AGOSTO na Esplanada d’Os Artistas – às 4ªf - 22h – Entrada Livre!

Sonic enigmas – documentários musicais!


Aproveitar a Esplanada d’os Artistas para um belo ciclo ao ar livre dedicado a alguns dos maiores e mais criativos músicos de sempre!

(links sobre os filmes nas imagens)

Dia 1
NO DIRECTION HOME: BOB DYLAN
Martin Scorsese, EUA, 2005, 208’




Dia 8
THE DEVIL AND DANIEL JOHNSTON - LOUCURAS DE UM GÉNIO
Jeff Feuerzeig, EUA, 2005, 110’



Dia 15
SCOTT WALKER: 30 CENTURY MAN
Stephen Kijak, EUA/UK, 2006, 95’




Dia 22
OS GATOS PERSAS
Bahman Ghobadi, Irão, 2009, 106’



Dia 29
DECONSTRUCTING DAD: THE MUSIC, MACHINES AND MYSTERY OF RAYMOND SCOTT Stanley Warnow, EUA, 2010, 100’
+
MOOG
Hans Fjellestad, EUA, 2004, 72’



!ENTRADA LIVRE!


BOAS FÉRIAS!


(os nossos serviços reabrem dia 3 de Setembro)

ÚLTIMO FILME - 6ªf, 27, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

Paris, 1931. Hugo Cabret é um miúdo que vive nas passagens ignoradas que se escondem por trás das paredes da Gare Montparnasse. Órfão, com uma obsessão por pôr em funcionamento um velho autómato que é a única ligação que o mantém ao defunto pai, constantemente perseguido pelo inspetor da Gare e o seu negro mastim (sempre atrás de crianças desamparadas que por ali vagueiam – para as enviar para o orfanato), Hugo descobre, num irascível lojista de um pequeno comércio de doces e brinquedos, um homem de quem a opinião-pública teria perdido o rasto - Georges Méliès, o pioneiro cineasta de "Le Voyage Dans la Lune". E sabe que ele o pode ajudar a pôr o seu autómato de novo operacional. É esta a base do novo filme de Scorsese, superprodução usando tudo o que o estado da arte dos efeitos digitais pode proporcionar e ainda toda a magnificência cenográfica que o dinheiro da grande indústria consegue garantir.

A história de Méliès que nele se delineia é, aliás, muito próxima da verdade. No final do século XIX, Méliès fora um bem-sucedido ilusionista com teatro próprio, em Paris, sempre muito interessado em descobertas técnicas que pudesse incorporar nos seus espetáculos. Utilizara, aliás, aparelhos precursores do cinematógrafo dos Lumière - não admira que tenha sido convidado para a histórica sessão de 28 de dezembro de 1895 na cave do Salão Indiano do Grand Café, o nascimento do cinema. Entusiasmou-se com a novidade e, dizem as lendas, terá, ali mesmo, querido comprar um aparelho, no que foi dissuadido pelo pai Lumière que predisse nulo valor comercial para a invenção. Mas Méliès não desiste e vai a Londres adquirir um animatógrafo de Paul com o qual começa a fazer projeções no seu teatro. Em junho de 1896 roda o seu primeiro filme e lança-se na construção de um estúdio em vidro, numa propriedade que possuía em Montreuil, o primeiro em todo o mundo a possuir alçapões (como nos palcos de teatro) e maquinaria.

Nós hoje identificamos Méliès como o mago dos primeiros efeitos especiais, do fantástico, o pai da ficção científica no cinema. A verdade é que dos quase seiscentos filmes que terá rodado, a maior parte seguiu os cânones da época: atualidades (bastas vezes 'reconstituídas'), cenas de quotidiano, filmes históricos. O sucesso financeiro pleno da produção de filmes só acontece na viragem do século, quando obras como "Le Voyage Dans la Lune" são vendidas internacionalmente. Os negócios de Méliès estendem-se a Londres, Berlim, Barcelona, Estados Uni¬dos, América Latina. Faz mesmo construir um segundo estúdio, em 1907. Pouco depois, todavia, a mudança nos gostos do público põe a sua produção em crise. Ainda tenta seguir a onda (produz mesmo alguns westerns, dirigidos por um irmão), mas falha. E em 1913 cessa definitivamente de fazer filmes.

Nos anos seguintes atravessa graves problemas financeiros que culminam, em 1923, com a venda da propriedade de Montreuil. Méliès, ao verificar que os filmes tinham encolhido e eram improjetáveis, queima-os. Centenas são ainda vendidos para recuperar o nitrato de prata. Para sobreviver, volta ao ilusionismo ambulante, mas acaba por até isso abandonar quando reencontra uma velha atriz dos seus filmes e sua ex-amante - Fanny Manieux - que tem uma loja de doces e brinquedos na Gare Montparnasse. Vai viver com ela (casam em dezembro de 1925) e fica a trabalhar no pequeno comércio. Tem 64 anos.

Méliès está muito pobre mas não ignoto. Escreve na imprensa dedicada ao ilusionismo e ao cinema. Mantém contactos. Em 1929 uma gala em sua homenagem é organizada em Paris - e são projetados alguns filmes, reencontrados numa queijaria do château de Jeufosse. Começava a recuperação das obras de Méliès que dura até aos nossos dias (em 2011, um dos acontecimentos do Festival de Cannes , foi a exibição de uma cópia restaurada e tintada manualmente de "Le Voyage Dans la Lune"). Enfim, em 1931, um banquete em sua homenagem e a condecoração com a Legião de Honra selam o reconhecimento público que lhe vai proporcionar um fim de vida confortável.



