A 4ª Mostra de Cultura Fílmica de alunos de Cultura Fílmica e de Ciências da Comunicação da UAlg é já dia 3!

Evento no âmbito da disciplina de Cultura Fílmica e da iniciativa nacional “Um dia com os media”.

// Um dia com o cinema - 3 de Maio de 2012 //


ESEC

durante o dia* - Exposição de cartazes de Cinema Português

durante a manhã - Exibição de curtas-metragens realizadas por alunos da UAlg

14h30 (anf 1.3 Complexo Pedagógico Penha) - Masterclass/debate com o realizador português António-Pedro Vasconcelos - "Grandes Questões do Cinema"

Biblioteca da UAlg Gambelas

18h* - Apresentação do livro O Cinema e a Invenção da Vida Moderna, de Leo Charney e Vanessa Schwartz, conduzida pela profª Doutora Mirian Tavares, coordenadora do CIAC (organização do Cineclube de Faro - projeto "Livros em Cadeia", com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

Instituto Português da Juventude

21h* - José & Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes

Exposição de cartazes


apoio e colaboração
Cineclube de Faro*
CIAC



!!Atenção à segunda masterclass!!

dia 4, 14h30 (anf 1.3 Complexo Pedagógico Penha) - Masterclass/debate com o realizador português António-Pedro Vasconcelos - "Privatização da RTP?"


mais informações em mostraculturafilmica.blogspot.com

COMUNICADO DE IMPRENSA. APELO AOS SÓCIOS E RESTANTE PÚBLICO.

Por dificuldades financeiras em conseguir fazer face aos seus compromissos com aluguer de filmes no presente ano, e por forma a não aumentar essa dívida ainda mais, decidiu a Direção do Cineclube de Faro anular 3 das sessões já anunciadas para o mês de Maio. Tal facto nunca tinha acontecido na história da nossa associação.

A inexistência de apoios à nossa atividade anual por parte da autarquia e, no presente ano, do Instituto de Cinema, que nem sequer abriu concursos de apoio à Rede Alternativa de Exibição de que são beneficiários os cineclubes portugueses, ditaram esta penosa situação que não tem sido invertida por receitas próprias. A média de espectadores tem sido insuficiente para cobrir essas despesas de aluguer de filmes que rondam, em média, os 200€ por filme, e os sócios não têm correspondido, ou não têm conseguido corresponder, ao esforço de manter as suas quotas em dia.

Está em causa o futuro imediato da nossa associação.

Assim, apelamos a todos os sócios que, se lhes for oportuno, regularizem o mais urgentemente possível a sua situação e contribuam para a mobilização em torno do Cineclube de Faro, motivando outros a tornarem-se sócios ou retomando a sua condição de antigos sócios, beneficiando da Campanha que isenta do pagamento de jóia de inscrição e liquida todas as quotas de 2012 por uns meros 25€.

Retomamos as sessões comerciais no IPJ no dia 22 de Maio com o filme Enter the Void, de Gaspar Noé, seguido do multi-premiado documentário português É na Terra, não é na Lua de Gonçalo Tocha. Dia 5 de Junho damos a ver o filme Além de ti, do realizador algarvio João Marco e finalmente, dia 12 de Junho, o ansiado Tabu, de Miguel Gomes.

Contamos com a vossa solidariedade, a vossa presença maciça e a vossa participação em iniciativas de recolha de fundos que a breve tempo anunciaremos.


Mais informações – 289 827 627; cineclubefaro@gmail.com

temos urgência no pagamento de quotas. por favor...

Tem quotas em atraso? 2012 - pagando todo o ano, são só 30€... 2011 e 2010 - contacte-nos ;-)
Campanha novos sócios / retoma da condição de antigos sócios - sem jóia e quotas até final do ano por... 25€! :-)
(sede / sessões / cheque enviado por CTT / transferência bancária para NIB 0038 0000 3929 4323 771 07)

PARA MAIORES DE 18 ANOS - última sessão Gaspar Noé. Curtas e Médias.


Sede. Entrada livre. Cerveja a 1€

TINTARELLA DI LUNA // CARNE // UNE EXPERIENCE D'HYPNOSE AUDIOVISUELLE // SODOMITES // INTOXICATION // WE FUCK ALONE // AIDS // ONE DREAM RUSH HOUR

Conferência ANA SOARES: Cinema, Revistas e Coleccionismo. 6ªf, 18h!

Sede do Cineclube de Faro.

Entrada livre.


Integrada no projecto Livros em Cadeia:

“Periódicos e outras revistas - cinema, actualidade, coleccionismo”

A apresentar - a colecção de revistas de Cinema do Cineclube de Faro.


A Palestrante
Ana Isabel Soares fez um pós-doutoramento sobre poesia e cinema documental em Portugal. É Professora Auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, onde tem leccionado disciplinas da área da História do Cinema e das Teorias da Imagem. Organizou, com Mirian Tavares, o volume de ensaios sobre Literatura e Cinema É Perigoso Debruçar-se Para Dentro (2007) e tem publicado artigos sobre documentarismo português e sobre os realizadores António Reis e Margarida Cordeiro, assim como sobre a obra de Manoel de Oliveira. É colaboradora e investigadora do CIAC - Centro de Investigação em Artes e Comunicação. É membro fundador e actual Directora da AIM - Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Foi uma das felizes beneficiárias do Clube de Cinema da Escola Secundária de Loulé e, mais tarde, da disciplina de Literatura e Cinema. Foi directora do Cineclube de Faro, é sua sócia honorária, com subidíssima honra, e integra os órgãos sociais desta associação.

O Tema
Os objectos de qualquer colecção são sempre como tokens, sinais ou entradas para um mundo irremediavelmente perdido. Enquanto vestígios desse mundo, permitem a quem colecciona fazer a ponte entre aquilo que se perdeu e as incessantemente renovadas formas do presente. Coleccionar é, por isso, uma das maneiras de fazer a História.
Quando comecei a reunir revistas de cinema, vivia-as no presente em que as conhecia. A História que construía era, por assim dizer, inconscientemente que a construía. Porém, à medida que as pilhas de revistas se transformavam em colecção, em coisa organizada de muitos elementos semelhantes, o olhar para trás tornava-se não só inapelável mas cada vez mais sedutor.
As revistas são livros curiosos: dão-nos de maneira sistemática o presente em que se inscrevem, que é um presente muito fugaz. Ao registarem acontecimentos aparentemente menores – ou melhor, ao resistirem, porque são a fixidez primeira do presente, a uma hierarquização ampla dos acontecimentos, permitem o olhar para o caos da História, para o belo mundo irrecuperado do que já passou; ajudam-nos a imaginar todos os “poderia ter sido assim”, todos os “quem diria que viria a dar nisto”. Da História grande que fazemos e das pequeninas histórias que nos vão fazendo.



Livros em Cadeia é um projeto financiado por


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hoje, sessão extra AKI KAURISMAKI - OS COWBOYS DE LENINEGRADO!

Sede, 21h30, Entrada Livre! Cerveja a 1€...

Louco, divertido, surreal, óptima música!

