Hoje, o primeiro dos filmes d' "O Cinema do Bernardo" que trazemos durante este mês de Setembro, 21:30, na sede do CCF!!



DIA 6
ALICE, Marco Martins, Portugal, 2005, 102’

SINOPSE
Passaram 193 dias desde que Alice foi vista pela última vez.
Todos os dias Mário, o seu pai, sai de casa e repete o mesmo percurso que fez no dia em que Alice desapareceu.
A obsessão de a encontrar leva-o a instalar uma série de câmaras de vídeo que registam o movimento das ruas. No meio de todos aqueles rostos, daquela multidão anónima, Mário procura uma pista, uma ajuda, um sinal...
A dor brutal causada pela ausência de Alice transformou Mário numa pessoa diferente mas essa procura obstinada e trágica, é talvez a única forma que ele tem para continuar a acreditar que um dia Alice vai aparecer.

FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Marco Martins
Música: Bernardo Sassetti
Montagem: João Bráz e Roberto Perpignani
Imagem: Carlos Lopes (Cácá)
 Interpretação: Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Miguel Guilherme, Ana Bustorff, Laura Soveral, Gonçalo Waddington
Origem: Portugal
Ano: 2005
Duração:102'

NOTA DE INTENÇÕES
Interessava-me na história de "Alice" explorar sobretudo a obsessão. Alguém que perde uma filha e que, sentido-se impotente para agir, cria um sistema paralelo de funcionamento, exterior à sociedade em que vive.
Quando, à noite de regresso a casa, vemos os vídeos de Mário e toda aquela multidão anónima, em movimento continuo, já não sabemos se aquelas imagens são reais se apenas existem na cabeça de Mário.
Um rosto igual a outro rosto, uma rua igual a outra rua, um dia igual a outro dia.
A cidade como local de abstracção onde, alguém como Mário, pode estar profundamente isolado. Na procura de Alice, Mário conhece outras personagens, também elas, de alguma forma, sozinhas também elas isoladas na cidade onde vivem.
"Alice" é sobretudo um filme sobre a ausência. Uma história de amor de um pai por uma filha.
Marco Martins


 MARCO MARTINS EM ENTREVISTA
O Festival de Cannes rendeu-se à primeira longa-metragem de Marco Martins. Quem é este nome novo no cinema português?
Nem sempre se sabe quem é o homem por trás da câmara. Todos os dias, dezenas de filmes publicitários nos entram pela casa sem assinatura. Quem realizou o anúncio onde uma rapariga indiana e um rapaz europeu se lançam do cimo de um edifício para um enorme coração? Ou o outro em que um rapaz corre numa floresta, fugindo de raios e trovões? A resposta é Marco Martins, lisboeta, 32-quase-33 anos. O mesmo que levou a sua primeira longa-metragem, Alice, ao Festival de Cinema de Cannes de 2005 e veio de lá com o prémio Regards Jeunes para Melhor Filme da Quinzena dos Realizadores.

O júri desse prémio especial (composto por jovens cinéfilos de toda a Europa) e a crítica não lhe pouparam elogios, rendidos à história de um pai (Nuno Lopes), cuja filha desapareceu e que instala câmaras de vídeo pela cidade para a tentar encontrar. Mas foi sobretudo a forma como Marco filmou a ausência e a obsessão que mais agradou em Cannes.
Antes mesmo da história surgir, Marco sabia que queria filmar esses sentimentos. "Como se lida com a ausência? Como se preenche o vazio? Como se faz um filme a falar dessas coisas?" - estas eram as perguntas que ele tinha na cabeça. Lisboa seria o cenário, mas uma Lisboa que raramente aparece no cinema português, "anónima, de multidão, com um lado abstracto".
Imaginava o protagonista a viver "num sistema alternativo, abandonado pela sociedade". A ideia para o argumento de Alice surgiu-lhe ao ler a história de Rui Pedro, desaparecido há sete anos, e das tentativas infrutíferas da mãe para o encontrar. A busca desta mulher inspirou-o pelos sentimentos de perda, desespero e esperança.