O filme de Scorsese começa exatamente nesse ano de 1931. É a adaptação fiel de um livro infanto-juvenil de Brian Selznick, publicado em 2007, uma muito original novela gráfica - metade texto metade grandes ilustrações a lápis a toda a página ou, muitas vezes, ocupando mesmo um plano inteiro (edição portuguesa da Gailivro). É uma história contada por imagens (um dos pontos de honra do filme é o respeito pela iconografia de Selznick) sobre um personagem mítico da imagerie do século XX e tendo como referência todo um conjunto de personagens da literatura a que o cinema dera um estatuto popular vasto e planetário. Não é difícil ver no mundo labiríntico e secreto onde Hugo vive reminiscências das torres e passagens ocultas da catedral de Notre-Dame de Paris onde habita Quasimodo (que todos os que viram o filme de Dieterle hão de sempre figurar nos traços de Charles Laughton) ou dos corredores e subterrâneos misteriosos por onde erra a tragédia do desfigurado génio musical de "O Fantasma da Ópera" (que, muito antes de Gerard Butler na versão cantante, assustara meio mundo no corpo de Lon Chaney e Claude Rains) e há, no interior do livro, muitas alusões concretas ao mundo do cinema (desde o começo, onde nos convidam a entrar no filme como num longo movimento de câmara - que, aliás, Scorsese, virtuosamente, materializa). O realizador não fez mais do que acentuar este aspeto, nomeadamente tornando a personagem do inspetor um émulo de Jacques Tati, no porte, no modo como se move, até no quase mutismo, o seu falar sendo mais constituído por sons a fazer lembrar a língua francesa que por palavras e diálogos. Mas onde a cinefilia deste filme se exacerba até à comovência é quando Scorsese reconstrói o estúdio de vidro de Montreuil e nele figura a rodagem de "Le Royaume des Fées", em 1903 - através de um tanque com água, peixes e crustáceos, para dar a sensação de estar debaixo de água, exatamente como Méliès fizera. Subitamente, sentimos o tem¬po a rebobinar, sentimo-nos presentes num instante mágico. Só que, agora, Scorsese usa o 3D e a candura do processo original artilha-se com a jubilosa tecnologia dos dias de hoje. É uma festa! Magnífica for¬ma de nos mostrar que o gesto fundador de inventar mundos fantásticos continua vivo e de apostar – e aqui é o Scorsese preocupado com a preservação patrimonial dos filmes que emerge - que mesmo quando os filmes parecem, de todo, perdidos, há sempre a hipótese de uma lata ignorada num esconso, num sótão, numa prateleira de arquivo, onde persistem as imagens de que os restauradores das cinematecas e dos laboratórios hão de saber, amorosamente, cuidar. É que as veras imagens fabricadas por Méliès também entram em cena e, por Deus!, ganham um estremecimento como há muito não lhe associávamos. E quase escuto, garanto que quase escuto, a voz acelerada, entusiasta e entusiasmante, de Scorsese a detalhar o que vemos.

Um dia tive a sorte de o ouvir ao vivo, no Festival de Veneza, onde foi apresentar uma magnificente cópia de "Johnny Guitar", restaurada com o seu patrocínio. E o que devia ser uma rápida apresentação de circunstância, tornou-se quase uma master class de cinema. É que Scorsese começou a falar do filme e a empolgar-se - e nunca mais parava. Nem ele se calava nem a sala plena queria que ele se calasse, presa de um saber olhar cinema capaz de comunicar a sua própria inteligência e paixão. Mas o cumprimento de horários era imperioso e acabou por levar alguém da organização a subir ao palco e, com bonomia, convidá-lo a terminar. Scorsese levou uma memorável salva de palmas. Inteligência e paixão idênticas se encontram nas duas séries documentais que dirigiu tendo o cinema como objeto -"Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese Sobre Cinema Americano" (1995) e "A Minha Viagem a Itália" (1999). E neste filme.



Basta ver o começo de "A Invenção de Hugo", os vertiginosos planos-sequências com a câmara pers-guindo o pequeno protagonista pelo labiríntico ventre dos relógios da Gare Montparnasse, para que o espectador, um sorriso estampado no rosto e os olhos muito abertos de maravilhamento, se pergunte: “Como é que ele fez isto?”. Deve ter sido essa a interrogação mais comum que fascinou o ingénuo e espantado público das fitas de Méliès, há mais de cem anos, quando as cabeças inchavam como balões soprados, quando pessoas desapareciam numa ex¬plosão de fumo, quando uma nave em forma de bala entrava pelo olho do rosto da Lua. Encontramos em "A Invenção de Hugo" um apelo primordial à fantasia que une um dos maiores cineastas vivos ao fundador do cinema enquanto passaporte para o imaginário sem limites. É um elo feito da vontade de maravilhamento que há de ser sempre razão matricial para que alguém se torne cultor da religião da cinefilia. O encantamento da sala escura e da viagem para mun¬dos fantásticos é o laço que nos prende, só depois alguns de nós descobrem gostar de Dreyer, de Bu¬ñuel ou de Mizoguchi. O que faz de "A Invenção de Hugo" um objeto para amar sem medida é que esse fascínio primevo e a cinefilia longamente meditada são o indistinto material que o constitui. Scorsese consegue ter a frescura que simula a disponibilidade infantil para o deslumbramento e o fundo sedimento que mais de um século de cinema foi depositando. E isso é muito raro.

Jorge Leitão Ramos, Expresso



Título Original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
Argumento: John Logan, no livro "The Invention of Hugo Cabret" de Brian Selznick
Fotografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Música: Howard Shore
Interpretação: Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Jude Law
Origem: EUA
Ano: 2011
Duração: 127’

Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

5ªf, 26, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

Antes de mais, há que prevenir: este não é um filme como os outros. Ao referir “outros” pretendo incluir na categoria muitos estilos de obras que se projectam nas salas de cinema tradicionais. Não: este não é um filme como todos esses que vemos, quer se trate do cinema americano mais comercial, até ao mais independente, quer se trate do europeu ou do asiático. Não, também não é um daqueles filmes vanguardistas e experimentais, que podem ir do ecrã todo azul ao todo negro, dos riscos às manchas, do plano único de duas horas à montagem entontecedora. Nada disso. Este é um filme muito diferente de tudo isso, e terá de ser visto enquanto tal. Não sou dos que dizem isto sim é cinema, como se este fosse o único modo de fazer filmes. Mas sempre disse que a crítica, e o espectador, deve procurar em cada obra aquilo que ela tem para dar e julgá-la enquanto tal. Longe de mim dizer que só o cinema narrativo, romanesco, a que aderem multidões é “o” cinema. Tal como “O Cavalo de Turim” não é “o” cinema. Porque o cinema, tal como qualquer manifestação artística, da literatura à música e etc., tem muitas faces, e todas elas legítimas desde que honestas, sinceras, íntegras e coerentes com os seus propósitos.

Posto isto, “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, é uma experiência apaixonante, para quem a quiser sentir e entender. Depois das suas duas horas e meia de projecção, a sensação com que se fica é que saímos de um daqueles filmes híbridos de início do sonoro, quando alguns génios do mudo prevaleciam na ideia de que o cinema era mudo ou não seria e que aceitavam, apesar de tudo, um ou outro diálogo, aqui e ali, e uma boa sugestão sonora. “O Cavalo de Turim” recorda-nos assim alguns mestres do mudo, como Griffith (“O Lírio Quebrado”), Murnau (“Aurora”), Sjostrom (“O Vento”), ou mesmo alguns continuadores do estilo, como Dreyer (“A Palavra”) ou Bresson (“Peregrinação Exemplar”). Mas, ao mesmo tempo, o que “A Torinói ló” (título original húngaro) nos procura transmitir, sobretudo inquietar, é algo muito actual e que se encontra disseminado num vasto conjunto de obras recentes (“A Árvore da Vida”, “Melancolia”, “Cosmopolis”, “Procurem Abrigo”, para não falar de algumas mais comerciais, como “O Dia Depois de Amanhã” ou outros títulos catástrofe mais espectaculares).