Leningrad Cowboys Go America is a 1989 road movie by Finnish film director Aki Kaurismäki about the adventures of a fictional Russian rock band (the Leningrad Cowboys, consisting of members from the Finnish rock band the Sleepy Sleepers, augmented with additional musicians) that travels to the United States to become famous. The title came from the Marx Brothers film Go West (1940). After the film was released, the fictional band transformed into a real band, complete with ludicrous hairstyles and typical Finnish humor.

Leningrad Cowboys Go America was followed five years later by a sequel, Leningrad Cowboys Meet Moses (1994) and a concert film Total Balalaika Show (1994). The film is set for reissue on DVD in October 2011, by the Criterion Collection's Eclipse series, paired with the other two Leningrad Cowboy films.

"Burlesco social? Contos de fadas marxistas?" LE HAVRE é a tragicomédia de Kaurismaki. 3ªf, 21h30, IPJ.

Com Kaurismäki o cinema ainda pode mais do que a vida.

Fartas de acabar os filmes feitas num oito, as personagens de Aki Kaurismäki passam à acção. Era assim, feito num oito, que tínhamos deixado o último protagonista de Kaurismäki, o Koistinen de “Luzes no Crepúsculo”, filme final de uma designada “trilogia dos perdedores”. Em “Le Havre” começa outra trilogia, ainda e sempre o modo de funcionamento preferido de Kaurismäki, que (em princípio) nos levará a várias cidades portuárias - depois deste começo nortenho, a ideia é seguir para sul. Para além da mudança de ambiente (longe de Helsínquia e da Finlândia), que não é inédita em Kaurismäki e lhe permite abrir o discurso (em “Le Havre” é evidente que ele fala da Europa, a dele, a nossa, a que todos os dias nos encanta), a julgar por este primeiro momento da nova trilogia a grande novidade a esta: a “kaurismakilândia” (segundo a imbatível expressão de Peter von Bagh), feita de excluídos e de párias com pouco dinheiro nos bolsos mas muita nobreza no carácter, “strikes back”.

Conheçam, portanto, o casal Marcel (André Wilms) e Arletty Marx (Kati Outinen). Têm nomes fabulosos, na justaposição do apelido de Karl a nomes próprios que reenviam para o cinema francês, popular e até “proletário”, dos anos imediatamente antes e depois da II Guerra (também há um Dr. Becker, interpretado por Pierre Ètaix), sendo óbvio que, depois de anos a inventar Jeans Gabins finlandeses (Matti Pellonpaa, Marko Peltola - ambos prematuramente mortos), Kaurismäki encontra em Wilms um Jean Gabin francês. Que vem, aliás, de um filme com 20 anos (“La Vie de Bohème”), retomando a mesma personagem, agora “assentada” no Havre, numa vida que não deixa de ser de “boémia” (uns biscates, muito bar, muito álcool, muita música) embora numa escala mais modesta. Está Marcel Marx na pacatez da sua existência quando dois acontecimentos, praticamente simultâneos, o vão desinquietar e obrigar a tomar medidas: cruza-se com um miudo africano, Idrissa, e o seu cão (como em “Luzes no Crepúsculo”, mas aí o miudo africano e o cão eram apenas testemunhas, testemunhas da miséria da vida numa sociedade moderna, “evoluída”), e a mulher adoece gravemente. Entre as visitas ao hospital - o pudor daquela relação, a história dos vestidos e dos presentes, é uma coisa fantástica - Marcel decide-se a ajudar o jovem Idrissa a escapar à sanha das brigadas anti-imigração clandesita e a cruzar a Mancha, para ir ter com a família imigrante em Inglaterra. E, basicamente, é isto.

Mas “isto” sucede num mundo que Kaurismäki pinta em tons idealizados. É a pequena comunidade, o “bairro”, solidário e caloroso por uma questão de princípios e valores, uma espécie de “bolsa” que existe na fronteira com a sua própria mitologia (também, obviamente, um mitologia de cinema: é por aí que Kaurismäki reencontra o cinema francês clássico). A chegada de Idrissa pressupõe a chegada de outros sinais de “modernidade” e, sobretudo, de outros valores incompreensíveis e inaceitáveis - como Idrissa, antes de ser outra coisa qualquer (um imigrante clandestino, por exemplo), é um ser humano, não é surpresa que todo o bairro se mobilize para o ajudar a fugir (como, e há uma cena que praticamente o explicita, num filme de Melville sobre a Resistência). Recorrendo às manigâncias mais extraordinárias, como um “concerto de beneficência” para angariação de fundos, ocasião para o “come back” de Little Bob, um inacreditável rocker local (aparentemente autêntico). À riqueza das personagens que estão do lado certo contrapõe Kaurismäki a silhueta simples dos opositores: Jean-Pierre Léaud, o delator, que aparece meio cambaleante e faz lembrar o “Cordelier” de Renoir, e os polícias que perseguem Idrissa, filmados sempre em bando, a correrem de um lado para o outro (uma espécie de Keystone Cops em estilo Sarkozy). E depois, a personagem ambígua do inspector Monet (Jean-Pierre Darroussin), vestido de negro como um vilão de western ingénuo, mas finalmente merecedor da humanidade que Kaurismäki lhe reconhece (a cena do ananás, no bar, é prodigiosa).

Neste mundo “de cinema” - a fotografia de Timo Salminen faz o milagre habitual: recupera uma luz de estúdio, totalmente em desuso, a aplica-a mesmo às cenas de exteriores - o cinema ainda pode mais do que a vida. É o mais optimista dos filmes de Kaurismäki em muitos anos, mesmo se, por todas, se trata de um optimismo “de fábula”. Há, portanto, lugar para o milagre. E depois do milagre vem o “tempo das cerejas” (como os tangos de Olavi Viirta e de Gardel, um velho favorito da “juke box” de Kaurismäki), e o “plano-ozu” que nunca falta num filme de Kaurismäki: uma cerejeira enquadrada, em leve contra-picado, contra chaminés e cabos eléctricos. É tão belo que dá vontade de chorar. E se não houver cerejeiras no Havre, tanto melhor.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


O cinema de Aki Kaurismäki é uma máscara de optimismo que nos avisa que o mundo não é como nos filmes. Mas teremos sempre os filmes.

Há 20 anos, Aki lembra-se, ainda se podia fumar numa sala de conferência de imprensa do Festival de Cannes. Hoje já não, e foi precisa uma pantomima digna de Chaplin para lhe tirar o cigarro da boca. Acendeu um, tirou outro... "Os tempos mudaram, eu é que continuo na mesma." Por isso é que Le Havre é um porto de abrigo, porque há coisas que não mudam nos filmes do cineasta finlandês: aquele fingimento de optimismo e de happy end quando a coisa está negra, a autoparódia como consolo (e aviso: tudo isto só existe em cinema), os silêncios e as cores garridas em cenários de outro tempo já que o passado é o local favorito de Aki Kaurismäki e a sua câmara de filmar, que é de 1974 e pertenceu a Ingmar Bergman, "não gosta de arquitectura moderna".

