3ªf, 24, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

A VINGANÇA DE UMA MULHER

A mise en scène de um cerimonial de ódio e amor.


Como todos os outros filmes de Rita Azevedo Gomes (dois chegaram às salas comerciais, "Frágil Como o Mundo" e "Altar", mas há vários que não chegaram ao circuito de estreia, como o primeiro de todos, "O Som da Terra a Tremer"), também "A Vingança de uma Mulher" é um filme que parece vir de uma ilha, de uma ilha perdida no tempo, onde se tivessem conservado os restos de uma civilização, ainda não substituída - ou sequer, tocada - por outra.

Singularidade, ou insularidade, que não está longe da de alguém como Werner Schroeter (de quem Rita foi assistente, nos anos 80), que construiu parte da sua obra furando o tempo e a “actualidade”, como se o cinema tivesse sido inventado no princípio do século XIX e não no seu fim, e se tivesse passado da literatura, da pintura e da música ao cinema, saltando por cima da fotografia e de uma relação “química” com o real e com o presente.

A Vingança de uma Mulher tem esse sabor a século XIX, um gosto a sangue, por todas as razões e mais algumas, inclusive absolutamente literais. Ao contrário de "O Som da Terra a Tremer" e de "Frágil", que ensaiavam o patchwork multi-referencial, "A Vingança de uma Mulher" redescobre uma certa linearidade. Em vez de se construir com bocadinhos vindos daqui e dali, adapta uma só história, de cabo a rabo: um conto de Barbey d''Aurevilly sobre mulheres “diabólicas”. A história da duquesa de Sierra-Leone e da sua vingança sobre o marido que, com requintes de crueldade, lhe matou o amante: a duquesa tornou-se prostituta, para que pela Europa se fosse sabendo que o duque casou com uma puta. Ao sangue que o marido fez verter, a duquesa respondeu enlameando-se, no mesmo gesto encharcando em lama a honra do marido. Admirável história de auto-combustão - na implacabilidade da vingança sobre um vivo, na devoção.

E admirável filme que se faz sobre esta história, talvez da única maneira que era possível filmá-la: preservando o racconto da duquesa como núcleo do filme, encenação que devolve à palavra (da duquesa) o seu papel essencial na disseminação da desonra (do duque) pelo mundo - esta mulher é como Nosferatu a espalhar a doença. Admirável, também, Rita Durão, que aguenta com o corpo e a voz dois terços do filme, e o monólogo demencial que, por sua vez, lhe dá corpo. A câmara ronda, em travellings, panorâmicas e reenquadramentos (é um bailado e um duelo), o cenário, cheio de vermelho, ameaça engolir tudo, os objectos, de rompante, revelam o seu significado cruel, e ela, a duquesa, cada vez mais fria e ao mesmo tempo, mais incandescente, domina a mise-en-scène do seu cerimonial de vingança, acentuando a que ponto ele mistura tudo, o ódio e o amor, o desejo de destruição e o desejo de auto-destruição. Sem que alguma vez vejamos “uma louca”; pelo contrário, quanto mais insana se revela a história, mais racional (e portanto, assustadora) nos parece a personagem (também pensamos que Rita Durão foi, no Vai e Vem, a última parceira dos rituais de César Monteiro, e que alguma coisa ela herdou).

Depois de tanto vermelho, somos devolvidos à realidade. Post-mortem: nos planos finais, a cor parece feita de preto e branco, de cinzas. Belíssimo, tristíssimo filme.