Béla Tarr não é conhecido do público português, a não ser dos poucos que puderam ver “O Homem de Londres” na sua edição em DVD. É um cineasta que começou como documentarista, nos finais dos anos 70, e que daí até agora construiu uma filmografia extremamente radical na sua secura de processos, na austeridade da imagem, no rigor da composição, dos longos movimentos de câmara, na excessiva duração dos planos (sobretudo se comparada com a média habitual nas salas comerciais) e na abordagem filosófica dos temas escolhidos (ele queria ser filósofo e para ele o cinema é um prolongamento dessa necessidade).

“O Cavalo de Turim” começa com uma história passada com Friedrich Nietzsche que terá visto um cavalo a ser barbaramente chicoteado, se terá intrometido entre o animal e a chibata do cocheiro, mas que a partir daí terá caído doente e enlouquecido. A sequência inaugural mostra-nos um cavalo a galopar e o velho cocheiro a chicoteá-lo até chegar à sua pobre e inóspita habitação, na deserta planície húngara. Terra de fim de mundo, onde, como iremos ver, nada acontece, ou se preferirmos, tudo acontece até ao negrume final que nos anuncia a morte. O preto e branco da deslumbrante fotografia e a quase ausência de diálogos servem plenamente as intenções do autor.

O cocheiro (János Derzsi) vive apenas com a sua filha (Erika Bók), serve-se somente de um braço (o outro está imobilizado ao longo do corpo), veste-se e despe-se com o auxilio da filha, comem à refeição uma batata e bebem um ou dois cálices de palinka, olham a desoladora paisagem pela janela, deitam-se e acordam ao longo dos dias num ritual repetitivo que chega a rondar o ascetismo e mesmo o puritanismo mais radical. Um dia recebem a visita de um vizinho (Mihály Kormos) que lhes compra um garrafa de palinka, de outra vez passa por perto um grupo de homens e mulheres que eles julgam ciganos, e vai-se ouvindo sempre um vento cortante que assola a paisagem de forma desapiedada. O cavalo adoece e recusa-se a trabalhar mais, nega-se mesmo a comer, depois falta a água, a comida, a bebida, a luz. É o fim. A escuridão total. O fim deste mundo que lentamente fomos delapidando, como no-lo diz o seu vizinho, que denuncia ainda esta sociedade de compra e venda, sem dignidade nem futuro.

A imagem é de uma beleza que atinge por vezes o sublime na sua austeridade e contenção. Os enquadramentos, os movimentos, a duração do tempo, a secura da interpretação, tudo serve um propósito. O filme é de uma coerência estilística notável. Quem entrar na obra sai dela como que purificado, mas acabrunhado pelo desespero e o niilismo destes tempos de desesperança e desconforto. Béla Tarr afirma que este foi o seu último filme. Que nada mais tem para dizer. Este é um testamento terrífico de um visionário pessimista. Convém dar-lhe ouvidos, antes que seja demasiado tarde e a escuridão nos invada a todos.

Numa entrevista explicou: “Nada mudou. Se os tempos do comunismo eram péssimos, os do capitalismo também são. Se antes existia uma censura política, agora existe uma censura económica. Nada mudou”.

Lauro António


O Cavalo de Turim, o filme que o cineasta húngaro anuncia como o seu derradeiro, é o primeiro filme de Bela Tarr a ser estreado em Portugal. Nascido em 1955, foi revelado na viragem dos anos 80 para os anos 90, com um par de enormes filmes - Perdição e O Tango de Satanás (este, enorme também na duração: mais de sete horas...). A sua influência chegou a sítios insuspeitados, pergunte-se por exemplo a um americano como Gus van Sant, cujo cinema "mudou" depois de conhecer Tarr (e Gerry, confessada e expressamente, foi um filme feito sob o feitiço do cinema do húngaro). O Cavalo de Turim é cem por cento Tarr: preto e branco, estruturado em planos-sequência (figura de que Tarr é um dos últimos grandes estetas), em relação alusiva com elementos da cultura húngara e europeia, um pessimismo existencial de cortar à faca.

Tarr recebeu-nos em Budapeste, nos escritórios da sua empresa de produção recentemente encerrada ("tenho duas semanas para esvaziar esta porcaria"), instalados num complexo arquitectónico ainda cheio de sabor da época comunista, onde funcionam os estúdios da televisão húngara. Doem-lhe três costelas recentemente partidas, e está mal disposto, em mood verdadeiramente terminal. Mas é um homem doce e põe-nos logo à vontade: "não ligues aos sinais, podes fumar onde quiseres".

Em Lisboa, antes de viajar para aqui, a última notícia relacionada consigo que li na internet foi o anúncio do fecho da sua empresa de produção [T.T. Filmuhély). As coisas estão assim tão mal?
Já não dá, não consigo mais. Não há dinheiro, não há hipóteses. Isto existia para produzir os meus filmes, mas também para projectos de outros cineastas. Chegou a altura de encarar a realidade: todos os meus sonhos se esfumaram. Não tenho como pagar às pessoas, não tenho como pagar coisa nenhuma. Acabou.

Mas entretanto pôs-se a montar uma escola de cinema na Croácia.

É verdade. É o meu trabalho principal, neste momento.

Porquê na Croácia e não aqui [na Hungria]?
Aqui ninguém me pediu para o fazer. Ninguém mostrou interesse.

Vai-se mudar para a Croácia?
Agora ando cá e lá. A dada altura vai ter que ser, sim.

Apesar da má conjuntura que descreveu, O Cavalo de Turim tem sido bem recebido, visto e falado. Vai estrear em Portugal e tudo, coisa que nunca tinha acontecido a um filme seu. Presumo que seja o seu filme com maior circulação comercial internacional...

Foi vendido para 42 países. China, Rússia, Estados Unidos... Tenho a lista algures. Mas não sigo o rasto dos meus filmes. Liberto-os, eles vão para onde forem.


O ponto de partida do filme é aquela anedota nietszcheana que se ouve no início. De onde é que ela vem? Ou por outra, como é que ela gera a inspiração para um filme?
Na verdade, a ideia germinava desde 1985. Nesse ano assisti a uma conferência de Laszlo Krasznahorkai [escritor, e argumentista de Tarr] em que ele contava a história. E no fim, alguém perguntava: "e o que aconteceu ao cavalo?". Entre nós, repetimos muitas vezes a pergunta ao longo dos anos: "o que aconteceu ao cavalo?" [risos].

O cavalo é o primeiro protagonista. Aquele plano-sequência de abertura é espantoso, coloca logo o filme sob o signo do esforço físico, do cansaço...
Verdade. Conhece aquele livro que fala da insustentável leveza do ser... O meu filme é o contrário, fala do insustentável peso do ser...