Por isso teve de procurar muito em Le Havre, passar para lá da zona moderna da cidade da Normandia que foi bombardeada na II Guerra Mundial, e descobrir ruelas e recantos do passado que pudessem ser suficientemente artificiais como uma reconstituição em estúdio. Coisa pouca, umas porcarias, como diria um dos actores do filme, Jean-Pierre Darrossin, mas com elas Kaurismäki faz todo um mundo; o que faz dele o oposto de um político, que com o mundo só faz porcarias (ainda Darrossin). Uma questão de moral, portanto. Com realismo poético francês dos anos 30, René Clair e Carné, e ainda, e como sempre, o burlesco de Tati, e o marxismo, mais de Karl do que o dos irmãos, e estamos servidos.

André Wilms, que aqui se chama Marcel Marx, interpreta um homem com os olhos tristes da derrota mas um optimismo de outro mundo. Que, como todas as personagens do realizador, usa como uma máscara de dignidade. Deixou a vida de boémia (e Wilms fez para Aki, em 1992, La Vie de Bohème), os seus sonhos, arrumou os sapatos e remeteu-se aos sapatos dos outros. Ganha (mal) a vida como engraxador. A mulher, Arlety (que outro nome poderia ter Kati Outinen nas brumas de uma cidade portuária?), adoece, um cancro. No momento em que em Le Havre desembarca um miúdo, refugiado africano, que quer chegar a Londres.

Aki diz que não tem respostas para a "crise financeira, política e sobretudo moral que originou a sempre por resolver questão dos refugiados" na Europa. Le Havre não é filme de respostas e é seco como um carapau se se procura discussão de "tema do dia". Mas fala-nos de outras maneiras e por todos os lados, apesar de ser quase sempre mudo, e sempre para nos dizer que o mundo é feito ao contrário daquilo que o filme mostra, com os silêncios, com as cores e com os cenários e não só com os (poucos) diálogos dos actores. Que falam em francês, língua que Aki Kaurismäki não domina, mas isso nunca foi problema. Como Aki disse em português (tem casa e passa parte do ano num canto esquerdo da Europa): “Em Portugal costumamos dizer: "Posso ser burro, mas não sou estúpido."”

Em Cannes por estes dias são todos Aki. Le Havre foi um dos filmes mais aplaudidos do concurso.
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Vasco Câmara



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Com o dedo em riste com cuspo, Aki Kaurismaki sabe por onde anda o vento no terraço da Fundação de Serralves. Não tendo ainda investigado um espaço que desconhecia, continua a suspeitar do formato "arquitectura moderna". "Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso."

Há 20 anos que o finlandês está entre nós. Chegou nos anos 80 a Viana do Castelo com um Cadillac de 1962 e cabelo comprido até ao rabo. Aceitaram-no. O país já não era a utopia que um amigo descobrira num interrail em 1971. Mas ainda era suficientemente antigo. "Agora é demasiado moderno."

Ainda aqui está. E ainda considera os portugueses "insondáveis". Por isso andou com pouca convicção pela costa portuguesa à procura de uma cidade portuária para rodar o seu filme - com pouca convicção por causa desse lado insondável e porque diz conhecer pouco cinema português. Parou na costa francesa, Le Havre. É esse o porto de abrigo. Para um miúdo africano que dá à costa e que Marcel Marx, ex-boémio, agora engraxador (é a conexão portuguesa) e em busca de redenção, vai conseguir safar no espaço europeu. E um porto de abrigo para o espectador: os tempos mudam, Aki continua com aquele fingimento de optimismo e de "happyend" quando a coisa está negra (assim vai a Europa, em tempos de crise financeira e moral), uma nobreza feroz.

Numa entrevista, disse que uma das ideias para a personagem interpretada por André Wilms foi um engraxador português.

Tinha a ideia de um homem que vê um rapaz na água e decide ajudá-lo. Mas não sabia que tipo de homem era: rico, pobre, classe média, operário - e, sendo assim, que tipo de operário? Demorei quase um ano a encontrar isso, porque hoje sou mais lento do que era e porque ao mesmo tempo estava à procura da cidade onde filmar. O Porto era perto [de onde vive, Viana do Castelo], não queria filmar no Porto porque, ao fim de vinte anos, ainda não sei o que está dentro da cabeça portuguesa...


... já disse que os portugueses eram "insondáveis"...
E não sei o que está dentro da cabeça portuguesa. E ninguém sabe. Alguém escreveu que vocês parecem muito calmos, mas dentro há um vulcão.

Poderia dizer-se isso dos finlandeses: insondáveis...
Pelo menos os "yankees" não são insondáveis, sabemos todos o que eles querem.
Como dizia, estava à procura da cidade para filmar, mas não conseguia deixar de escrever e tinha esta incógnita sobre este homem. E um dia encontrei um engraxador em Viana. Engraxei os sapatos, que já estavam brilhantes... Decidi que a personagem iria ser engraxador, obviamente. Ele pediu três euros, eu dei-lhe vinte. "Não, é demasiado", disse. "Não, não, é muito pouco", disse eu. Ele até tinha um cão, até roubei isso [para o filme].
A minha mulher exigiria que a personagem tivesse um cão, de qualquer maneira, até porque um dos nossos cães ainda não tinha sido actor. Ao terceiro dia de escrita de argumento, ela já estava a perguntar: "Há papel para o cão?". Respondi-lhe: "Já está escrito".

É o seu quarto filme com André Wilms... A personagem, MarceI Marx, é uma continuação do MarceI Marx de "La Vie de Bohème" [1992]? É como se a experiência que ele atravessa em "Le Havre", o encontro com o miúdo africano refugiado, lhe permitia uma expiação por pecados antigos... Não sei se "redenção" é palavra para si...
Bem, é o mesmo homem. Tem o mesmo nome. Há um momento em que ele diz ao rapaz: "eu fui jovem em Paris..." e também que o "sucesso como escritor foi apenas artístico", ou seja, sem dinheiro. Claro que, sendo eu preguiçoso, ajudou-me a pensar que, tendo já esta personagem, só precisava de inventar o resto. Mas, sendo o mesmo homem, o que lhe aconteceu entre "La Vie de Bohème" e este filme eu não sei. O André [Wilms] não sabe. Há uma altura em que ele diz à proprietária do bar que a mulher o salvou quando ele estava na sarjeta. Obviamente ele bebia de mais e chegou ao desespero na sua tentativa de furar por entre as guerras dos editores. Na altura de "... Bohème" [argumento baseado em "Scènes de la vie de bohème" , de Henri Murger] sempre que pensava sobre actores e personagens, eles eram os Três Mosqueteiros e André sempre foi para mim Athos, alguém que no livro era aquele que mais pensava antes de agir.
Estando num país estrangeiro, com uma língua estrangeira e numa cidade estrangeira [Le Havre, França], foi importante ter alguma coisa [a que me ancorar]. De outra forma, ter-me-ia esquecido da personagem de "... Bohème" .
E gosto de me divertir quando escrevo. Pondo coisas para mim próprio. Para as pouco pessoas que viram "La Vie de Bohème" talvez possa ser interessante. Não sei. Desde que não prejudique a história. Como sou produtor de mim próprio... quem sabe, talvez alguém possa querer ver "La Vie de Bohème" e eu ganhe mais alguns escudos.