O laboratório

"Pertenço àquela geração que tem uma câmara de vídeo desde os 10 anos e começou a fazer filmes em casa com os amigos." Quando soube que existia o curso de cinema no Conservatório não hesitou. Afinal, a ideia de vir a ser realizador não era assim tão disparatada. E, terminado o curso, a curta-metragem Mergulho no Ano Novo (1995) valeu-lhe, logo na estreia, o prémio de melhor filme no Festival de Vila do Conde.
Viajou, depois, até aos Estados Unidos e durante quatro meses fez vários workshops de escrita de guiões e direcção de actores. Quando regressou foi pela porta da produção que entrou no mundo do cinema. "Era a maneira de estar dentro do processo." O Convento, de Manoel de Oliveira, e Lisbon Story, de Wim Wenders, são as obras mais sonantes em que participou. Não demorou muito a saltar para a assistência de realização e foi, por exemplo, o braço-direito de João Canijo em Sapatos Pretos.
Com mais duas curtas no currículo, Marco percebeu que ser assistente não conduzia necessariamente a realizador. E foi por essa altura que surgiu a oportunidade de realizar filmes publicitários. "Podia finalmente começar a filmar." Um ano depois, estava a criar a sua própria produtora, a Ministério dos Filmes - hoje, uma das maiores em Portugal. Durante cinco anos, foi essa a sua vida. "Filmava quase todas as semanas. Permitiu-me usar meios diferentes e experimentar processos novos", diz. "Foi um laboratório."

“Fazer um filme é um luxo”

Em Cannes, quando Marco contou que em Alice não foram utilizados figurantes e que Nuno Lopes aparece no meio da multidão que todos os dias enche a Rua Augusta, em Lisboa, ou o centro do Cacém à hora de ponta, ninguém queria acreditar. É que os subsídios por cá não dão para muito... "Os orçamentos são absolutamente ridículos. Uma das últimas campanhas da Optimus tinha o mesmo orçamento da minha longa-metragem... Fazer um filme é um luxo."
O que valeu a Marco foi o êxito na publicidade, que lhe permitiu estar dois anos sem trabalhar, concentrado em Alice, e prescindir de um bom ordenado como realizador do filme. Em Portugal, ao contrário da publicidade, o cinema não é uma mina de ouro. "Com os espectadores portugueses os filmes nunca são rentáveis. Uma pequena cinematografia como a nossa só pode sobreviver se for exportada para outros mercados. E só o consegue se for diferente. O meu objectivo é fazer um filme de tal maneira único que possa ser visto noutros países."
Segundo a crítica em Cannes, Marco Martins conseguiu-o...
Gabriela Lourenço, Visão, 2.06.2005

Um arrebatado e atmosférico estudo sobre a perda, do estreante realizador português Marco Martins, Alice foi um dos filmes mais fortes da Quinzena de Cannes, este ano. Escuro e sombrio no tema e na imagem, um olhar firme sobre a busca de um pai pela filha de três anos desaparecida. (...)
O filme começa com imagens granuladas, em verde-e-branco de Mário (um Nuno Lopes tocante) vagueando pelo trânsito e distribuindo flyers. Parece um vagabundo ou o foragido de um asilo e só gradualmente nos vamos apercebendo que ele é a encarnação viva do pior pesadelo de qualquer pai: um homem cuja filha pequena se encontra desaparecida há 193 dias. Como tal, ele apresenta-se-nos tanto como uma figura de compaixão como de alienação social, um homem assombrado, marcado por uma fatalidade extrema. (...)
Por se concentrar no pós-tragédia – e o seu efeito num casal feliz – Alice faz lembrar O Quarto do Filho de Nanni Moretti. (...)
O nome da filha não é inteiramente desprovido de valor simbólico – evoca a queda ficcional de Alice na toca do coelho, e o filme acaba com uma citação de Lewis Carroll –, contudo, a ideia de escorregar acidentalmente para um universo paralelo parece aplicar-se mais ao próprio Mário do que à sua filha desaparecida.
Marco Martins acompanha os esforços de Mário ao tentar não perder o controle da realidade, cada vez mais embrenhado no seu mundo de “playback” de cenas de ruas em fast-forward que observa obsessivamente, em casa ou com a ajuda de amigos.
Outro desvio da realidade é sugerido por Mário ser um actor de teatro – e é com um sentimento de verdadeira admiração, mas crescente trepidação, que vemos este fantasma de homem devastado regressar à personagem da comédia que interpreta noite após noite. A cidade do filme não é a Lisboa dos postais, mas um lugar de alienação onde almas perdidas circulam ao acaso como átomos – nas sensações, e no estilo visual, tem algo do “mundo em desequilíbrio” da visão eco-apocalíptica de Godfrey Reggio - Koyaanisqatsi.
A música de Bernardo Sassetti é escassa mas eficaz, com uma melodia de piano solo transformando-se lentamente em acordes mais escuros à medida que o filme progride.
O filme tem uma estrutura dramática sólida, traçando um arco do desespero até à esperança e de volta ao desespero. (...) Encontramos cenas em silêncio de grande força, que sugerem a profundidade da resistência humana. (...)