Mas também de um enclausuramento progressivo, as personagens têm cada vez menos espaço e luz, é uma espécie de fim do mundo, um apocalipse...
O apocalipse não. O apocalipse é um grande espectáculo de televisão: há explosões, fogo, muito barulho. No meu filme há escuridão e silêncio. É só uma história da vida no dia-a-dia, e de como vai havendo cada vez menos energia, cada vez menos esperança...

Foi uma rodagem difícil?
Um bocado. Precisávamos de uma meteorologia específica, não podia haver um raio de sol. Filmámos no Inverno, mas frequentemente tínhamos de ficar à espera do tempo.

O décor é fabuloso. Rodou na Hungria?
Sim. Não posso dizer onde, mas foi na Hungria.

E já lá estava tudo, a casa, o estábulo, o poço, ou há algum artifício?

Não, construímos tudo. Mas construímos a sério, com tijolo, pedra e argamassa. Ficou tudo lá.

E a árvore?
A árvore já lá estava.

No genérico vemos os nomes habituais nos seus filmes: Krasnahorkai [argumentista], Fred Kelemen [director de fotografia], Mihaly Vig [compositor], Agnes Hranitzky . [mulher de Tarr, creditada sempre como co-realizadora]. É importante trabalhar com um grupo estável, à evidência...
É que sou um tipo preguiçoso. Detesto falar, detesto ter que explicar coisas. Estas pessoas conhecem-me há muito tempo, compreendem-me sem que eu precise de falar e de me explicar muito.

Também é claro que continua fiel à película, numa altura em que o cinema se tornou uma questão de vídeo digital...

Claro que sim. A tecnologia digital não é filme. Está bem para quem a quiser usar. Mas não digam que são "filmes". Chamem-lhe outra coisa, digital pictures ou assim. Mas não são filmes.


Deve estar consciente de que há muita gente a associar o pessimismo do seu filme a uma visão, ou um discurso, sobre a Hungria contemporânea...
As pessoas são livres de ver nos filmes o que quiserem. Mas detesto metáforas, o cinema não é feito de metáforas. O filme é o que é; simplesmente.

Mas já agora, como a vê, à Hungria? Na Europa tem-se falado muito do governo Orban...

Muito mal. As pessoas estão a enlouquecer, os políticos são péssimos. O que eu vejo neste país de merda [this fucking country] é que as pessoas estão cada vez mais pobres e têm cada vez menos esperança nalguma coisa.

Nos anos 80 e 90 via-se nos seus filmes, Perdição, de 1987, ou mesmo O Tango de Satanás, de 1994, um reflexo desolado do estertor do regime comunista. Mas com a passagem à democracia, a sua visão não mudou.
Nem tinha razão para mudar. Não há grande diferença entre o comunismo e o capitalismo. Humilham-te com o mesmo poder, subjugam-te da mesma maneira. E no meu trabalho como cineasta continuo a ter que lidar com a censura. Dantes era uma censura política, agora é comercial. Ambas me dizem: "não podes fazer isto".

Há uma cena, a do monólogo do homem que vem à procura de palinka [aguardente húngara], que tanto parece aludir a Nietzsche ["não há bem nem mal", "não há deus nem deuses"] como, difusamente, a um estado político ["adquirir e degradar, degradar e adquirir"]. É fácil encontrar um sentido político para o monólogo...

É só conversa de bêbedo. Foi Laszlo [Krasznahorkai] que escreveu o monólogo, e é o tipo de filosofia que podemos ouvir se entrarmos num bar ou num café. Há sempre um tipo a dizer coisas destas para quem o quiser ouvir.

E o livro que a rapariga soletra, também é invenção ou existe mesmo?
Também foi escrito por Laszlo. É invenção total.

Como habitualmente, O Cavalo de Turim vive de longos planos-sequência. Exigem muito ensaio?
Com os actores, não. Digo-lhes o que têm que fazer e eles agem. Com a câmara sim, porque a câmara tem que ser precisa. É a contradição essencial no meu método de filmar: quero que os actores sejam muito livres, enquanto que a câmara tem que ser muito rigorosa.

Os actores vêm de outros filmes seus. Mas o cavalo [Ricsi], como fez o casting do cavalo?

Fomos a um mercado de animais e descobrimos este, que tinha ar de não querer trabalhar. Podia ser o cavalo da história de Nietzsche. Percebemos que era o nosso cavalo.

Tem dito que é o seu último filme. Há hipótese de mudar de ideias?
Não. Tenho a sensação de já ter dito tudo o que tinha a dizer. Se fizer mais filmes, começarei a repetir-me e a plagiar-me. A minha obra está feita, embalada [packed].

A situação do cinema na Hungria não tem nada a ver com a decisão, portanto.
Não. Mas o cinema húngaro está morrer. As estruturas foram desmanteladas, e o novo modelo quer decalcar o método hollywoodiano. Aquele tipo [aponta para uma foto de Andrew Vajna, o produtor americano de origem húngara trazido para a Hungria como supervisor da cinematografia nacional] é uma desgraça.

Tem um discurso tão pessimista, mas está a montar uma escola de cinema. Não é contraditório?
Não vejo porquê... E na minha escola não ensino, liberto. Não digo aos meus alunos que têm que fazer "assim" ou "assado". Digo o contrário: não têm que fazer nem "assim" nem "assado".

Que citação do Godard é que tem ali na parede, em húngaro?
"Van Gogh inventou o amarelo quando queria pintar e já não havia sol".

Prénom: Cármen...
Sim. Não há outro remédio se não passar a vida a inventar o amarelo.

Luis Miguel Oliveira, Público



Título Original: A Torinói ló
Realização: Béla Tarr e Ágnes Hranitzky
Argumento: László Krasznahorkai e Béla Tarr
Fotografia: Fred Kelemen
Montagem: Ágnes Hranitzky
Música: Mihály Vig
Interpretação: Erika Bók, János Derzsi, Mihály Kormos, Ricsi
Origem: Hungria/França/Alemanha/Suécia
Ano: 2011
Duração: 146’

Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

4ªf, 25, 22h. Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

Vi o fim do mundo - é indescritivelmente belo e triste. Vi o fim do mundo não à maneira americana com as cidades em colapso e o mar em fúria - Emmerich, t'arrenego! - mas como um canto triste, uma ópera que acordasse Bosch e Breughel, a memória de Marienbad, o horror de uma Natureza que começasse a tresvariar e a violar as suas próprias leis. Então, as raízes das árvores poderiam ser como tentáculos, os dedos captariam fios de eletricidade no caminho do céu, os arbustos poderiam ter duas sombras e as pessoas parecer peças num imenso pano de jogo para o qual nós - e Deus - olhássemos com estupefação e plangência. Então, o cinema estaria outra vez três palmos acima do simples ofício de contar histórias e seria um provocador de visões, uma arte plástica que assumisse a sua autonomia sobre os constrangimentos de também ser uma narrativa. Vi o fim do mundo nas sequências iniciais de "Melancolia" - interdito chegar atrasado um segundo que seja a este filme - e, por isso, parece irrisório o medo lá para diante. Talvez uma lágrima, furtiva, quando o céu ficar todo cheio daquela luz azul e fria, lunar, mesmo antes da onda de choque e do escuro. Nada de mais.