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


ENTREVISTA A REALIZADORA

"Muitas vezes se passa no mesmo caminho", dizia aquele amargurado e proustiano Alberto (papel de José Mário Branco), na primeira frase de "O Som da Terra a Tremer". Amante compulsiva de cinema, sensível ao romantismo, à pintura, à música, Rita Azevedo Gomes estreava-se aqui na realização, com um dos filmes portu¬gueses mais injustamente esquecidos das últimas décadas (tão esquecido que nem chegou a estrear comercialmente no seu tempo), terminado em 1990. O caminho da cineasta no cinema português revelar-se-ia depois desfasado, atípico, irónico, por vezes tortuoso. "Frágil como o Mundo", segunda longa-metragem, só surgiria mais de dez anos depois. "Altar", a terceira, foi seguida de duas curtas-metragens de ficção ("A Conquista de Faro" e "A Coleção Invisível") e de um documentário de cumplicidades, "A 15ª Pedra", com Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa à conversa sobre a vida e o cinema. Concluiu Rita Azevedo Gomes, no ano passado, uma nova e siderante longa-metragem, o seu trabalho mais ambicioso, adaptação livre de um dos seis contos que formam "Les Diaboliques" (publicado em 1874), de Barbey d'Aurevilly: "A Vingança de uma Mulher" ("La Vengeance d'une femme"). À frente dos telões e cenários deste exigente filme de época e de estúdio, com Rita Durão no papel de protagonista, conta-se o encontro de Roberto (Fernando Rodrigues), cínico aristocrata de Oitocentos e dandi impassível, com uma 'mulher de má vida', dita 'a espanhola'. Saberemos depois que 'a espanhola' foi duquesa de Sierra-Leone, mulher caída em desgraça por vontade própria, após o horrível crime de amor que a destruiu e arrancou (literalmente) o coração ao homem que amava. Roberto escuta a diabólica história e o destino de quem lhe sobreviveu. É uma história de vingança, de particular infâmia.

Ainda no genérico inicial, conta-nos o narrador que, "neste tempo de inefável e delicioso progresso, o crime adquiriu uma estranha fisionomia"... São os requintes de Barbey d’Aurevilly, homem tão católico como profano, eternamente rodeado de luz e de trevas. Ele está a falar-nos de crimes aos quais foi retirada toda a poesia. Foi um crítico impiedoso do seu tempo. A frase vem do conto. Acho que se encaixa perfeitamente nos dias que correm.

Como é que encontrou o livro? Quando decidiu adaptá-lo? Lembro-me de que em "O Som da Terra a Tremer" havia uma personagem que acreditava nos acasos, nos "encontros automáticos" de uma pessoa com um livro.
É bem verdade que é nos acasos que por vezes se encontram as respostas certas. Isso aconteceu-me muitas vezes. Não foi contudo o caso de "A Vingança de Uma Mulher". Eu andava há muito tempo à procura desta história, numa altura particularmente difícil da minha vida em que vivia rodeada de desilusões. Descobri depois que não ia ceder. Que queria ficar.

No cinema?
No cinema e na vida. Procurava uma história que dissesse isso mesmo: "Eu fico." Foi em conversas com João Bénard da Costa [o filme é-lhe dedicado], com quem trabalhei muitos anos na Cinemateca, que o livro me veio parar às mãos.
O título, "Les Diaboliques”, puxou-me logo. As mulheres dos contos de Aurevilly atraíram-me, tal como o diabo, que sempre foi para mim uma figura atraente. Isto aconteceu há cerca de 15 anos. Desde então, o livro não me deu descanso.