Há um molde para as personagens de Aki Kaurismaki? Há "actores à Aki Kaurismaki?" Isso já se reconhece antes de eles entrarem nos seus filmes ou tornam-se "actores de Kaurismaki" porque os transforma?
Parece que transformo os actores, porque os impeço de interpretarem - demasiado. Eu não deixo os meus actores gritarem, rirem-se ou correrem. Digo-lhes sempre: "Expressem tudo o que quiserem com a sobrancelha esquerda, mas é tudo". Dois dias depois, eles cansam-se e eu tenho o que quero.

O que é que viu em André Wilms, na primeira vez?
É como um clube para cavalheiros sem muitos membros. Conheci-o em Paris, não conhecia actores franceses. Um amigo perguntou-me se eu queria encontrar-me com ele. "É bom?" "Sim." "Tem um nariz comprido?". "Sim". "Ok, encontremo-nos". Encontrámo-nos num café, apertámos a mão e disse-lhe: "Está contratado". "Para quê?". "Vamos discutir isso agora". Foi ódio à primeira vista [risos].


Ele retribui: diz que não gosta de realizadores, a não ser de Aki Kaurismaki. Nova trilogia, esta, iniciada com "Le Havre" ...
... Digo sempre isso, que é uma trilogia. Talvez faça o filme seguinte, mas só daqui a cinco anos. Até lá, tenho uma curta a fazer para Guimarães [Capital da Cultura] e não farei mais nada depois porque tenho de cuidar do meu jardim.
Sou tão preguiçoso, só me apetece deitar e ler, que tenho de criar esse dispositivo da trilogia para me forçar.

O "happyend" em "Le Havre" é político? Está confortável com isso do "político"?
Conheço suficientemente os espectadores para saber que vão ao cinema para se entreterem. E não para receberem lições. Um filme político terá de ser um documentário. Introduzir as nossas opiniões numa ficção não funciona. Talvez só interesse a cem pessoas, aquelas que queiram mais alguma coisa [de um filme]. Se alguém me disser que o banco em que me sento é político, eu digo que é apenas um banco. Mas gentilmente tento, enquanto divirto as pessoas, que elas vejam que há este problema hoje no meio de nós, todos os dias e sempre, e que as pessoas que vemos nas ruas não estão a ser bem tratadas pela gloriosa Europa. Pelo contrário, estão a ser muito maltratadas pelos governos. E não acredito de forma alguma na conversa dos políticos. Porque é por isso que eles são políticos. Não compraria um carro novo a um político.

Mas quando faz um filme assim, como fábula, não é isso já político?
Sim, mas espero que de forma escondida.

Como se o filme nos estivesse permanentemente a acordar para o facto de que histórias como esta resolução, com milagrosos "happy end", só acontecem nos filmes.
Os milagres também acontecem na realidade... Diverte-me a ideia de que se qualquer filme pode ter um "happy end", que tal se houver dois?
A política é uma chatice, excepto para as pessoas que querem poder. E o poder e o dinheiro estão sempre de mãos dadas, o que toma a política a alto nível qualquer coisa de sujo. Não a política a nível municipal, que trata das nossas coisas comuns. Mas, quando chegamos ao topo, há sempre um compromisso entre o que deve ser feito e a lealdade para com as pessoas que deram dinheiro para essa subida ao poder.

O filme passa-se hoje...
Em 2007, porque se pode fumar nos cafés...

Mas podia ser um filme dos anos 30, francês. E na sua dimensão abstracta convoca, também, o Holocausto. Pensou nisso, em trabalhar uma certa intemporalidade que abrisse o filme a intromissões?
Sim, mas não é a minha função analisar isso. Pensei num tema, em locais para filmar, e escrevi tudo numa semana. Não sei o que meti na panela; certamente o meu subconsciente, tudo o que li e os filmes que vi. Mas não quero analisar excessivamente, sinto que estraga alguma coisa.
Mas é verdade que não acredito em filmes que não tenham nada a dizer. Não são cinema. São apenas "entertainment". O que é OK para os domingos de ressaca à tarde, por que não?
É um filme sobre refugiados, e claro que não falo apenas dos refugiados de hoje na Europa. São os refugiados em todo o lado e em geral. E a Europa na II Guerra estava cheia de refugiados... Não tinha pensado nisso até ter mencionado.

Por onde andou à procura de cidades, antes de escolher Le Havre?
Pela costa italiana, Sul de França, Espanha, costa portuguesa, mas passei por Lisboa sem parar. Não consigo filmar em Portugal.
Já conheço muitos filmes franceses, sei como é que os actores devem falar.



Devia ver filmes portugueses...
Vejo sempre que posso. O meu português não é muito bom. Vi "Aniki Bobó" [Manoel de Oliveira]. E "Maria do Mar" [Leitão de Barros]. E filmes de Pedro Costa. E João César Monteiro. Mas não posso dizer que conheço o cinema português.

É curioso que fale em Pedro Costa. Em "Colossal Youth", ele colocou as personagens, uma delas, Ventura, num museu, como se erigisse um pedestal de dignidade. A sequência, no seu filme, em que se abre o contentor com refugiados lá dentro contraria as expectativas supostamente "realistas" - nada a ver com pessoas mal vestidas, nada a ver com sujidade... Não é por acaso que as filma assim.
Quando escrevi, havia alguns mortos na cena. Mas perguntei a mim próprio: "Porquê?" E fintei a lógica. Eles estão a ir para uma nova vida, levam as suas melhores roupas vestidas. Os povos africanos são sempre muito limpos. E passei por cima do problema de estarem dentro do contentor há duas semanas. Vamos mostrá-los tão orgulhosos como os africanos são.

Para contrariar uma figuração...
Fui contra o "realismo maltrapilho", livrei-me do naturalismo, do realismo que toda a gente agora tenta. Contra Victor Hugo. Não todo, mas o dos "Miseráveis” ...

Por que é que escolheu o Havre?
Por preguiça, era mais fácil filmar em França. Falo algo de francês, percebo o que eles dizem. E gostei porque, durante a II Guerra, Le Havre foi totalmente bombardeada pelos aliados - não pelos alemães -, numa manobra de diversão para fintarem a invasão que preparavam. As pessoas ainda não esqueceram isso. Mesmo as que não tinham nascido. É gente orgulhosa, que não gosta especialmente do centro do poder, Paris. Senti logo isso. E tem uma luz espantosa, uma luz branca. Muitos pintores foram para lá pintar. Gostei, e não sou um grande visualista. Mas gosto da luz. E é uma cidade boa para produzir filmes - é o produtor em mim que fala - porque a largura das ruas, ruas do pós-guerra, é suficiente para os camiões com equipamento eléctrico...
As pessoas disseram-me que era a cidade mais chata do mundo, que era cinzenta e feia, que ninguém ia lá. Pois eu vou. Ninguém vai lá por acaso ou de passagem, é preciso querer ir lá. E se era uma cidade suficientemente boa para Marcel Carné ["Le Quai des Brumes"] e Jean Vigo ["L'Atalante"], é boa para mim.