Lee Marshall, Screen International, 07.06.2005


 (…) Marco Martins assina um primeira obra singular. Tenebroso e plasticamente muito controlado, ALICE analisa a forma como o pai, um actor que interpreta uma comédia no teatro e cuja mulher se deixa levar pelo desespero, convoca o desaparecimento da menina multiplicando as representações susceptíveis de a manter viva. Nas ruas chuvosas de Lisboa, ele passa horas errante, distribuindo folhetos ou colando-os nas montras; em casa, ele visiona as cassetes registadas nas câmaras de vídeo que colocou em locais estratégicos, amplia  alguns planos em que detecta uma potencial Alice, alinhando num muro de imagens. Desta vez o “blow up” dá lugar a uma reflexão desiludida sobre o poder ilusório da imagem e a solidão dos indivíduos na selva urbana.

Jean-Luc Douin, Le Monde, 21.05.2005


Diz Marco Martins que ALICE nasce da necessidade de explorar uma obsessão, um pai que perde a filha e não pode fazer nada senão construir pouco a pouco, a cada dia que passa, um mundo paralelo de possibilidades. (...)
Mário e Luísa têm uma filha, Alice, que desaparece sem explicação do infantário. Desde então o pai repete todos os passos desse dia, casa, escola, lavandaria, estação... “se ela ainda estivesse comigo... Parece-me que se quebrar as rotinas, nunca mais a volto a ver.”, diz. Os seus passos reflectem-se nas múltiplas câmaras de vídeo que colocou em vários pontos da cidade, uma geografia multiplicada ao infinito que segue o ritmo dos seus pensamentos, e passa o dia a colar fotocópias com a cara da menina sob o olhar de compaixão das pessoas, uma solidão cada vez mais forte que encontra outras solidões: a das pessoas em cujas casas, lojas ou escritórios colocou as suas 11 câmaras. (...)
Uma sensibilidade coberta de talento. Nada de comprazimento e retórica num filme que maneja material delicado como a dor por uma perda que nunca será definitiva, que permanece aberta e que nem o luto permite. O risco era alto e no entanto o filme é até agora um dos mais belos vistos na Quinzena. (...)
Na sua substância, ALICE é um filme sobre a ausência. A ausência da menina na vida do seu pai, a ausência de relações, encontros, consolações recíprocas numa dor que separa. A intuição leva-nos a entrelaçar a ausência com a cidade, ao seu batimento, às suas casas, tectos, à respiração nocturna, ao barulho invasor do trânsito que permanece indiferente. (...)
Negro mas não angustiante, sabe dizer a essência da dor com doçura.
O filme entra na realidade, comove e torna-se cinema.
Roberto Silvestri, Il Manifesto, 20 Maio

