrojada e seca crítica à religião, um risco que custou a aceitação do filme no Festival de Cannes. Negros Hábitos retrata uma série de episódios na vida de uma peculiar congregação de freiras, que vivem num mosteiro quase de recurso, que se vestem de preto e que se guiam na vida pela direcção e em nome do pecado, ou não tivesse Jesus Cristo sido morto para nos redimir dos mesmos - na verdade, o nome das suas vestes, que empresta palavras ao título, é religiosamente transposto para acções, diálogos, filosofias e atitudes.


Em contraste com a rigorosa relação entre o preto e o branco, aqui irmãos da ordem, do compromisso e da humildade (uma vida de despojos), reflectem, cantam e exaltam-se sempre toda uma panóplia das mais emocionantes e despertadoras cores em volta das personagens, estabelecendo o feixe da direcção irónica que a película leva, bastião da "balda", do desleixo e do divertimento quase inconsequente - e se leva o moderador de adjectivo é porque a hipocrisia da madre superiora assim o exige. A droga, a criação de um animal selvagem, a protecção de uma prostituta criminosa intimamente ligada às próprias freiras, a extorsão de dinheiro, o passado marcado pelo assassínio ou o presente pautado pela homossexualidade, e a redacção de contos eróticos são o verdadeiro e leviano dia a dia destas mulheres de Deus, que não deixam de se prezar a um ridículo e falhado esforço de cobertura, de onde a mentira, a forja, a corrupção e o interesse pessoal emergem como triunfo e pseudo-exemplo.

Diogo F



Realização: Pedro Almodóvar
Montagem: José Salcedo
Fotografia: Ángel Luis Fernández
Música: Morris Albert, Carlos Arturo Eritz
Roteiro: Pedro Almodóvar
Produção: Luis Calvo

Interpretação:
Cristina Sánchez Pascual/Yolanda
Julieta Serrano/Madre Superiora Julia
Carmen Maura/Irmã Perdida
Marisa Paredes/Irmã Esterco
Chus Lampreave/Irmã Rata de Porão
Lina Canalejas/Irmã Víbora
Manuel Zarzo/Padre
Eva Siva/Antonia
Mary Carrillo/Marquesa
Cecília Roth/Merche
Agustín Almodóvar/Bancário

Origem: Espanha
Ano:1983
Duração: 115'
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2º filme de Almodóvar, Labirinto de Paixões, esteve 10 anos em exibição em Madrid. 5ªf, 22h, n'Os Artistas - à borla!

Foi rodado graças ao Cine Alphaville de Madri que resolveu entrar na produção de filmes e com o sucesso de “Pepi, Luci e Bom...” decidiu apostar no jovem diretor.

O filme é um grande mosaico da cena pop cultural madrilena, um documentário com alguns momentos de ficção. Nele aparecem os personagens mais conhecidos: Cecilia Roth, Poch, Fabio MacNamara, Pablo Pérez-Mínguez, em cujo estúdio de fotografia foi rodada a maioria dos interiores do filme, além de Alaska, Carlos Berlanga e os desconhecidos atores Imanol Arías e Antonio Banderas.

O estúdio de Pablo Pérez-Mínguez era um dos lugares de encontro de La Movida, como o era, também, a Casa convento de las costus. Até hoje o estúdio de Pérez-Mínguez existe e é tão grande que, segundo ele, até cem pessoas podem estar ali sem que uma incomode a outra. Várias festas e eventos aconteceram ali, como a exposição de Las Costus, El valle de los caídos. Por estar na rua do mesmo nome, começou a ser nomeado como Estudio Montesquinza. O cenário do quarto de Sexilia (Cecilia Roth) em “Laberintos...” foi pintado por Guillermo Pérez Villalta, auxiliado por Almodóvar, e consta no livro de fotos Mi Movida. Ele continua existindo em um dos quartos do apartamento-estúdio.