E, tal como outros espaços dos seus filmes, recusa-se a dizer "hoje".
A arquitectura moderna desagrada-me intensamente...
É sempre uma luta contra o tempo quando filmo. Os "caterpillars" estão invariavelmente atrás de mim. Estão sempre a querer demolir a área em que estou a filmar. Temos sempre que lhes pagar para nos darem uma semana mais de rodagem antes da demolição total. Tem sido sempre assim na minha vida. Tudo o que filmo não existe depois. Deve ser por alguma coisa de que gosto.
Como filmar em cubos modernos, que é o que se chama hoje arquitectura? E é um erro pedir a arquitectos que façam cubos nos sítios em que há chuva. Deviam fazer um telhado. Deve haver problemas aqui com a água. Mas não tive tempo ainda de investigar, isto não parece assim tão mau... Quando as pessoas têm algum dinheiro fazem as suas casas como cubos, cheias de pormenores, mas acabam por não se enquadrar na área... e não parecem muito funcionais.

Tudo nos seus filmes remete para um mundo que acabou ou está à beira de acabar.
Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso. Também não gosto de carros modernos, acho-os feios. Para mim, as coisas poderiam ter acabo em 1962, ou com a invenção da de penicilina - e digo 1962 porque o meu Cadillac é de 1962.


Foi por isso que escolheu viver em Portugal, há 20 anos, porque era um país que parecia viver no passado?
Quando vim para cá, em 1989, era de facto um país que vivia no passado. Agora é demasiado moderno. Para além dos táxis, o meu era o único carro em Viana do Castelo. E era um Cadillac de 1962. Tinha cabelo até à cintura, 30 anos, as pessoas perguntavam: "O que é aquilo?". Mas eram gentis, e aceitaram-me.
Claro que o progresso traz coisas boas, mas traz também o consumismo. Para quê ir ao supermercado e encontrar seis mil tipos de iogurte se cinco ou seis chegam? Tenho pena de não ter estado aqui em 1971. Um dos meus amigos veio cá em interrail, passou por Viana do Castelo, adorou Portugal, e viu coisas que nunca vi. Antes dos anos 80, pouca coisa tinha mudado aqui em 300 anos. Na Finlândia, o progresso começou nos anos 60 e foi lento. Aqui começou nos anos 80 e foi rápido.

Há coisas semelhantes entre portugueses e finlandeses?
Sim. Nós temos a melancolia, vocês têm a saudade. A melancolia finlandesa é quase a saudade portuguesa, mas não totalmente. Só os portugueses podem saber o que é. Ontem estive a tomar café. Dois homens estavam em pé, a olhar para o mar. Num deles consegui ver nos olhos a saudade. Durante meia hora. Depois voltaram ao trabalho. Acho que era saudade. O máximo que consegui chegar dela. Conheciam-se, claro. Não se falaram praticamente. Dois metros de distância entre eles.

Podia ser um filme de Aki Kaurismaki.
Os meus filmes agora estão cheios de diálogos.

A propósito: na relação entre a personagem de Wilms e da mulher, há um protocolo, o respeito pelo espaço do outro.
É muito finlandês. Gosto, em França, que a equipa parta para o almoço de¬pois de se beijar, depois regresse e todos se beijem outra vez. Mas fico embaraçado. Beijam-se de manhã, ao almoço, à noite... Os finlandeses têm problemas em dizer "olá" de manhã. Deve dar uma média de 180 beijos, ou seja, tira 4 minutos ao tempo de trabalho. Contando com o regresso, tira oito minutos...

É mais do que contabilidade: há coisas que acha que não deve filmar.
Claro, os finlandeses também beijam as mulheres. Mas não em público. O cinema é uma coisa pública, lá no grande ecrã. As coisas privadas devem manter-se privadas. Estou a falar do cinema real, que se mantém fora do sexo e da violência. Foi assim que fizeram Buñuel e Renoir, sou da velha escola.

E Ingmar Bergman?
É um caso especial. Falemos, antes, de Dreyer. Nem deixava os actores olharem uns para os outros. Senta¬dos ao lado um do outro e a olharem em frente. Nos meus filmes ao menos eu deixo os meus casais olharem-se.

Falei em Bergman porque filma com a câmara de Ingmar Bergman...
Já filmei vinte filmes com essa câmara, e Bergman aparentemente filmou apenas três. Comprei-a depois de "Fanny e AIexander", quando ele vendeu as suas coisas. É a minha câmara agora, que Bergman reste em paz.

Por que é que o considera especial?
Quem diz que gosto de Bergman?

Acho que gosta.
Gosto muito até "Through a Glass DarkIy" (1961). Depois disso não gosto especialmente.

Nem de "Lágrimas e Suspiros"?
Não, demasiado artístico. Gosto quando ele conta histórias, por exemplo "Morangos Silvestres". Fez muitas obras-primas. Admiro-o mais do que o amo.

Se tem a câmara dele não tem a câmara de outros realizadores.
Gostaria de ter a câmara de Raoul Walsh, mas era um homem do estúdio, não tinha câmara própria. Apesar de ter filmado os meus últimos 15 filmes com a câmara de Bergman, acho que nada passou dele; através da câmara, para os meus filmes. Era também a câmara de Sven Nykvist. É uma bela câmara.

O que está a filmar para Guimarães?
Ainda não tenho argumento. Guimarães produz cinco filmes de 15 minutos cada, Godard, Oliveira, Victor Erice, Pedro Costa e eu. Há um tema, "Memória da pedra", mas somos livres e de qualquer forma tudo o que se filmar numa cidade portuguesa terá sempre a ver com pedra.

Que filmes vê?
Não diga nada a ninguém, mas a última vez que comprei bilhete para um cinema foi em 1986, para um filme de Rohmer, "A Mulher do Aviador". Depois mudei para o campo e não havia cinema. Nesses dias fazia filmes rapidamente, três por ano. À noite estava tão cansado que não aguentava ir ao cinema. E era um fumador invetera¬do, não podia fumar na sala. Hoje tenho uma sala em casa e avanço para trás. Neste momento, estou entre Griffith e Méliès.

Viu "O Artista", supostamente um filme mudo?
Não, não vi. Ouvi falar. Sim, "supostamente". Por que é que devia ver? Já fiz o meu filme mudo ["Juha"]. Daqui a dez anos, talvez o veja. Quando toda a gente está a ir ver um filme, acho que deve haver algo errado. Há excepções. “Voando Sobre um Ninho de Cucos” ainda é um bom filme. Vamos aguentar uns cinco anos a ver se [“O Artista”] ainda é bom. Mas avanço para trás, 100 anos. Prefiro qualquer filme de Laurel e Hardy a tudo o que se fez em Hollywood depois
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Vasco Câmara, Público, 17/2/12




Argumento e Realização: Aki Kaurismäki
Fotografia: Timo Salminem
Montagem: Timo Linnasalo
Interpretação: André Wilms, Kati Outinen, Jean-Pierre Darroussin, Blondin Miguel, Elina Salo, Evelyne Didi,
Quoc-Dung Nguyen, Laika, François Monnié, Pierre Étaix, Little Bob, Jean-Pierre Léaud
Origem: Finlândia/França/Alemanha
Ano: 2011
Duração: 93’

Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€

Para Maiores de 18 anos - SEUL CONTRE TOUS ou o incesto segundo Gaspar Nóe. Sede, 5ªf, 21h30.