 (…) Para a sua primeira longa metragem, Marco Martins utiliza uma uma narração singular onde joga com o espaço e o tempo. Se, numa primeira parte, esta desconstrução da história pode inquietar, ela ganha todo o valor assim que o dispositivo se instala. Filme sobre uma busca obsessiva, amplificada por uma música envolvente e repetitiva, ALICE revela um cineasta e um actor, Nuno Lopes, excepcional no papel dum pai assombrado pela recordação.
M.M., L'Humanite, 18.05.2005


O bravo cinema português continua a provar ser uma fonte inesgotável, apesar do seu contexto económico inquietante. ALICE, primeira obra de Marco Martins, vale antes de tudo por esta excelente novidade: um filme português fora das normas, de uma singularidade absoluta em relação à paisagem conhecida desse lado do mundo, é ainda possível.
Porque ALICE não se parece em nada com o que funda a identidade do cinema português. É um filme sem documentos nem genealogia e que nos conta uma história terrível, da perda de uma criança. (...)
O filme não é mais que a busca desesperada de Mário, pai tenebroso e magnifico, habitado pela dor, que elabora um método tão elaborado quanto delirante para acreditar que ainda a poderá encontrar: analisa imagens vídeo provenientes de câmaras de vigilância espalhadas pela cidade. (...)
Plasticamente ALICE é uma estupefacção, uma espécie de meteoro de brumas, riscos e convulsões, arrancado a um mundo urbano húmido e frio (...)
Neste dispositvo, a figura de Mário impõe a sua melancolia surda com uma graça de partir o coração:  neste papel de pai vital e desvitalizado, Nuno Lopes oferece uma performance inesquecível. ALICE, nome de todas as metáforas do desaparecimento, liberta todo o poder de uma verdadeira aparição.
ALICE, ausência pungente
Olivier Seguret, Liberation, 18.05.2005


Um poderoso estudo sobre a dor intensa representada na penetrante e segura primeira obra de Marco Martins, ALICE está mergulhada num desespero tão profundo quanto eloquente. Envolvido num mundo de penumbras, madrugadas e dias cobertos de nuvens, o filme acompanha um pai na sua busca diária pela filha desaparecida, mostrando a sua silenciosa e obsessiva rotina que lhe permite manter a sanidade, bem como a memória da filha. (...)
Demasiado belo para ser mantido fechado num festival. (...)
Tal como n’O Quarto do Filho” de Nanni Moretti, Marco Martins interessa-se pela forma como as pessoas reagem a uma tragédia demasiado profunda para ser superada, embora numa escala bastante mais intima que se torna, por vezes, claustrofóbica.  Existem outras personagens em ALICE, pessoas que tentam ajudar, mas Mário torna-se uma espécie de vagabundo semi-cego. Nuno Lopes consegue combinar uma sensação de grande concentração com a exaustão absoluta. O seu Mário não é mais que um coração devastado a cada passo da sua obsessão. Sempre na mira da câmara, Lopes personifica o desespero controlado e estruturado, dolorosamente contrastado com a histeria negra de uma Luísa interpretada por Beatriz Batarda.
Em conjunto com o director de fotografia, Carlos Lopes, Martins mergulha o seu filme em imagens desprovidas de sol, construindo uma sensação de dias e noites que se seguem, numa sucessão repetitiva. (...)
Com uma beleza subtil, a música de Bernardo Sasseti prolonga-se em conjugação com o ambiente geral de muda desolação do filme.

Jay Weissberg, Variety, 16.05.2005





 A revista Variety elogiava, na edição diária de ontem, o filme Alice, primeira longa-metragem do português Marco Martins, vista na secção paralela Quinzena dos Realizadores (...).
Martins filma um casal, Mário e Luísa (Nuno Lopes, Beatriz Batarda) a quem a filha pequena desapareceu. A dor quebrou a mãe, mas o pai está tão empenhado em encontrar a filha que instalou câmaras de vídeo por toda a parte e até tem acesso às da segurança interna do aeroporto.
Alice decorre numa Lisboa sob constante invernia, que contribui para lhe dar a homogeneidade visual (o fume parece embrulhado em azul escuro), e Marco Martins transforma a persistência tenaz do pai no miolo dramático do filme, limpo de palha sentimental, de situações feitas ou de soluções prontas a agradar. Nuno Lopes interpreta Mário com uma concentração lacónica e metódica, e Beatriz Batarda é a imagem da maternidade destruída.
Uma estreia inspirada.
Eurico de Barros, Diário de Notícias, 18 Maio