Fora esse prelúdio em que o apocalipse é uma refinação estética, "Melancolia" organiza-se em dois capítulos. No primeiro - que toma o nome da sua protagonista, Justine (Kirsten Dunst) - há uma festa de sonho, um casamento principesco em que tudo acaba a desmoronar-se, a começar na noiva, sadeanamente a provocar toda uma cadeia de infortúnios; no segundo - que toma o nome da irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg) - há a pacífica delimitação de uma família com tudo para ser feliz, com uma criança sábia numa morada de sonho sustentada pelos infindáveis proventos do marido (John/Kiefer Sutherland), ilimitadamente sereno ante a aproximação do planeta Melancolia, que, dizem os cientistas em quem ele confia até ao suicídio, nunca há de chocar com a Terra. Dois capítulos em estilos diversos, mas onde o uso da câmara à mão nos lembra os idos tempos do Dogma e do seu manifesto - oh!, quão ofendido agora pelos efeitos especiais em que Lars von Trier se deleita. Dois capítulos a mostrar disfuncionalidades afetivas, crueldades inúteis, esperanças infrutíferas, vaidades fúteis, uma espécie de desgosto pelo género humano que é dos aspetos menos recomendáveis deste cineasta. E um desfilar de atores de grande renome, passeando um vago reflexo do cinema todo inteiro, de Hollywood a Liliana Cavani, de David Lynch a Fassbinder, que eu sinto por detrás de "Melancolia" como se Trier se entregasse ao prazer do palimpsesto, escrevendo com imagens e corpos roubados. Claro que todo este programa se faz em detrimento da consistência dramatúrgica, que não parece ser a sua preocupação maior. Ao contrário, o essencial é a respiração do filme, o tom melancólico, as imagens fortes, a vacilação entre a iminência da catástrofe, a serenidade de quem espera o fim como um resgate - e talvez a miragem de encontrar Deus face a face.

Lars von Trier é um cineasta excessivo, capcioso, que gosta de provocar, que tem uma ideia de beleza sempre com um impulso profanador à mistura. Não é preciso irmos ao descomedimento intolerável de "Anticristo" (2009) para o provar, basta pensar na execução de Björk em "Dancer in the Dark" (2000), em Nicole Kidman acorrentada em "Dogville" (2003), na via sacra de Emily Watson ganhando o milagre com o sarro da sua própria degradação em "Ondas de Paixão" (1996) para ver¬mos como este realizador gosta de nos manipular acordando discórdias. Mas a memória de todos esses filmes é também a de espantos e maravilhamentos, coisas nunca vistas ou só entrevistas, cruzamento de imaginários, acordes improváveis. Há quem odeie os filmes de Lars von Trier e, há que perceber, fundadamente. Ninguém passa por eles com indiferença e todos nos deixam uma imagem cravada na memória - como um prego, uma assombração,, um horror ou um prodígio.

Jorge Leitão Ramos, Expresso



ENTREVISTA AO REALIZADOR

“Melancolia” começa com um ralenti operático e wagneriano (a abertura de "Tristão e Isolda") e um casamento. Tem duas partes, cada uma com a sua irmã, Justine (Kirsten Dunst), a loira, e Claire (Charlotte Gainsbourg), a morena. No fim da primeira noite, o casamento de Justine está desfeito: felicidade em Lars von Trier, mesmo no mais romântico dos seus filmes, é sol de pouca dura. Mas a agonia ainda está para vir. No sistema solar, entrou um planeta monstruoso e de órbita desconhecida que se prepara para esmagar a Terra. Chama-se Melancolia. Trier filma tudo com uma calma de fim de mundo. Na estreia em Cannes, não foi calma a conferência de imprensa do dinamarquês. Ele afirmou ser nazi. Disse compreender Hitler. Caiu o Carmo e a Trindade na Croisette. Trier apresentava-se pela nona vez à Palma de Ouro (venceu uma, com "Dancer in the Dark"). Não terá décima oportunidade: no dia seguinte, Cannes declarava-o persona non grata. Foi nesse dia que o encontrámos.

Gostaria de 'despachar' já a conferência de imprensa e não voltar mais ao assunto. Pergunto-lhe: há em si algum tipo de pulsão autodestrutiva?
Há, sim. Pelo menos a um nível subconsciente, não tenho dúvidas. Eu até estava bem-disposto, parecia estar tudo a correr bem, e depois descubro-me a ir numa direção errada, as frases saíram todas erradas e acabei por dizer coisas terríveis. Foi como se estivesse a guiar um carro e não conseguis¬se fazer a curva. Estou arrependido. Fui muito estúpido. Não posso simplesmente desculpar-me pelo que fiz, porque o que fiz foi ridículo, mas lamento ter magoado algumas pessoas. Duvido que alguma vez possa voltar a Cannes. Disseram-me que estou proibido de me aproximar a menos de cem metros do palais do festival. Tenho um, enorme respeito por Gilles Jacob [o presidente do festival]; venero-o e sei que, sem ele, não poderia ter feito todos os filmes que fiz. Pedi-lhe desculpas, mas também sei que Cannes tem um quadro de administradores que ainda devem estar aos gritos...

Quer comentar a resposta do festival?
Respeito-a. Bom, é óbvio que não simpatizo com Hitler. Fuck him! Quando as palavras não são bem explicadas e estamos perante centenas de jornalistas que esperam de mim uma provocação - porque eles sabem que é esse o meu estilo -, eu faço-o. E perde-se o contexto daquilo que eu queria dizer. Naquele momento, tinha sido confrontado com uma pergunta que me pedira para explicar a minha admiração pelo trabalho do arquiteto nazi Albert Speer. Não o respeito como criminoso de guerra, apenas como arquiteto. Foi a partir daqui que a conversa começou a correr para o torto. Mas tudo isto também me fez pensar no seguinte: será que daqui para a frente os festivais só vão escolher filmes de pessoas que dizem as coisas certas? Eu não me considero um criminoso, mas suponha que há um criminoso que chega aqui com um bom filme e se apresenta a concurso pela Palma de Ouro. Não deve ganhá-la só pelo que ele é? Afinal, estamos a falar de pessoas ou de filmes? De um julgamento moral ou artístico? Toquei num verdadeiro tabu e só isso explica a violência das reações. E acrescento, sem querer com isso defender-me ou justificar o que fiz: acho que o politicamente correto está a acabar com o mundo. A partir de agora, não darei mais conferências de imprensa, acabou-se. Vou fazer como o Malick. Calo-me. Ele não precisa de manter sozinho esse privilégio.