O seu percurso no cinema português seria intermitente. Como o observa hoje, ao retrovisor?
É difícil olhar para o retrovisor porque eu continuo ao volante, e não o largo, entre os filmes que fiz e os que gostaria de ter feito. Sempre sem resignação. Fiquei um bocado fora daquele comboio cha¬mado cinema português. Saltei para lá várias vezes, encontrei nele quem me acarinhasse, mas nun¬ca senti verdadeiramente que quisessem que eu ficasse. Não foi fácil. Isto são ressentimentos passa¬dos e enterrados, que me prejudicaram, mas que também me encorajaram a continuar a filmar como eu queria. Entretanto, outros cineastas da minha geração desistiram ou 'ajeitaram-se' às circunstâncias, o que me dá pena. Fiz "O Som da Terra a 'Tremer" entre os anos 80 e o início dos 90, numa altura em que havia uma frescura incrível no cinema português. Uma frescura que se perdeu. Há dias revi "Uma Rapariga no Verão", do Vítor Gonçalves, e disse isso mesmo: algo se perdeu no caminho. Eu não vinha do meio do cinema, nem da Escola de Cinema, tinha passado por Belas Artes. As minhas aulas de cinema foram os filmes que vi e aqueles em que trabalhei. E surjo numa geração de cinema português que quer dar uma resposta muito pessoal aos grandes nomes que a antecederam, o António Reis, o Fernando Lopes, o Paulo Rocha. Já o Oliveira é influência perpétua que passa por todos nós. E há o César Monteiro, claro, que traçou sempre o seu caminho, à margem de tudo.

O que nos pode acrescentar sobre a heroína de "A Vingança de uma Mulher"?
Esta é a história de uma mulher consumida pelo seu próprio fogo.

Tem alguma predileção particular pelo século XIX - e isto para voltar ao romantismo de Barbey d'Aurevllly, que é negríssimo?
Se calhar, tenho. Houve sempre qualquer coisa que me puxou para lá, para aquele auge das manifestações mais expressivas do homem, da alma, da solidão e da busca de si próprio. Manifestações que, de resto, não são nada vulgares. Eu passei uma boa parte da vida a julgar que estava a viver no século errado. Hoje já não tenho tanto a certeza disso. Ao mesmo tempo, gosto imenso de um presente que tenta tocar no futuro: a pop art foi um choque decisivo quando a descobri nos anos 70. Ensinou-me a acreditar que à arte só resta uma solução: romper com qualquer coisa. Às vezes, tenho vontade de fechar este quarto, deixar estas coisas do século XIX. Talvez agora. Talvez este filme feche essa porta.

Fiquemos ainda por Barbey d'Aurevllly: qual foi o seu primeiro embate com o texto?
Um dos grandes: achei que era impossível filmá-lo. Aliás, uma vez pespeguei com o livro nas mãos do César Monteiro - olha quem... -, ao que ele respondeu: "A história é fantástica, mas em cinema não é exequível." Eu queria acima de tudo manter o máximo de texto, que acho muito bonito, e deixar o texto dirigir o filme. Escrevi uma primeira versão do argumento, muito criticada por quem a viu, mas que acabei por pouco alterar e desde logo me disse também que este filme precisava de um estúdio - e assim foi. "A Vingança de Uma Mulher" foi rodado na Tóbis. Num estúdio histórico em que ainda se pode respirar um pouco de cinema (espero que não o estraguem).

Pode explicar essa importância do estúdio no filme? Foi uma defesa, uma necessidade? E porque decidiu criar aquele narrador?
O estúdio foi uma necessidade imperativa. Agradava-me a ideia do postiço fabricado, da pintura daqueles telões e cenários, das lareiras de papel, de uma máscara da representação em fuga ao naturalismo, que, afinal, está ligada a Barbey d'Aurevilly - não se assume ele como um ator dos seus contos, tal como, no fundo, todos nós nos assumimos como atores das nossas vidas? Ele trabalha com camadas narrativas sucessivas: ora há um narrador comum, ora o narrador é o protagonista do conto. E há ainda uma narração anterior, subterrânea, autobiográfica, em que sentimos os seus desejos e os seus demónios ¬- está presente em toda a sua literatura. Não queria que o filme esquecesse estas variações e se quedasse num só aspeto da narrativa. O narrador/personagem que vemos no início ajudou-me a assumir este jogo, a abrir o espaço, a cena - é ele que nos leva para dentro do filme. Nos festivais em que o filme passou já me disseram que "A Vingança de Uma Mulher" tem atrás o fantasma do teatro. Não vejo nada de teatro ali. Não faço ideia o que daria o texto se o encenasse. Só procurei o cinema.