De repente, Alice faz-nos perguntar de que lugar é que veio. É uma primeira obra (passou segunda-feira, na Quinzena dos Realizadores) e é a descoberta de um realizador, Marco Martins, mas não é por isso. É porque esta Alice escapa a um reconhecimento genealógico com o cinema português, mesmo entendendo que não há um cinema português mas um colectivo de singularidades. Dito de outro modo: na sua ausência de uma singularidade identitária, Alice é um objecto singular. Talvez seja porque Marco Martins, 32 anos, se formou entre a Escola Superior de Cinema e workshops de direcção de actores no Maine e de escrita criativa em Nova Iorque, talvez seja porque o seu trabalho na publicidade lhe conferiu uma outra prática da imagem, talvez seja, simplesmente, porque não se reconhece no cinema português.

Começa logo pela forma como filma Lisboa, cidade abstracta, labiríntica, com luz de chumbo. Não uma Lisboa de bairro, antiga, ao sol, não "a cidade branca", porque Lisboa, diz ele, "já não é isso". Uma cidade muitas vezes filmada do alto porque é lá que estão as câmaras de vigilância, que um pai instalou em vários pontos porque tem esperança de redescobrir a filha desaparecida, Alice, nas imagens. Quando o filme abre, já ela desapareceu, e já o pai repete, todos os dias, o itinerário do dia do desaparecimento, e os mesmos gestos: distribuição de papéis com a imagem dela pelas ruas, controle das câmaras, visionamento das cassetes. Seria de presumir que o filme se deixasse encerrar no drama familiar ou no thriller, mas Alice recusa fixar-se num ou no outro. O drama familiar corre em paralelo, este é o filme sobre a ausência. Como é que se filma a ausência? "É um estado de espírito muito difícil de exprimir, vive muito dos movimentos das personagens e não tanto da expressão emocional", resume o realizador. No caso de Alice, filma-se como um périplo obsessivo, mais angustiante que inquietante, até porque tem o rosto obstinado, crístico mas contido, quase inexpressivo, de Nuno Lopes, no seu primeiro verdadeiro papel de cinema.
"É um filme quase só de uma tecla, parece que se carregou numa tecla e nunca se sai dali." Candidato à Caméra d'Or (prémio primeira obra). Alice é uma realização calibrada - e, desconfia-se, vai-se ouvir falar muito dele nos próximos tempos, não só por ser um objecto incomum no cinema português, mas também pela admirável interpretação de Nuno Lopes.
Kathleen Gomes, Público 19 Maio



