Melancolia. INQUIETOS. Morte. E Vida. Gus Van Sant, 3ªf, IPJ, 21h30.

Estamos próximos do milagre, e francamente não imaginávamos Gus Van Sant como milagreiro.

Por esta não estávamos à espera. Que Gus van Sant, depois da sua tetralogia fria e cerebral composta por “Gerry”, “Elephant”, “Last Days” e “Paranoid Park”, nalguns pontos a tender para a mais esparsa abstracção, se atirasse a um filme como “Inquietos”, feito de emoção e de pungência, quase um melodrama de género. Pelo meio houve, claro, “Milk”, filme de reconstituição histórica e intervenção social, mas “Inquietos”, retomando de outra maneira o olhar sobre a adolescência e os adolescentes que dominava, em diferentes graus, aqueles quatro filmes, deixa-o num parêntesis.

De “Elephant” ou “Paranoid Park” Van Sant traz, portanto, os adolescentes, e alguma coisa do tratamento plástico e narrativo: a gestão do tempo (sim, é “lento”, não tão lento como “Last Days”, mas é “lento”), embora algumas cruciais elipses venham acelerar o filme; a natureza como presença sensual (o Outono do Oregon, as folhas alaranjadas que cobrem os jardins e cemitérios de Portland); a criação de uma atmosfera musical cuidadosa e discreta (há quase sempre música, embora raramente ela salte para o primeiro plano sonoro - é muito “à Sokurov”). Os adolescentes, por seu lado, são um pouco diferentes dos “skaters” de “Paranoid Park”: articulados, cultos, espertos. Ainda um pouco sonâmbulos, e certamente um pouco rebeldes, mas sonambulismo e rebeldia que se conjugam noutros termos.

São adolescentes “idealizados”? Talvez, porque embora o par central (Henry Hopper, filho de Dennis, e Mia Wasilewska) seja sempre “real” e credível, “Inquietos” trabalha mais em “cinema”, no sentido clássico, do que nesses outros filmes, e consequentemente procura mais ter “personagens de cinema”. Realismo e verosimilhança que não sejam os construídos pelo próprio filme interessam pouco. Até há um fantasma, o de um “kamikaze” japonês morto na II Guerra, e ai de quem não acredite na sua realidade e verosimilhança - Van Sant tem um lado “esponja” (é ver como “absorveu” Bela Tarr, não nos admirávamos que este fantasma viesse de Apichatpong e de um cinema que desse por adquirido que é normal que os vivos, os mortos, os moribundos e os fantasmas convivam na mesma ordem de realidade (fílmica, pelo menos).

E é de morte que se trata, evidentemente. O que acontece quando um miúdo de nome bíblico, obcecado com funerais de estranhos (depois perceberemos porquê), e uma miúda com nome de heróina de Poe, apaixonada pela vida (estudante de Darwin e de ornitologia) mas cancerosa em estado terminal, se conhecem e se tornam, durante os três meses que restam, namorados. Alguns grandes dramalhões (“Love Story” ou aquele “Dying Young” dos anos 90 com Julia Roberts, por exemplo) foram feitos a partir das mesmas premissas. Mas “Inquietos” é tudo menos um dramalhão. Isto tem causado engulhos: aparentemente, segundo algumas críticas americanas, não é possível “rir” num filme sobre a morte sem que isso signifique “falta de respeito” pelos mortos (aqui, voltaríamos a Apichatpong: não é possível “rir” no “Tio Boonmee”, ou já nem Tailândia se respeitam os mortos?). Acontece que nada faz propriamente “rir” em “Inquietos”, antes é um filme cuidadosamente limado de todos os clichés sobre a “morte jovem”, com personagens que, justamente, aceitam esse destino ao mesmo tempo que, muito romanticamente, o vivem como uma espécie de teatro (como na cena em que citam, sem citar, uma cena do “Romeu & Julieta”).