Passemos ao filme...
Ótimo.


O que o levou a filmar o fim do mundo?
O fascínio. E o medo. O fascínio e o medo caminham habitual¬mente juntos, mesmo quando é do fim do mundo que se trata. Podia tentar uma comparação que faz todo o sentido para mim: eu tenho pânico de voar. Nunca apanho aviões. Voei há pouco tempo, pela primeira vez na vida, numa curta viagem de helicóptero e fiquei com pele de galinha, senti um fascínio aterrador. Não quero voltar a repetir. Com as mulheres, em especial com a personagem de Kirsten Dunst, passa-se algo semelhante. Sinto-me fascina-do e aterrorizado por ela. Porquê? O que se passa é que, quando escrevo um papel feminino, sou devorado pela angústia. Pelo desconhecido. Na verdade, não estou a construir uma personagem de mulher, porque não conheço as mulheres, mas a exprimir-me através dessa personagem - até me tomar, deste modo, uma mulher. Sou sempre eu quem fala através delas. Não é por acaso que os heróis dos meus filmes são habitualmente mulheres, ao passo que os homens, como a personagem de Kiefer Sutherland em "Melancolia", são uns tolos, uns fracos.

Num texto dirigido à imprensa, "Um, Belo Filme sobre o Fim do Mundo", disse que recusava "Melancolia" como um órgão erradamente transplantado. O que queria dizer com isto?
Quando um realizador escreve um statement para um dossiê de imprensa, deve confrontar-se com as suas próprias dúvidas. Para quê sublinhar as intenções do filme nesses textos? Não seria justo. O problema é que nos propusemos trabalhar em torno do romantismo alemão, e acho que para a maioria do público, especialmente para quem consome filmes de Hollywood, o romantismo equivale àqueles bombons muito comerciais chamados "Merci". E eu tenho medo disso. Tenho medo que o meu filme se confunda com os bombons na cabeça das pessoas. Para lhe dizer a verdade, este filme dá-me um pouco de vergonha. Acho-o demasiado belo, demasiado simples, e até de mau gosto, por causa daquele excesso wagneriano. Mas fi-lo assim. E foi com prazer.

Disse também que, neste filme de catástrofes, único no seu género – se me permite o reparo -, nem era o fim do mundo que interessava. O que interessava no filme era o seu estado de espírito...
Mas este filme é sobre o quê? Eu não sei. Sei, sim, que quando trabalho com personagens e as empurro para uma série de acontecimentos traumáticos, isso vai levar-me a algum lado. Normalmente, a regra é esta: agarrem-se, que a partir daqui é sempre a descer. Isso aconteceu em todos os meus filmes e, em especial, no anterior, "Anticristo". "Melancolia" é diferente. Há noivas bonitas, cavalheiros em smoking, campos de golfe que me recordam Antonioni, um belíssimo castelo na Suécia, tudo aquilo se toma muito cavernoso. E melancólico.


Muito deste filme vem dos seus pesadelos?
Muito. A minha vida influenciou imenso o meu trabalho. Sofri bastante com uma "coisinha" chamada DOC - Desordem Obsessivo-Compulsiva. Sabe o que é? Dou-lhe um exemplo: você deixa o seu quarto de hotel e fica com medo de ter deixado alguém fechado lá dentro. Depois regressa. Abre a porta, vasculha, não vê ninguém. Porém, não consegue voltar a fechar a porta do quarto e sair. Justine é assim. Ela passa o filme todo a lutar para não olhar para o planeta que se aproxima. Mas não resiste. E olha, várias vezes... No fim, é o que se vê. Sim, a Justine sou eu.

Uma provocação: de todas as personagens que inventou, Justine pode bem ser a primeira pela qual sente desejo. Concorda? Na última sequência, não é ela quem atrai realmente o planeta?
[Longa pausa] Hum... não. Acho que isso depende do gosto de cada um.

Naquele plano em que ela está nua, à espera da catástrofe...
Já sei, nesse momento, você gostaria de ser o planeta. Sabe, esse foi um dos planos mais vulgares que filmei na vida. Não, não posso concordar consigo. Ainda estou excitado pela Nicole Kidman...

Não afirmou querer expressar neste filme o seu lado feminino?
Sim, mas há uma explicação simples para isso: é que eu acho que ando a enganar-vos a todos. A vocês, espectadores. Em especial, as mulheres. Nos meus filmes há sempre um só papel, no máximo dois, em que estou realmente interessado. Um papel feminino, é regra. Se me 'representasse' no cinema com um homem, não funcionava: as mulheres diriam que eu estava a ser unidimensional, misógino, cobarde, etc. Só que eu inverto os papéis. Quem tem as personagens fortes são elas. E as mulheres dizem então: "Ah, nos filmes de Lars von Trier, as mulheres são realmente pessoas..."

"Melancolia" foi mesmo escrito para Penélope Cruz?
Foi. Essa ideia tomou-se mais forte que eu. Eu pensava nela e escrevia o argumento ao mesmo tempo. Quando a encontrei, ela disse-me que não podia aceitar. Tinha compromissos. Mas deixou-me a sua melancolia. Só depois surgiu Kirsten Dunst. É uma atriz espantosa, infinitamente mais subtil do que eu esperava. O seu sorriso, para mim, é impenetrável. A Kirsten ajudou-me bastante: soube construir o seu próprio castelo de depressão.

Alguma vez na sua vida admitiu ser quem não é?
Na minha juventude queria ser comunista. Acredito na partilha dos sentimentos e das coisas. Mas não acredito que alguma sociedade comunista tenha alguma vez funcionado.

Fez algum tipo de pesquisa científica para este filme? Para criar aquele espantoso plano final, por exemplo?
Fizemos muita pesquisa. Não foi só manobras de computadores. Isto de fazer cinema com planetas desconhecidos é muito complicado.

O título deste filme vem de onde?
Da beleza da palavra. Provei-a, gostei, depois saltei para o espaço. Nos tempos antigos, dizia-se que a melancolia nascia dos fluidos corporais. Que estava relaciona¬da com o planeta Saturno. E volto à Justine. No início do filme, ela tem a ilusão de que a normalidade a salvará. Que o casamento, a família, o trabalho e o êxito a poderão resgatar desse espírito demoníaco que ela sente e que tem um nome:
melancolia.

O que é a normalidade para si?
Não é certamente um casamento que acaba na noite de núpcias.

Acredita que há vida para além da morte? Para além da Terra?
Acredito que há vida fora da Terra, sim. O Universo é tão grande, seria ridículo que não houvesse. Só que eu faço os filmes contra mim próprio e desta vez estava interessado noutra coisa: dizer que isso é uma treta, que essa vida não existe e que, com a catástrofe, toda a Humanidade se evapora. Acreditar que lá fora não há uma só semente, apenas um espaço imenso e frio, é um pensamento muito melancólico para mim.