Procurou também uma proposta de realização que já não é nova no seu trabalho, explorando planos multo longos, reduzindo a découpage aos momentos fulcrais, e voltou a chamar para a fotografia Acácio de Almeida. Acha que há aqui um credo na mise en scène, passe a expressão?
Ou uma fezada: ainda sou daquelas que acreditam que o corte de um plano de cinema implica um motivo superior. Não se corta à toa. Gosto de planos longos, e explico porquê: eles permitem à pessoa que suposta¬mente se posiciona atrás da câmara entrar no filme como personagem. O trabalho com planos-sequência teve também que ver com a urgência de uma rodagem curta de quatro semanas em estúdio: permitiu-me poupar tempo. E é claro que a escolha do Acácio de Almeida favorecia este sistema: já fizemos alguns filmes juntos. Sabemos o que a casa gasta.

Essa maneira de filmar exigiu ainda dos atores um esforço suplementar?
Exigiu um trabalho muito exaustivo, mas, ao contrário do que se pode pensar, filmámos poucas takes. Havia planos tão 'puxados' na duração, com um tal volume de texto, em especial para a Rita Durão, que as repetições só levariam à estafa. E o cansaço num ator é uma coisa que 'mastiga'. Isto obrigou-nos a agir depressa. A apurar ao máximo o trabalho de preparação e os detalhes técnicos. A Rita Durão teve uma coragem sem limites. Eu acho que também tive alguma.

O texto de Barbey d' Aurevilly funciona em torno de um orgulho ferido - e de um escândalo necessário, o da duquesa de Sierra-Leone. Atrás daquelas linhas escorre sexo e sangue. Não houve também coisas 'de escândalo' que a assustaram, como filmar a cena em que a duquesa tenta comer o coração do amante depois de roubá-lo aos cães?
Houve. Essa é uma cena de grande risco, e até digo "mais: ou saía uma pepineira ou um momento de grande intensidade - quem quiser que a julgue. A cena podia ter sido contada. Mas eu tinha de a mostrar, mostrar o coração. Estava 'sozinha': ninguém na equipa acreditava que funcionasse. Acontece que eu também não acredito que se possa fazer um filme sem enfrentar o medo de filmar.


Porque foi Barbey d'Aurevilly tão poucas vezes adaptado ao cinema? Catherine Breillat pegou-lhe recentemente em "Une vieille maîtresse". Há a adaptação, sublime, do Astruc em "Le Rideau "Cramoisi", outro conto de "Les Diaboliques". Pouco mais...
Não vi nenhuma delas. Disseram-me no Festival de Roterdão que Robert Wiene também adaptou "A Vingança de Uma Mulher", nos anos 20. Aurevilly não é fácil de adaptar, porque não é fácil de entender. Ele é metade uma coisa, metade outra: daria um bom caso de estudo para a doutrina filosófica do maniqueísmo. Estão nele os nossos desejos todos e uma curiosidade insaciável.

Às vezes, penso: como será levar um tiro?, ou matar . alguém?, o que se sente? Espero nunca experimentar. Mas isso desperta curiosidade, ou não? Aurevilly tem algo disto.

O que representa aquela vingança?
Para mim, Rita? Ou o que representa no filme?

Para si e no filme, se me permite.
É um abismo sem limite. Levar as coisas ao extremo e "ser mulher de uma só moeda", como a duquesa. Subir muito ou descer muito. É um 'ou vai ou racha' - e às vezes racha – até ao fim.

Francisco Ferreira, Expresso




Realização e Argumento: Rita Azevedo Gomes
Fotografia: Acácio de Almeida
Interpretação: Rita Durão, Fernando Rodrigues, João Pedro Bénard, Hugo Tourita, Maria Carré,
Francisco Nascimento. Com a participação especial de Isabel Ruth
Origem: Portugal
Ano: 2012
Duração: 100’

Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

Reservas
cineclubefaro@gmail.com

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