 
TEXTO DE BERNARDO SASSETTI
Nunca Lisboa foi vista de forma tão fria como em “Alice” de Marco Martins; a cidade branca, como sempre a conhecemos, assim como a imensidão dos seus habitantes, ganham aqui uma nova dimensão, trágica e sombria – figuras humanas caminham, obstinadas, em aparentes gestos de rotina, indiferentes a tudo o que os rodeia. Assim é Lisboa neste filme, cenário por onde Mário se movimenta à procura de Alice, a sua filha misteriosamente desaparecida. Ninguém acredita que é possível mas ele não desiste. Também a solidão é assim retratada: numa grande cidade, aqueles que nos estão mais próximos são, por vezes, os últimos a acreditar.
Trabalhar com o Marco (nesta sua primeira longa metragem) foi, para mim, uma grande descoberta; ele teve uma presença decisiva na forma como procurei as primeiras notas do tema principal, na sua exploração ao longo da narrativa e, acima de tudo, no desenvolvimento da inquietude interior da personagem principal. Neste filme, alguns excertos musicais fundem-se nos sons agressivos da cidade, editados e misturados de forma exemplar por Branko Neskov e Elsa Ferreira. Nesse sentido, pensámos que a música deveria ser indissociável do trabalho da banda sonora geral e, por essa razão, esta edição em CD é apresentada como espelho dessa viagem sonora pelo filme “Alice”.
A composição da música passou por um processo doloroso (não menor do que aquele por que passou toda a equipa do filme, diga-se), na representação do vazio e da angústia máxima causados por aquela perda; consegui (apenas) imaginar o inimaginável para um pai. Mas o que une todos estes elementos é o sentimento de esperança, essencial para a compreensão da rotina que acompanha os passos, quase em suspenso, de Mário pela cidade.
O tema principal, minimalista e obsessivo, só aparece numa fase avançada da narrativa; foi concebido num compasso de 7/4 (sete tempos num compasso/sete dias da semana), sem que eu tivesse consciência disso. A pontuação do tempo é produzida nos graves lentos de um contrabaixo e as notas longas de um clarinete sugerem uma voz perdida, a de Alice. Todos os movimentos musicais que se lhe seguiram, assim como todos os outros sons pontuais, baseiam-se, sem excepção, em variações harmónicas, passionais ou circunstancias, do mesmo tema.
“Alice” é um marco, passe a expressão!, importante na forma como agora olho para a composição musical. Aos meus olhos, mudou também a cidade onde nasci.
De acordo com as ideias traçadas neste texto, desafiei o Guta de Carvalho, fotógrafo que muito admiro, a conceber um video com imagens de Lisboa como forma de representação abstracta das ideias musicais que apresentamos sobre a história do filme e os gestos desta cidade.

Bernardo Sassetti


NOTÍCIAS A PROPÓSITO DA ESTREIA DE “ALICE” NO MARIA MATOS

A terceira vida de 'Alice' nasce hoje num palco

A música nasceu primeiro para ilustrar imagens de um filme de Marco Martins. Pouco depois, numa operação de estúdio e fabrico de CD quase fulminante, Alice chegou aos discos (e acabou como o melhor álbum de 2005 nas escolhas do DN). Hoje, a terceira etapa da vida desta música dá o primeiro passo, num concerto de Bernardo Sassetti no recentemente reaberto Teatro Maria Matos, em Lisboa. A música será apresentada em arranjos novos, expressamente preparados para o palco. Em estreia, hoje, pelas 21.30.
O concerto vai trazer uma nova dimensão visual à música de Alice, num projecto de interacção com o vídeo, num trabalho realizado por Guta de Carvalho, sobretudo conhecido pelo seu trabalho em fotografia. "Vamos interagir com um novo conceito de imagens, nas quais as pessoas e a cidade de Lisboa surgirão de uma forma plástica", numa série de representações "de indiferença e de náusea", explicou ao DN Bernardo Sassetti. "Mas haverá também momentos de silêncio", acrescenta. Os sons da cidade, que se escutavam no filme, e o músico fez questão de levar para o disco, também estarão representados na versão de concerto de Alice: "São sons ampliados e bombásticos" e, como recorda, "violentos". A música surgirá "com novos arranjos, ampliações e outros desenvolvimentos". Mas Bernardo não deixa de sublinhar que "o respeito pelo filme estará sempre presente" no concerto, sendo certo que, por vezes, haverá "momentos em que a improvisação há de vir ao de cima".

Nuno Galopim, Diário de Notícias, 06.04.2006


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A ideia era boa. Tocar, na íntegra, a música da banda sonora de Alice, juntando-lhe um trabalho complementar em vídeo e ruídos adicionais que sugerissem marcas da vida numa cidade como Lisboa.
A música, essa, é mais que apenas boa. É um dos melhores trabalhos na obra de Bernardo Sassetti, a melhor banda sonora recente do cinema português, o “disco do ano” de 2005 e um interessante mergulho de uma personalidade crescida no jazz por um espaço musical que não esconde um interesse pelo minimalismo. No filme, a música era perfeito complemento aos olhares sobre a cidade e, mais ainda, ao deserto interior de dor e perda do protagonista.
Ao vivo, a cidade voltou a entrar pela música dentro, como que a deixar claro que estamos perante uma alma e intenção específica, que não vira casaca porque, agora, sobe ao palco sem o filme para o qual nasceu.
De resto, os vídeos que Guta de Carvalho criou para este espectáculo, flashes longos, desfocados, de vidas em movimento, de náusea, de solidão no meio da multidão, asseguram a Alice (versão live) um corpo visual e uma identidade espacial que, de certa forma, respeita as intenções originais desta música.
[...]
Espectáculo de concentração total, exímia interpretação e magnífica concepção visual. Alice foi bem “encontrada” no palco do Teatro Maria Matos.
Nuno Galopim, DN, 08/04/2006