ENTRADA LIVRE, CERVEJA A 1€.

Questiona a posição de julgamento e penalidade cegos a respeito do amor incestuoso, insinuando uma correspondência equivalente de ambas as partes.
O que você pensaria de você, caso sentisse, além do amor, a atração sexual por seu pai/mãe, por seu filho/filha, ou mesmo irmão/irmã?
Qual seria nossa auto-imagem, trazendo para o discurso a condenação social deste tipo de atitude?

A figura central da trama é o Açogueiros, saído do curta-metragem Carne também do diretor Gaspar Noé [a exibir neste Ciclo na próxima 5ªf, dia 26]. Interpretado pelo excelente ator Philippe Nahon, essa criatura violenta, petrificada, fica vagando por labirintos obsessivos repletos de recalques, ódios contra estrangeiros e homossexuais, com a sempre onipresente figura da filha que ele deseja de maneira doentia. O filme cria uma atmosfera hermética onde a loucura crescente da personagem central está sempre aparente, seja nos tons amarelados de fotografia ou na narração em off. A obsessão é narrada como um diário absurdo. Um clássico do cinema moderno, cheio de poesia e fúria.

Realista, pessimista, filosófico e pode ser até chocante.
Complicado de criticar e extremamente ideológico, pode se dizer que Gaspar noé caprichou nesse filme. Expondo monólogos extremamente conturbados e filosóficos, um roteiro excelente com um toque “existencialista”, criticando alguns pontos sociais, apresentando frases “Schopenhauerianas”, mostrando a pobreza e a sujeira da natureza humana, a loucura poética de um pessimista, além de contar com a teoria da vontade de poder de Niezstche. O filme pode deixar o telespectador deprimido, carente, triste, conturbado, chocado e até irritado, mas não podemos deixar de negar é que toda a história do filme é algo possível e realista, em outra palavras, é uma verdade relativa, mas válida.


Gaspar Noé – este franco-argentino é um daqueles malucos que faz valer o termo extremo da expressão cinema extremo. O mais mainstream dos seus filmes, Irreversível, ganhou fama de maldito e doentio e jogou o cineasta novamente no limbo underground. A galera do lado de cá da indústria agradece. A saga maldita começou com o curta Carne (nunca vi, mas já ouvi comentários positivos) e se concretizou com o longa Seul Contre Tous.

O filme é cinza, escuro, claustrofóbico, angustiante, desajustado, enfim ou o espectador vê que tem gente que é pior que ele e agüenta o tranco ou entra numa depressão profunda que nem tarja preta dá jeito. A trajetória do açougueiro francês - interpretado pelo ator predileto do cineasta, Philippe Nahon - refugiado na periferia imunda de Paris é uma afronta a qualquer traço de civilidade ou bondade. O personagem é uma ode ao ódio - detesta gays, alemães, mulheres, negros, árabes... Xenofobia e preconceito, em doses nada homeopáticas, retratados por um Tim Burton quase pornográfico.

A única redenção, ou melhor, o único traço de humanidade está na pureza da filha autista. Mas Noé é tão escroto que este alívio explode em tons avermelhados no final. O final é forte; muito forte mesmo. Provoca ânsia nos organismos mais resistentes. Muito mais que o viés socialista da justificativa da violência pela pobreza econômica e a miséria social o filme nos mostra a sordidez humana, a gratuidade do desespero e da desesperança. Angústia ilimitada do mal que nós nos causamos. A desilusão em um país rico repleto de cidadãos e estrangeiros sem identidade. Nessa odisséia cosmopolita e violenta, ninguém é poupado. Todos são culpados e a fúria se torna justificável. Desilusão a tudo, todos e em todo lugar. Assim como seu cineasta, Seul Contre Tous é grande demais para o cinemão; é leão para o seu quintal.

Ponto Alto: os textos pontuando a narrativa.

Ponto Baixo: o filme sofre do efeito Apocalypse Now – agüente até o fim e entenda a grandiosidade da obra."

Juarez Junior



Título Original:Seul Contre Tous
Realização e Argumento: Gaspar Noé
Produção: Gaspar Noé, Lucile Hadzihalilovic
Interpretação: Philippe Nahon (The Butcher), Paule Abecassis (Junkie), Serge Faurie (Hospital Director),
Aïssa Djabri (Dr. Choukroun), Olivier Doran (Narrator), Guillaume Nicloux (Supermarket Manager),
Sophie Nicolle (Younger Daughter), Roland Guéridon (Old Friend), Zaven (Every Man his Moral)
Origem:França
Ano de produção: 1998
Duração:93'

O olhar (finalmente) terno dos irmãos Dardenne - O MIÚDO DA BICICLETA!

3ªf, 21h30, IPJ.

Importa reconhecer que a performance de Jean-Pierre e Luc Dardenne no Festival de Cannes é impressionante: por cinco vezes estiveram na secção competitiva, por cinco vezes saíram da Côte d’AZur com algum prémio.

Tudo começou em 1999, com Rosetta: e logo com a Palma de Ouro! Em 2002, O Filho valeu-lhes uma menção especial do Júri Ecuménico (único prémio não atribuído pelo júri oficial do certame). Regressaram em 2005, com A Criança: segunda Palma de Ouro! Em 2008, O Silêncio de Lorna arrebatou o prémio de argumento. Finalmente, já este ano, O Miúdo da Bicicleta recebeu o Grande Prémio do Júri (o segundo na hierarquia do palmarés oficial).

É, precisamente, O Miúdo da Bicicleta que agora chega ao mercado português. E o mínimo que se pode dizer é que os irmãos Dardenne se mantêm fiéis a si próprios: o seu cinema conserva a coerência de um realismo social enraizado numa observação metódica daquelas zonas da vida social em que todas as relações (familiares, amorosas, profissionais) parecem estar à beira da falência, arrastando as personagens para uma decomposição sem regresso.

Não é, por isso, um realismo abstracto. Os Dardenne filmam histórias profundamente ligadas ao quotidiano do seu pais (Bélgica), mas evitam cair em generalizações fáceis. Acima de tudo, interessa-lhes seguir personagens que se distinguem pela singularidade do seu trajecto e, não poucas vezes, pela brutalidade dos seus dramas. Lembremos a obstinação de Rosetta, no filme homónimo, tentando manter um emprego e escapar à teia da sua mãe alcoólica. Lembremos ainda o casal de jovens de A Criança que, num momento de desespero cego, admite a hipótese de vender o seu bebé.