Deduzo que se considere melancólico...
Outrora, os melancólicos eram procurados pela sua sabedoria. Os artistas eram vistos como pessoas melancólicas. Toda a gente sabia que eles podiam fazer coisas que o comum dos mortais não consegue.

Faz parte dessa família?
Respondo-lhe de outra maneira. Acredito que grande parte do trabalho do cérebro humano consiste em filtrar coisas que nós não devemos saber - caso contrário enlouqueceríamos. Talvez os artistas melancólicos tenham uma parte do cérebro um pouco estragada. Ouvem e veem um pouco mais e melhor que os outros. E isso custa-lhes. Talvez por isso os devêssemos usar como meios de acesso ao desconhecido.

Porque tatuou a palavra "fuck" nos seus dedos?
Vem do "The Indian Runner" ["União de Sangue", 1991], de Sean Penn. A personagem de Viggo Mortensen tem uma tatuagem assim. A minha filha disse-me: "Olha que isso não pode sair, pai. Estás a passar por uma crise de meia-idade." Ela tem 22 anos. Eu tenho 55 e já sabia: "Sim, estou a passar por uma crise de meia-idade!", respondi-lhe. Fiz a tatuagem há três meses. Estou muito contente com ela.

O seu próximo filme também já tem nome...
É um filme porno...

Ao que parece, chama-se "A Ninfomaníaca"...
Não, eu estava a brincar: não é um porno. Vai ser radicalmente diferente deste. Estou agora mergulha¬do na ninfomania, em Proust e no marquês de Sade. Descobri que 40% das ninfomaníacas mutilam-se. Como não conseguem obter satisfação, praticam 'sexo de cortar à faca', literalmente. Mas falar da ninfomania não é politicamente correto. Não sei o que vai sair daqui. Será um filme sobre uma mulher, isso é seguro. Um filme muito francês. Com uma atriz francesa. Ela vai passar o tempo todo a foder.

Francisco Ferreira, Expresso




Título Original: Melancholia
Argumento e Realização: Lars Von Trier
Fotografia: Manuel Alberto Claro
Montagem: Molly Malene Stengaard
Interpretação: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling,
John Hurt, Alexander Skarsgård, Stellan Skarsgård, Brady Corbet, Udo Kier
Origem: Dinamarca/Suécia/França/Alemanha
Ano: 2011
Duração:136’

Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

Reservas
cineclubefaro@gmail.com

3ªf, 24, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

A VINGANÇA DE UMA MULHER

A mise en scène de um cerimonial de ódio e amor.


Como todos os outros filmes de Rita Azevedo Gomes (dois chegaram às salas comerciais, "Frágil Como o Mundo" e "Altar", mas há vários que não chegaram ao circuito de estreia, como o primeiro de todos, "O Som da Terra a Tremer"), também "A Vingança de uma Mulher" é um filme que parece vir de uma ilha, de uma ilha perdida no tempo, onde se tivessem conservado os restos de uma civilização, ainda não substituída - ou sequer, tocada - por outra.

Singularidade, ou insularidade, que não está longe da de alguém como Werner Schroeter (de quem Rita foi assistente, nos anos 80), que construiu parte da sua obra furando o tempo e a “actualidade”, como se o cinema tivesse sido inventado no princípio do século XIX e não no seu fim, e se tivesse passado da literatura, da pintura e da música ao cinema, saltando por cima da fotografia e de uma relação “química” com o real e com o presente.

A Vingança de uma Mulher tem esse sabor a século XIX, um gosto a sangue, por todas as razões e mais algumas, inclusive absolutamente literais. Ao contrário de "O Som da Terra a Tremer" e de "Frágil", que ensaiavam o patchwork multi-referencial, "A Vingança de uma Mulher" redescobre uma certa linearidade. Em vez de se construir com bocadinhos vindos daqui e dali, adapta uma só história, de cabo a rabo: um conto de Barbey d''Aurevilly sobre mulheres “diabólicas”. A história da duquesa de Sierra-Leone e da sua vingança sobre o marido que, com requintes de crueldade, lhe matou o amante: a duquesa tornou-se prostituta, para que pela Europa se fosse sabendo que o duque casou com uma puta. Ao sangue que o marido fez verter, a duquesa respondeu enlameando-se, no mesmo gesto encharcando em lama a honra do marido. Admirável história de auto-combustão - na implacabilidade da vingança sobre um vivo, na devoção.

E admirável filme que se faz sobre esta história, talvez da única maneira que era possível filmá-la: preservando o racconto da duquesa como núcleo do filme, encenação que devolve à palavra (da duquesa) o seu papel essencial na disseminação da desonra (do duque) pelo mundo - esta mulher é como Nosferatu a espalhar a doença. Admirável, também, Rita Durão, que aguenta com o corpo e a voz dois terços do filme, e o monólogo demencial que, por sua vez, lhe dá corpo. A câmara ronda, em travellings, panorâmicas e reenquadramentos (é um bailado e um duelo), o cenário, cheio de vermelho, ameaça engolir tudo, os objectos, de rompante, revelam o seu significado cruel, e ela, a duquesa, cada vez mais fria e ao mesmo tempo, mais incandescente, domina a mise-en-scène do seu cerimonial de vingança, acentuando a que ponto ele mistura tudo, o ódio e o amor, o desejo de destruição e o desejo de auto-destruição. Sem que alguma vez vejamos “uma louca”; pelo contrário, quanto mais insana se revela a história, mais racional (e portanto, assustadora) nos parece a personagem (também pensamos que Rita Durão foi, no Vai e Vem, a última parceira dos rituais de César Monteiro, e que alguma coisa ela herdou).

Depois de tanto vermelho, somos devolvidos à realidade. Post-mortem: nos planos finais, a cor parece feita de preto e branco, de cinzas. Belíssimo, tristíssimo filme.