O cartaz do filme foi feito por Iván Zulueta, que fará também o de “Entre tinieblas” [Negros hábitos - A EXIBIR DIA 18], 1983), além do mais criativo de todos, o de ¿“Qué he hecho yo para merecer esto!” [O que eu fiz para merecer isto? - A EXIBIR DIA 25], de 1984. O impacto que o filme causou foi tão grande que ele ficou em cartaz durante dez anos nas salas do Cine Alphaville.

No filme vemos a folhetinesca história de um príncipe islâmico que foge de seu país; alguns guerrilheiros vão a Madri com a intenção de sequestrá-lo; sua madrasta, princesa Toraya, que quer fazer inseminação artificial, e Sexilia, uma ninfomaníaca que detesta o sol por identificá-lo com o seu pai.

No plano de abertura, Sexilia e Riza Niro (o príncipe islâmico), filho do imperador do Tirán, estão passeando pelo mercado dominical madrileno El Rastro. Ambos admiram o sexo dos homens que passeiam por lá. A imagem é construída parodiando a famosa capa do disco dos Rolling Stones, feita por Warhol, com o modelo Joe Dallesandro.

Sexilia chama 11 rapazes para uma festa privada e anuncia que será a única mulher presente. Riza encontra Fabio MacNamara em um café; Fanny (Fabio) está cheirando esmalte e tomando álcool por um tubo. Eles acabam tendo um rollito. Riza acompanha Fabio a uma sessão de fotos para a fotonovela Patty Diphusa, personagem criado por Almódovar, que aparece dirigindo as fotos. Pablo Pérez-Mínguez está fotografando. Riza se dirige ao diretor –“Pedro, posso falar com Fabio um momento?” Fabio, sempre colocado, pronuncia alguns cacos de diálogo, dos quais entendemos que ele vai mudar o visual de Riza, para que esse não seja reconhecido, pois um grupo guerrilheiro de Tiranies está em Madri para sequestrá-lo. Um desses tiranies é Sadec (Antonio Banderas), que acaba se apaixonando por Riza, sem reconhecê-lo.

Numa das melhores sequências do filme, a imperatriz Toraya, com um espelho, atormenta Sexilia, parodiando o curta de Derek Jarman, de 1973: “The art of the mirrors”. Na mais debochada sequência, vemos a atuação do duo Almodóvar-Mac-Namara cantando “Suck it to me”.

Continuando a ação, nesse mesmo dia, Riza substitui um cantor do conjunto Ellos, que se machucou; ao vê-lo apresentar-se, fica apaixonada, e Riza corresponde ao sentimento. Depois de muitos desencontros, os dois se curam: Sexilia de sua ninfomania e Riza de seu homossexualismo e felizes fogem juntos para o Panamá. Esse furor uterino de Sexilia lembra o enredo de “Fuego en las entrañas”, relato publicado por Almodóvar em 1981. Nele a protagonista Raimunda e todas as mulheres de Madri eram vítimas de um absorvente manipulado, feito por um homem que quis vingar-se das traições que as mulheres lhe fizeram na vida.

João Eduardo Hidalgo, “Docudramas de La Movida madrilena: “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del Montón” e “Laberinto de pasiones”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar”

(sugerimos a leitura do ensaio na íntegra, pois contém uma boa contextualização e explicação do fenómeno Movida Madrilena)


5ªf, 22h, n'Os Artistas, um clássico do cinema underground e independente da Movida Madrilena!

“Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón”
Pedro Almodóvar, 1980


O primeiro longa, com pretensão comercial, de Almodóvar, foi rodado nos fim de semana, em sistema de cooperativa, ou seja, ninguém cobrava salários. Todos estavam interessados em participar do filme. Com uma ideia muito tênue, Almodóvar lançou-se à procura de atores para seu filme. Escolheu Alaska por seu figurino, pois queria uma moderna sádica no papel de Bom. Alaska, sem experiência como atriz, fez ela mesma, no filme, uma personagem que interpreta até a atualidade em seus clips e shows. Carmen Maura era a base dramática em que se apoiava o projeto e também a financeira, pois conseguiu dinheiro com amigos. Camuflada sob o pseudônimo de Eva Siva, Mercedes Guillamón, filha de um diplomata e colaboradora habitual nos curtas de Almodóvar, ganhou o papel de Luci, a dona de casa masoquista.