Em O Miúdo da Bicicleta (titulo original: Le Gamin au Vélo), os Dardenne voltam a colocar em cena uma personagem profundamente comovente. O jovem Cyril (Thomas Daret) é alguém apanhado na teia de uma família precária: por um lado, vive num asilo, não concebendo sequer a ideia de que o pai o rejeitou: por outro lado, é-lhe impossível acreditar que o pai tenha vendido a sua preciosa bicicleta. O encontro acidental com Samantha (Cécile de France), uma jovem cabeleireira que o acompanha, abre-lhe horizontes inesperados: será que ela pode ser a figura materna que o irá proteger?

A arte dos Dardenne possui a aparente ligeireza de um documentário mas, de facto, trabalha todos os elementos com uma atenção e um rigor inexcedíveis. É um cinema de histórias particularíssimas que, pela humanismo do seu olhar, consegue possuir uma admirável dimensão universal.
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João Lopes, Premiere


Quando os Dardenne filmam os pobres, não lhes arrancam o mundo. Há muito que os irmãos belgas perseguem o mesmo filão, as mesmas heranças, as mesmas histórias de pais e filhos, reais e simbólicos, em filiações sanguíneas ou afetivas. As personagens dos Dardenne, por seu lado, respondem-lhes: nunca baixam as orelhas. Não choram, não mamam, não fazem figura de coitadinhos como tantos que andam por aí. O miúdo desta bicicleta, Cyril (incrível Thomas Doret), é disso exemplo. As personagens dos Dardenne combatem. Para eles, o cinema é uma questão de luta. E de ponto de vista, porque a câmara de Jean-Pierre e Luc sabe como acompanhá-los sem os esmagar - é esse o seu maior triunfo.

O cinema contemporâneo tem uma dívida tremenda com os Dardenne. Quando Cannes os lançou, há 15 anos, com "A Promessa", o meio do cinema ainda não sabia como responder-lhes. Os irmãos já tinham um bom punhado de documentários antes dessa primeira ficção mas "A Promessa" foi muito mais longe: inaugurou um novo modelo de produção e um novo efeito de realismo. Inaugurou um cinema que funciona em todos os sentidos do termo. Casou o documentário e a ficção com uma seriedade sem limites e o casamento, que no cinema francófono só tinha um farol chamado Maurice Pialat, espalhou-se pelo planeta (veja-se o novo cinema chinês, veja-se o romeno...), num dos eixos cinematográficos mais produtivos dos últimos 20 anos.

Condenados a fazer o mesmo filme, os Dardenne? Pas forcément. Quem passar os olhos pelo denso livro que o mais novo dos.irmãos, Luc, doutor em filosofia, publicou há uns tempos ("Au dos de nos images"), compreenderá que a arte dos Dardenne e a sua economia fina, embora escavem bem fundo, residem na humildade, na contração, na mecânica do que não é mostrado nem se exprime em voz alta - daí a sensação de que os filmes se repetem. Mas não repetem. Com este "miúdo", os Dardenne abrem o seu espaço a uma atriz da indústria - e Cécile de France é absolutamente notável na mãe adotiva de Cyril/Pitbull. Filmaram no verão, coisa rara, se não inédita. Com planos muito mais largos do que é habitual. Com a câmara, também pela primeira vez, à altura do olhar de uma criança, num sistema muito diferente de "Rosetta". Quem poderá ainda, pe¬rante este retrato incandescente da infância que até admitirá um raio de sol, dizer que os Dardenne se repetem?

Há críticas que saem assim, nas tintas para a story, mas com vontade de abraçar um todo e em força, como naquele plano, magnífico (talvez o mais forte de sempre dos belgas), em que Cyril, ele que só quer encontrar o pai, atira uma mulher desconhecida ao chão e descobre uma 'mãe': Samantha. "O Miúdo da Bicicleta" deixar-nos-á em suspenso alguns segundos com um milagre lá para o fim que tem a forma de uma ressurreição. Todos os filmes dos Dardenne são histórias de Abraão e Isaac, para voltarmos aos pais, aos filhos e - admitamos - a um cinema que professa com subtileza o seu cristianismo. Até que o perdão intolerável, sem qualquer palavra de consolo, sem qualquer gesto de condescendência, se possa tomar um perdão possível - e a história deste filme, afinal, é só esta.
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Francisco Ferreira, Expresso


...O Miúdo da Bicicleta. E agora sem pedais, e agora sem mãos, e agora sem pai, e agora sem rumo... Último filme dos irmãos Dardenne: uma fábula infantil contada aos adultos.

Por mais voltas que dêem, por mais que pedalem, e já lá vão mais de quatro décadas de documentários, ficções e muitos prémios acumulados, Luc e Jean-Pierre Dardenne (incluídos no circulo restrito dos duplamente "palmeados, em Cannes) regressam sempre ao local do crime. Que, confessou Luc, o mais novo dos irmãos belgas, quando passou por Lisboa, em Novembro, no Lisbon & Estoril Film Festival, a apresentar O Rapaz da Bicicleta (Prémio Especial do Júri, em Cannes, estreia-se hoje, dia 22), é Seraing, um subúrbio industrial de Liéges: "A cidade da nossa infância". Uma pequena cidade de quatro mil habitantes, afectada por uma grande crise nos anos 70, deprimida pelo desemprego, depreciada pela marginalidade. Os irmãos Dardenne sempre fizeram um cinema militante e realista, socialmente comprometido, um pouco na mesma linha de Ken Loach ou Mike Leigh. "Gostamos de marginais, de filmar o ser humano em situações extremas", comenta Jean-Pierre. Mas logo acrescenta: "Bem, também gostamos de pessoas que vão ao cinema". Curiosamente, diz, "este é o nosso filme mais sereno e luminoso". Apesar de tratar de um filho a quem o pai lhe desaparece. Uma criança errante, um ser em tumulto, em permanente desassossego, mesmo dentro de casa ele nunca está parado, em perpétua fuga para a frente, porque não aceita o abandono do pai, que o depositou numa instituição. Resiste à rejeição, incansável, e pedala, pedala sempre - a bicicleta é o único meio de transporte que se move exclusivamente a esforço humano e jamais anda para trás. Apesar da inclemência do argumento (baseada numa história verídica de um menino japonês que não cessava de correr atrás do pai "abandonante"), este é o primeiro filme dos Dardenne rodado no Verão. Por outro lado, há menos interferência de objectos entre a câmara e as personagens, o que confere à acção maior fluência. Ao contrário do habitual despojamento artificioso, existe música, embora de uma forma muito comedida. Pequenas doses, apenas fragmentos, apontamentos musicais (da 5ª Sinfonia de Bethoveen), quase como uma bênção de afago ao miúdo em sofrimento e que dividem o filme em três partes, como numa fábula contemporânea: exposição, acção e resolução e aí a 5ª sinfonia inunda o ecrã. Tal como nos contos infantis há um miúdo (o concentradíssimo Thomas Doret de apenas 13 anos, escolhido de entre 150 crianças, e quase lhe vemos a respiração), insistentemente vestido de vermelho, e tudo de mau lhe acontece num recanto escuro da floresta. Depois há uma fada, muito pouco azul, nada sentimental - é apenas uma cabeleireira de bairro que se interessou pela criança abandonada, e por causa dele até abdica do namorado. Porque sim, os irmãos Dardenne nunca se detêm em explicações nem em teorizações piegas, preferem a elipse, e fazem o filme andar em frente. Talvez porque, numa ocasião, os destinos da mulher e do miúdo se encontraram num abraço que foi mais um aperto - isso bastou. E onde há uma fada, há sempre o contraponto, um lobo mau, que se oculta nos esconsos do arvoredo. Ou uma dupla de felinos que sustêm Pinóquio no seu caminho para a escola, portadores de tantos atrativos, contra os quais nem as fadas mais azuis conseguem competir.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão


ENTREVISTA COM JEAN-PIERRE E LUC DARDENNE

Qual a origem de O MIÚDO DA BICICLETA?
Luc: Tivemos essa história nas nossas cabeças durante muito tempo: uma mulher que ajuda um rapaz a emergir da violência que o mantém prisioneiro. A primeira imagem foi a deste rapaz, este ser em tumulto, suavizado graças a outro ser humano.
Jean-Pierre: Primeiro imaginámos Samantha como uma médica mas mudámos de opinião e decidimos que ela seria uma cabeleireira, instalada no seu bairro desde há bastante tempo.

Este é um filme muito comovente sem nunca cair em sentimentalismos.
Jean-Pierre: Graças a Deus!
Luc: Nunca quisemos que o público percebesse porque é que a Samantha se sentia arrastada por Cyril. Não queríamos explicações psicológicas. Não queríamos que o passado explicasse o presente. Quisemos que o público pensasse: “Ela está a fazer isto!”. E isto já é bastante.

Cyril está sempre em movimento. Ele é incansável.
Jean-Pierre: Sim, ele está muitas vezes na sua bicicleta… Este miúdo sem quaisquer laços corre atrás de amor sem o saber.

As relações entre pais e filhos destacam-se muitas vezes nos vossos filmes: “A Promessa”, “A Criança”, “O Filho”. Porquê?
Luc: Somos todos “filhos de” ou “filhas de”…
Jean-Pierre: A nossa sociedade glorifica o indivíduo. Talvez seja como uma reacção a este facto que regressamos tantas vezes à ideia de vínculo. Mesmo que nem sempre seja biológico, como acontece com Samantha e Cyril.

Apesar da violência da história de Cyril o filme tem um lado luminoso.
Jean-Pierre: Sim, procurámos encontrar alguma fluidez. Filmámos no Verão, o que é uma novidade para nós.

É difícil filmar a bondade?
Luc: Diante dela, a maldade é sempre mais entusiasmante (risos). Era muito importante não retratarmos uma bondade cliché, claro, mas sim mantermo-nos o mais próximos possível desta ideia de abertura e troca.
Jean-Pierre: Filmar uma personagem que tem os melhores sentimentos de outra pessoa no coração não sucede habitualmente connosco. Filmar no Verão ajudou-nos a dar ao filme alguma claridade e suavidade. E Cécile de France reúne estas qualidades naturalmente.


É pouco habitual trabalharem com actores conhecidos.
Luc: Nada foi programado. Nunca escrevemos com um actor específico em mente. Mal terminámos o argumento começámos a pensar em actrizes e em Cécile em primeiro lugar. Com ela sabíamos que evitaríamos toda a psicologia… que o seu corpo e rosto seriam suficientes. Entregámos-lhe o argumento e ela aceitou logo. Ela fez-nos algumas perguntas relativamente às motivações da sua personagem. Dissemos-lhe que a Samantha estava ali, e ponto final. Ela acreditou em nós.

Ela parece ter redescoberto o seu sotaque belga…
Jean-Pierre: Sim! Fomos muito cuidadosos com o sotaque. Não queríamos o efeito “chegou a actriz francesa!”. A Cécile é belga, não nos esqueçamos disto. Ela cresceu não muito longe da região onde o filme se desenrola mas o seu sotaque é ligeiro e não quisemos exagerá-lo.

Como encontraram Thomas Doret, o rapaz que interpreta Cyril e que está quase sempre no ecrã?
Jean-Pierre: Com o método habitual quando se procuram actores daquela idade: pusemos um anúncio nos jornais e depois organizámos um casting com centenas de crianças. Thomas apareceu no primeiro dia, foi o quinto que vimos e chamou logo a atenção.
Luc: Desde o início ficámos impressionados com a expressão dos seus olhos, com o seu ar teimoso, o seu aspecto concentrado…
Jean-Pierre: Ele tinha também uma capacidade admirável para aprender os diálogos… e ele tinha muitos. Desde os primeiros testes sentimos que ele era a personagem. Ele tinha um entendimento intuitivo do seu papel. Algo imediatamente preciso e pungente, sem nunca choramingar.
Luc: Ele foi o único a estar de forma consistente durante as 6 semanas de ensaios. Ele tornou-se um líder! Sabia todas as cenas de cor ainda antes de o termos chamado. E quando se enganava ficava verdadeiramente chateado. O Thomas é cinturão castanho no Karate! Isso ajuda-o na concentração e com a memória.

Em O MIÚDO DA BICICLETA temos a cidade mas também a floresta que a rodeia…
Luc: Imaginámos um triângulo geográfico para este filme: a cidade, a floresta e o posto de combustível. A floresta é, para Cyril, um local de atracções perigosas, o local onde ele pode aprender a ser um pequeno criminoso. A cidade encarna o passado com o seu pai e o presente com a Samantha. O posto de combustível é um espaço de transição, onde o enredo sofre muitas reviravoltas.
Jean-Pierre: Quisemos construir o filme como uma espécie de conto de fadas, com vilões que fazem com que o miúdo perca as suas ilusões, e com Samantha, que surge quase como uma fada-madrinha. Durante pouco tempo, chegámos mesmo a pensar dar o título “Um Conto de Fadas dos nossos dias” ao filme.

Pela primeira vez usam música, ainda que com moderação…
Luc: É muito raro nos nossos filmes e hesitámos durante muito tempo. Num conto de fadas é necessário haver um desenvolvimento com emoções e novos começos. Pareceu-nos que a música, em certos momentos, pode funcionar como uma carícia tranquilizadora para Cyril.

Estão de regresso a Cannes, onde já conquistaram duas Palmas de Ouro (por “Rosetta”, em 1999, e “A Criança”, em 2005). O que significa para vocês o Festival?
Jean-Pierre: É muito importante mostrarmos os nossos filmes aqui. É muito agradável voltarmos cá, de cada vez. Adoramos a onda de adrenalina que apenas existe em Cannes.
Luc: O nosso cinema deve muito ao festival. A nossa história continua aqui, uma história feliz até agora…
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Dossier imprensa



Realização e Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne
Fotografia: Alain Marcoen
Montagem: Marie-Hélène Dozo
Interpretação: Cécile de France, Thomas Doret, Jérémie Renier, Egon Di Mateo, Olivier Gourmet
Origem: Bélgica/ França/ Itália
Ano: 2011
Duração: 87’

Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€