Bernardo Sassetti toca Alice no Maria Matos

O pianista apresenta em Lisboa a banda sonora que compôs para o filme de estreia de Marco Martins e, também música original, sempre a partir de Alice
Hoje, no renovado Teatro Muni­cipal Maria Matos, em Lisboa, Bernardo Sassetti apresenta pela primeira vez, num concerto único, aquele que diz ser o seu "trabalho para cinema mais bem conseguido" - a banda sonora de Alice, o terceiro filme português mais visto em 2005 com mais de 33 mil espectadores.
Mas o músico/compositor não vai seguir à risca a música que compôs para Alice, porque Sassetti não gosta "de limitar a música ao filme". "Gosto que a música tenha a sua evolução natural, não gosto que fique na prateleira. Este concerto é música original de e sobre Alice." Por isso, há algumas novidades para hoje à noite: "Quando componho para filme, componho mais do que é necessário. Componho a minha visão do filme. O que aconteceu no CD [publicado no Natal e que hoje é formalmente apresentado], como vai também acontecer neste concer­to, foi usar toda a minha visão sobre o Alice, uma visão mais completa e com mais variações do que aquelas que estão no filme."
O concerto vai ter muito de improvisação - "existe uma liberdade muito própria que se aproxima do meu lado de concertista de jazz" - e imagem. Não imagens do filme, como seria quase óbvio. Bernardo Sassetti convidou o fotógrafo Guta de Carvalho para fazer um vídeo: "Que tem um conceito meu que se aproxima do filme - gestos muito abstractos e plásticos na cidade de Lisboa", explicou Sassetti.
"Nós vamos interagir com o vídeo seguindo as ideias daquelas imagens. Gosto de lançar as imagens dentro do concerto e pensar que a música vai fluir de encontro a essas imagens", diz, referindo tam­bém que "a música e o vídeo vão de encontro ao filme, mas podem ser vistos como dois objectos diferentes separados do Alice.”
Mas há pontos comuns. Um exem­plo: "À medida que o filme avança e que o pai procura a filha, está cada vez mais só. Isso também pode ser representado pelo ruído da cidade, o trânsito, o movimento frenético
das pessoas, em contraponto com o silêncio interior e a angústia do pai".
Sasseti, que não estava à espera de tocar Alice em concerto até receber o convite do actor Diogo Infante, agora director do Maria Matos, diz que este é um concerto de "risco controlado". "Eu diria que é um risco com muita disciplina. Estou a preparar isto há muito tempo. Mas mais do que um risco é um desafio. Conhecemos a músi­ca e o contexto, mas existe sempre este lado de improvisação em que a música pode seguir por caminhos diferentes."
Os músicos em palco - Sassetti no piano, Rui Rosa no Clarinete, Yuri Daniel no contrabaixo e José Salgueiro no vibrafone - vão partir dos temas principais do filme, que foi dividido em três capítulos (a
banda sonora segue essa divisão): a procura; a angústia e a esperança e a indiferença. "Não é uma divisão óbvia para quem vê o filme. Nós, interiormente, vamos ter esse con­ceito presente no concerto."
Depois de ver várias vezes Alice na fase de montagem e três no ci­nema, Sassetti continua a gostar de ouvir a sua música. Este é para si um projecto acabado: "Hoje não mudaria nada."

José J. Mateus, Público, 06.04.2006

 

 

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