Se a gente se ri, ou sorri, é porque ter o coração quente dá vontade de rir e sorrir, e a justeza emocional de “Inquietos”, sobretudo nas pequenas coisas (os beijos, as zangas, as cartas), é admirável, e Hopper e Wasilewska são perfeitos nessa mistura de convicção e “maladresse” de que as suas personagens são feitas. Para que não fiquem dúvidas: em “Inquietos” não está em causa outra coisa que não seja a “arte de morrer”, como nos melodramas de Frank Borzage nos anos 30 onde estes papéis seriam interpretados por James Stewart e Margaret Sullavan. A “arte de morrer”, evidentemente, é uma coisa de cinema. E como nesses filmes, ri-se e chora-se em “Inquietos” porque os actores são luminosos e comoventes, e porque o realizador sabe o exacto valor de uma lágrima (ou seja, não a desbarata, nem a vende demasiado cara).

Estamos próximos do milagre, e francamente não imaginávamos Gus Van Sant como milagreiro. Melhor filme americano do ano? Pelo menos enquanto não estrear o McQueen. E só atrás do “Filme Socialismo”.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


Muitos o disseram em Cannes, muitos dirão agora: Gus já foi mais sólido, cinematograficamente mais expressivo ("Elephant"...) a construir os espaços de solidão dos seus adolescentes. Muitos reconhecerão ainda: há pelo menos dois Gus na obra de Van Sant. Um cerrado e radical do ponto de vista narrativo ("Gerry", por exemplo), outro aberto a um cinema mais popular ("O Bom Rebelde", "Descobrir Forrester") e não vale esconder que este novo "Inquietos", talvez o mais romântico dos seus filmes, pertence à última família. Não há contudo que criticar Gus van Sant por ter entrado agora em veia delicada, tanto quanto a banda sonora de Danny Elfman permite. Pelo contrário, o que surpreende aqui é que encontremos debaixo da melancolia cinzenta do filme, da sua balada folk, um gesto mais discreto, uma generosidade mais genuína perante aqueles anjos rodeados de morte por todo o lado - e, contudo, não é a morte o último fim. Se Gus voltasse a sublinhar a gravidade de filmes anteriores com esta história em que, à protagonista, restam pouco mais de três meses de vida, se procurasse nela os arrebatamentos da paixão, aí, sim, talvez se espalhasse ao comprido. Preferiu antes outra coisa: um filme em permanente fade out, com um potencial suicida, Enoch, que se vai desembaraçando desse fantasma à medida que comunica com outro (tem um compincha kamikaze de outras eras), até ao ponto de ser capaz de sorrir da sua própria seriedade, como o herói do inesquecível "Harold and Maude" (1971), de Hal Ashby, filme pelo qual Gus van Sant (e quem diria?) confessou ter sido influenciado. Em Portugal, "Harold and Maude" teve um belo título: "Ensina-me a Viver". Estes 'inquietos' de Gus van Sant, mesmo a rondarem a tumba, não nos falam de outra coisa.
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Francisco Fereira, Expresso


Requiem vivace
Em ‘Inquietos’, o realizador Gus Van Sant consegue filmar a história de um enamoramento sob a sombra da morte. Sem nunca tropeçar na tristeza.

Montaigne dizia que se fosse um escrevinhador faria um compêndio sobre as várias formas pelas quais os homens têm morrido, pois qualquer um que ensinasse a humanidade a morrer ensiná-la-ia a viver. É. Mas a educação para a morte nunca chegou a nascer. Antes pelo contrário. Como comenta Julian Barnes em ‘Nada a Temer’, se quando o Mundo começou a recear a morte parou de falar dela, e ainda mais quando a esperança de vida aumentou, a coisa sumiu da agenda quando deixou de acontecer "no meio de nós", em casa.

Para o vencedor do ‘Booker Prize’, "hoje tornamos a morte o mais invisível possível e parte de um processo – do médico ao crematório – no qual profissionais e burocratas nos dizem o que fazer, até ao ponto de sermos deixados entregues a nós próprios, sobreviventes parados com um copo na mão, amadores na aprendizagem de como enlutar".

Logo, chegados à adolescência, agora já não ontológica, mas individual, quando chega a descoberta do amor e da morte, se a primeira é difícil, a segunda é pior. Talvez por isso, e pelo seu habitual interesse por esta etapa, no seu último filme, Gus Van Sant centra-se sobre a história de um muito jovem casal tipo ‘Romeu’ e ‘Julieta’. Ele perdeu os pais e pensa em livrar-se do seu próprio corpo. Ela, traída pela carcaça, tem um tumor e três meses de vida. Nunca é boa hora para a morte.