“Pepi, Luci, Bom...” tem defeitos técnicos imensos, cabeças cortadas, enquadramentos amadores, principalmente o de abertura, em que temos um travelling da fachada do prédio de Pepi. José Salcedo, montador fez o que pôde, mas a continuidade de sentido do filme tropeça a todo momento. Almodóvar declarou: “Quando um filme tem um defeito, é um filme incorreto, mas quando tem muito mais que um, a isso se chama Nova Linguagem, Estilo.” Boa justificativa para a falta de direção, falta de atores que consigam sustentar personagens, de cenários próprios, figurino, etc. “Pepi, Luci, Bom...” lembra bastante a tosca produção, já em 16mm, do curta “Salomé”, de 1978.

O que o filme tem de interessante é o recorte das gerações que participaram de La Movida: Pepi é uma trintona; Luci, uma quarentona dona de casa, dominada pelo marido policial, e Bom é a jovem moderna que quer gozar a vida e fugir dos traumas de um passado que não chegou a conhecer. Os que plenamente viveram o movimento foram os trintões ou quarentões, que tinham crescido sob o repressivo franquismo e podiam extravasar seus desejos. Os personagens que já tinham uma história de vida maior, pelo menos cronologicamente, na gíria da época, eram chamados Pepis (derivado obviamente de papa, papito).

(…) Em “Pepi, Luci, Bom...”, a personagem Luci tem a intenção de ser uma guarra [capacho] e, no primeiro encontro, Bom, por ideia de Pepi, lhe proporciona uma ‘chuva dourada’ (de urina), que é claramente simulada, assim como a surra que o marido policial dá em Luci, finalmente satisfeita. A irreverência e a ausência de censura realizam-se nos diálogos e nas situações inusitadas.

O processo de criação dentro de La Movida pode ser perfeitamente compreendido usando-se a metodologia dos Estudos Culturais desenvolvida por Hall, que propõe a existência do Circuito de Cultura: que se organiza em produção (codificação); representação; consumo (decodificação); identidade; mediações. (HALL, 2003, p. 347). Dentro desse processo, os sentidos/significados são produzidos e circulam na sociedade. Na cultura espanhola da época, esmagada por quatro décadas de terrorismo praticado pelo Estado, que eliminou quase a maioria de seus opositores/inimigos, o campo simbólico era terreno propício às primeiras transformações. Como Hall, acredita que “Culture is the process by which meaning is produced, circulated, consumed, commodified, and endlessly reproduced and renegotiated in society. (HALL, 1980, p. 63.) Os jovens autores de La Movida queriam uma nova identidade para a sociedade espanhola. A princípio suas produções chocaram os estabelecidos atores sociais e políticos, mas eles tiveram repercussão em uma ampla parcela da sociedade e provocaram discussões, pautas, reinvindicações que transformaram a política e a economia espanholas da década de 80.

A apresentação de “Pepi, Luci, Bom...” em San Sebastián não chegou a ser um acontecimento. Com exceção da crítica de El País, a recepção do filme foi fria. Muitos inferiram que a direção era inexistente, e que a maioria não gostou de nada do que viu, caracterizando-o como grotesco. Os que apreciavam eram o próprio diretor e todo o grupo de La Movida. A valorização do filme foi feita a posteriori pela carreira desenvolvida por Almodóvar como cineasta, o que, nessa época, estava longe de ser pelas próprias características do movimento onde todos desenhavam, fotografavam, pintavam... “Pepi, Luci, Bom...” e “Laberinto de pasiones” têm paralelismos com os filmes da Warhol Factory. São uma obra coletiva. Todos contribuem com dinheiro (“Laberinto de Pasiones” foi uma encomenda dos Cines Alphaville), ideias, muitos atores improvisam ou vivem o personagem que criaram dentro de El Rollo de La Movida.

A técnica do documentário é um recurso utilizado o tempo todo, mesmo porque algumas situações dramáticas são resolvidas mais facilmente com esse artifício; com essa estrutura de docudrama, a narrativa é costurada e cria uma verossimilhança interna, que talvez não fosse alcançada de outra maneira.

O filme foi produzido em 16mm e depois transferido para 35. Nota-se bastante diferença de imagem entre algumas cenas. A sequência do comercial das calcinhas Ponte deve ter sido feita já em 35mm, pela sua qualidade fotográfica. Bem ao gosto pop, temos o anúncio de um produto impossível, que está parodiando uma campanha da época, sobre o uso de preservativos. Almodóvar não hesita: cria uma calcinha que guarda o xixi, transforma um flato em perfume e, se enrolada de modo apropriado, pode funcionar como fogoso amante; o locutor, emocionado, diz o slogan: “Haga lo que haga, Ponte bragas!”16 [Faça o que fizer, Ponte calcinha!”].

No filme, Alaska é a vocalista do grupo de rock Bomitoni. No dia da apresentação, vemos na plateia Augustín Almodóvar, Las Costus, Ana Belén e quase todos de El Rollo. Na apresentação, o suposto grupo, que é uma mescla dos Pegamoides (grupo de Alaska) com alguns atores, cantam “Muy certa de ti”, e uma música especialmente composta por Almodóvar para a cena Murciana:

Te quiero porque eres sucia, [Eu gosto de você porque você é suja]
Guarra, puta y hortera, [(pistolera, puta e vulgar]
La más obscena de Murcia, [a mais obscena de Murcia]
Y a mi disposición entera [e sempre a minha disposição]
Solo pienso en ti, [Só penso em você]
Murciana! [Murciana!]
Porque eres [Porque você é]
Una marrana. [Uma piranha.]


Bom canta a poética música para Luci, personagem que é de Murcia, e ela, que está na plateia, vai ao delírio.

Toda a escatologia pop de La Movida estava presente no filme. A linha narrativa era bastante simples. Pepi se deixa violentar por um policial, para não ser denunciada por cultivar maconha em sua sacada (em “Volver”, Agustina cultiva Juana no pátio de sua casa no povoado). Depois Pepi resolve vingar-se e encomenda uma surra para ser dada no policial, sem saber que o policial tinha um irmão gêmeo, e que a agressão cairia sobre o inocente. Irmãos que trocam de identidade, pelo bem ou pelo mal (deles ou dos outros), como voltaria a aparecer em “La mala educación”.

Seguindo seu plano, Pepi conhece Luci, a mulher insatisfeita do policial, e lhe pede aulas de tricô. Numa dessas aulas, Bom chega e dá um banho de urina em Luci, que fica apaixonada. Pepi transforma-se numa publicitária de sucesso, Luci acaba cansando-se de Bom e volta para o marido, depois que esse lhe dá uma tremenda surra, pois ela é sadomasoquista. Bom vira cantora de bolero.

Depois da estreia em Madri, o filme circulou pela Espanha. Alaska conta que Pedro e ela viajaram bastante para promovê-lo. Em Murcia, ela ficou nervosa, pois a música que canta para Luci não é nada elogiosa. O filme ficou apenas um dia em cartaz na cidade. Em Madri, ele foi veiculado durante dois anos, e vê-lo era considerado um item necessário no rol de quem se julgava moderno. Por esse sucesso madrileno, o Cine Alphaville de Madri decidiu produzir outro filme de Almodóvar.

João Eduardo Hidalgo, “Docudramas de La Movida madrilena: “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del Montón” e “Laberinto de pasiones”, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar”

(sugerimos a leitura do ensaio na íntegra, pois contém uma boa contextualização e explicação do fenómeno Movida Madrilena)

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