Mas o que será melhor: morrer sem paixão ou morrer apaixonado? É mais fácil deixar a vida quando nada prende ou preferível gozar até morrer? Os adolescentes de Van Sant podem hesitar, mas preferem a segunda, tornado o filme num requiem allegro. E unindo aquilo que não pode ser separado, riso e choro, amor e morte, que Freud tão bem soube iluminar e que Foucault junta dizendo que ambos calam o corpo, acalmam-no, fecham-no e selam-no.

Morrer de Amor
O par conhece-se, justamente, num funeral. Da mesma maneira que existem penetras em festas e casamentos, ele é clandestino de velórios. Não por sentimentos mórbidos. Mas porque quer descobrir a morte, essa senhora que, nos tempos domésticos de que fala Barnes, era negra de foice e que hoje não tem cor. Tanta ciência depois, saber da morte talvez seja mais raro que na época de Montaigne ou de Flaubert que também afirmava que tudo tem de ser aprendido, desde falar até a morrer.

Mediante esse tabu, os protagonistas de ‘Inquietos’ aprendem a morrer através da natureza, elemento constante no filme e, aparentemente, a única que sabe que a morte é assunto dos vivos. Aliás, a apaixonada considera-se uma naturalista, adora Darwin, esse grande intuidor de Gaia e segue a ave que, descobrindo a cada nascer do sol que tem a vida que não esperava possuir ainda, celebra-a cantando. Cantando muito, como se não existisse amanhã.
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Joana Amaral Dias, Correio da Manhã


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Gus van Sant + adolescência: a 'fórmula' é conhecida, sabemos que o copyright já deu belos frutos. Inútil entrar em detalhes ("A Caminho de Idaho", "Elephant", "Paranoid Park"...) que o leitor do Expresso, também ele 'Van Santiano' de tanto o defendermos nestas páginas, já sabe de cor. A novidade destes "Inquietos"? É que Gus sabe mudar de tom. Depois de um "Milk" biográfico, político, sublime, ele voltou ao drama teen, à love story, sem sublinhar o que já fez, sem perder em complexidade e mistério, ainda que o efeito aqui pareça mais 'delicodoce'. Pois veja-se o ponto de partida: temos a loura Annabel (Mia Wasikowska), adolescente a enfrentar a fase terminal de um cancro e nem por isso menos apaixonada pela vida. Annabel cruza o caminho de um rapaz da sua idade, Enoch (papel incrível de Henry Hopper, filho do grande Dennis). Depois da morte dos pais num acidente de automóvel, Enoch 'já se despediu' deste mundo. São dois seres à parte, este Enoch e esta Annabel. Ele frequenta cemitérios, ela torna-se a sua alma gémea. Estão ambos assombrados à sua maneira pela morte e a 'caminho de casa', como no "Two of Us" dos Beatles. O maior amigo de Enoch é o fantasma de um piloto japonês kamikaze da II Guerra Mundial (Hiroshi/Ryo Kase). O maior fantasma de Annabel é o 'amigo' Charles Darwin que a ajudou a compreender as leis da natureza que ela tanto respeita. A que missão se entregam? Viver cada dia como se fosse o último. Jason Lew escreveu a história e imaginou-a para uma peça de teatro antes de passá-la a Gus. A sua amiga e atriz Bryce Dallas Howard lançou-se pela primeira vez na produção e pediu ajuda a Brian Grazer e ao pai, Ron Howard. E o diretor de fotografia Harris Savides volta à câmara de Gus, nesta trip adolescente de novo filmada em Portland, invadida por velas e flores, orações e silêncios, mais cristalina mas não menos lunar que outras experiências do realizador, com quem falámos no último Festival de Cannes.

O que procurou nestes dois anjos negros?
Ainda não passou tempo suficiente para responder a isso. Queria afastar-me dos épicos. Nunca tinha feito um filme tão longo, nem tão amplo, histórica e politicamente, como "Milk" e quis escapar-me dessa via. Depois surgiu esta história escrita pelo Jason Lew. Havia ali um filme a fazer pois vi no argumento uma vitalidade enorme. "Inquietos" é um filme mais rápido. Foi feito em família.

Mia Wasikowska e Henry Hooper não pertenciam a essa família. Mas temos sempre a sensação de que, mesmo quando trabalha com atores profissionais já lançados, como Mia, eles Interpretam de outra maneira - como se fossem não-atores. Concorda com a impressão?
Reconheço o que diz. É simples de explicar: as minhas capacidades enquanto diretor de atores não vêm do palco. Noto ao longo dos anos que sou incapaz de entrar em qualquer forma de 'psicoterapia' com os atores, de resto cresci a dirigir não-atores, desenvolvi métodos intuitivos com pessoas que nunca tinham interpretado nada. Isso contagia-se. E quando um ator profissional me chega ao set, os seus métodos chocam com os meus. Eu tento levá-los para outro caminho. Dou-lhes indicações muito simples.


Há alguma coisa da sua vida (da sua adolescência) neste filme? O tempo é algo anacrónico.
A história passa-se hoje, mas podia passar-se há 20 anos. Não há telemóveis, computadores... Não, não creio que a minha vida esteja ali. Nos meus filmes não são as histórias que interessam, o que interessa é a maneira de as contar. E fujo das metáforas. O meu cinema é como aquelas fotografias que saem muito escuras; carregadas de negro e depois aprendemos a gostar desse negro, da história que está lá dentro e ficou escondida. Os filmes reproduzem a vida mas não são a vida em si. Muito menos a minha. Algumas partes da história, é verdade, não tinham um tempo preciso. Senti que as personagens eram pessoas que eu já tinha conhecido algures, não sei bem onde nem quando. As roupas também estão fora da moda. Eles vivem o seu mundo à parte. Fico feliz por você ter tido essa impressão.

Sente-se atraído pelo lado negro da história?
Eu tendo para esse negro mas, na verdade, nem vejo as coisas tanto assim. Isto talvez surpreenda muita gente mas, nas pesquisas que fiz, descobri que os adolescentes que passam por experiências como a da Annabel, com um cancro terminal, reagem de forma muito diferente dos adultos. Os adultos têm outra maturidade para lidar com o problema: ou caem em depressão ou decidem lutar a sério. Tenho muitos amigos que descobriram o cancro na casa dos 50 e foi isso que aconteceu. Com os adolescentes é diferente. Sentem-se quase obrigados a estabelecer relações fora do seu círculo familiar para se sentirem vivos, porque é a família que fica em choque, sem saber o que fazer. O Jason escreveu isso muito bem no argumento: é como se os adolescentes tivessem de pedir autorização à sociedade para morrerem. Procuram alguma alegria antes da morte através disso.

O que tem a dizer de Mia Wasikowska?
Bom, ela é a nova girl next door de Hollywood, tinha acabado de filmar com Tim Burton quando nos encontrámos e o encontro foi fantástico. Fez um excelente trabalho. Moldou-se por ela à personagem e ao meu sistema. Tornou vivos os diálogos do guião. Eu fiz-lhe um corte de cabelo à Mia Farrow.

Qual é a sua memória mais antiga do cinema?
Era criança e vi com uma tia o western "How the West Was Won." Saímos a meio porque, às tantas, há um cão envolvido numa batalha e a minha tia não conseguiu suportar a crueldade dessa cena.

Conheceu Dennis Hopper, o pai de Henry?
É impossível não pensar em Dennis quando vemos Henry, não é? Sim, conheci-o. Ofereci-lhe um papel em "A Caminho de Idaho", um papel para a sua idade, mas ele recusou e disse-me: "Eu ainda posso fazer o papel de River Phoenix, sabias? E faço melhor do que ele." Só podia estar a gozar comigo... Se calhar, nem estava.
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Francisco Ferreira, Expresso, 12/11/11




Título Original: Restless
Realização: Gus Van Sant
Argumento: Jason Lew
Música: Danny Elfman
Fotografia: Harris Savides
Montagem: Elliot Graham
Interpretação: Henry Hopper, Mia Wasikowska, Ryo Kase, Schuyler Fisk, Lusia Strus,
Jane Adams, Paul Parson, Thomas Lauderdale, Christopher D. Harder

Origem: EUA
Ano: 2011
Duração: 91’

Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€

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