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


ENTREVISTA A REALIZADORA

"Muitas vezes se passa no mesmo caminho", dizia aquele amargurado e proustiano Alberto (papel de José Mário Branco), na primeira frase de "O Som da Terra a Tremer". Amante compulsiva de cinema, sensível ao romantismo, à pintura, à música, Rita Azevedo Gomes estreava-se aqui na realização, com um dos filmes portu¬gueses mais injustamente esquecidos das últimas décadas (tão esquecido que nem chegou a estrear comercialmente no seu tempo), terminado em 1990. O caminho da cineasta no cinema português revelar-se-ia depois desfasado, atípico, irónico, por vezes tortuoso. "Frágil como o Mundo", segunda longa-metragem, só surgiria mais de dez anos depois. "Altar", a terceira, foi seguida de duas curtas-metragens de ficção ("A Conquista de Faro" e "A Coleção Invisível") e de um documentário de cumplicidades, "A 15ª Pedra", com Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa à conversa sobre a vida e o cinema. Concluiu Rita Azevedo Gomes, no ano passado, uma nova e siderante longa-metragem, o seu trabalho mais ambicioso, adaptação livre de um dos seis contos que formam "Les Diaboliques" (publicado em 1874), de Barbey d'Aurevilly: "A Vingança de uma Mulher" ("La Vengeance d'une femme"). À frente dos telões e cenários deste exigente filme de época e de estúdio, com Rita Durão no papel de protagonista, conta-se o encontro de Roberto (Fernando Rodrigues), cínico aristocrata de Oitocentos e dandi impassível, com uma 'mulher de má vida', dita 'a espanhola'. Saberemos depois que 'a espanhola' foi duquesa de Sierra-Leone, mulher caída em desgraça por vontade própria, após o horrível crime de amor que a destruiu e arrancou (literalmente) o coração ao homem que amava. Roberto escuta a diabólica história e o destino de quem lhe sobreviveu. É uma história de vingança, de particular infâmia.

Ainda no genérico inicial, conta-nos o narrador que, "neste tempo de inefável e delicioso progresso, o crime adquiriu uma estranha fisionomia"... São os requintes de Barbey d’Aurevilly, homem tão católico como profano, eternamente rodeado de luz e de trevas. Ele está a falar-nos de crimes aos quais foi retirada toda a poesia. Foi um crítico impiedoso do seu tempo. A frase vem do conto. Acho que se encaixa perfeitamente nos dias que correm.

Como é que encontrou o livro? Quando decidiu adaptá-lo? Lembro-me de que em "O Som da Terra a Tremer" havia uma personagem que acreditava nos acasos, nos "encontros automáticos" de uma pessoa com um livro.
É bem verdade que é nos acasos que por vezes se encontram as respostas certas. Isso aconteceu-me muitas vezes. Não foi contudo o caso de "A Vingança de Uma Mulher". Eu andava há muito tempo à procura desta história, numa altura particularmente difícil da minha vida em que vivia rodeada de desilusões. Descobri depois que não ia ceder. Que queria ficar.

No cinema?
No cinema e na vida. Procurava uma história que dissesse isso mesmo: "Eu fico." Foi em conversas com João Bénard da Costa [o filme é-lhe dedicado], com quem trabalhei muitos anos na Cinemateca, que o livro me veio parar às mãos.
O título, "Les Diaboliques”, puxou-me logo. As mulheres dos contos de Aurevilly atraíram-me, tal como o diabo, que sempre foi para mim uma figura atraente. Isto aconteceu há cerca de 15 anos. Desde então, o livro não me deu descanso.


O seu percurso no cinema português seria intermitente. Como o observa hoje, ao retrovisor?
É difícil olhar para o retrovisor porque eu continuo ao volante, e não o largo, entre os filmes que fiz e os que gostaria de ter feito. Sempre sem resignação. Fiquei um bocado fora daquele comboio cha¬mado cinema português. Saltei para lá várias vezes, encontrei nele quem me acarinhasse, mas nun¬ca senti verdadeiramente que quisessem que eu ficasse. Não foi fácil. Isto são ressentimentos passa¬dos e enterrados, que me prejudicaram, mas que também me encorajaram a continuar a filmar como eu queria. Entretanto, outros cineastas da minha geração desistiram ou 'ajeitaram-se' às circunstâncias, o que me dá pena. Fiz "O Som da Terra a 'Tremer" entre os anos 80 e o início dos 90, numa altura em que havia uma frescura incrível no cinema português. Uma frescura que se perdeu. Há dias revi "Uma Rapariga no Verão", do Vítor Gonçalves, e disse isso mesmo: algo se perdeu no caminho. Eu não vinha do meio do cinema, nem da Escola de Cinema, tinha passado por Belas Artes. As minhas aulas de cinema foram os filmes que vi e aqueles em que trabalhei. E surjo numa geração de cinema português que quer dar uma resposta muito pessoal aos grandes nomes que a antecederam, o António Reis, o Fernando Lopes, o Paulo Rocha. Já o Oliveira é influência perpétua que passa por todos nós. E há o César Monteiro, claro, que traçou sempre o seu caminho, à margem de tudo.

O que nos pode acrescentar sobre a heroína de "A Vingança de uma Mulher"?
Esta é a história de uma mulher consumida pelo seu próprio fogo.

Tem alguma predileção particular pelo século XIX - e isto para voltar ao romantismo de Barbey d'Aurevllly, que é negríssimo?
Se calhar, tenho. Houve sempre qualquer coisa que me puxou para lá, para aquele auge das manifestações mais expressivas do homem, da alma, da solidão e da busca de si próprio. Manifestações que, de resto, não são nada vulgares. Eu passei uma boa parte da vida a julgar que estava a viver no século errado. Hoje já não tenho tanto a certeza disso. Ao mesmo tempo, gosto imenso de um presente que tenta tocar no futuro: a pop art foi um choque decisivo quando a descobri nos anos 70. Ensinou-me a acreditar que à arte só resta uma solução: romper com qualquer coisa. Às vezes, tenho vontade de fechar este quarto, deixar estas coisas do século XIX. Talvez agora. Talvez este filme feche essa porta.

Fiquemos ainda por Barbey d'Aurevllly: qual foi o seu primeiro embate com o texto?
Um dos grandes: achei que era impossível filmá-lo. Aliás, uma vez pespeguei com o livro nas mãos do César Monteiro - olha quem... -, ao que ele respondeu: "A história é fantástica, mas em cinema não é exequível." Eu queria acima de tudo manter o máximo de texto, que acho muito bonito, e deixar o texto dirigir o filme. Escrevi uma primeira versão do argumento, muito criticada por quem a viu, mas que acabei por pouco alterar e desde logo me disse também que este filme precisava de um estúdio - e assim foi. "A Vingança de Uma Mulher" foi rodado na Tóbis. Num estúdio histórico em que ainda se pode respirar um pouco de cinema (espero que não o estraguem).

Pode explicar essa importância do estúdio no filme? Foi uma defesa, uma necessidade? E porque decidiu criar aquele narrador?
O estúdio foi uma necessidade imperativa. Agradava-me a ideia do postiço fabricado, da pintura daqueles telões e cenários, das lareiras de papel, de uma máscara da representação em fuga ao naturalismo, que, afinal, está ligada a Barbey d'Aurevilly - não se assume ele como um ator dos seus contos, tal como, no fundo, todos nós nos assumimos como atores das nossas vidas? Ele trabalha com camadas narrativas sucessivas: ora há um narrador comum, ora o narrador é o protagonista do conto. E há ainda uma narração anterior, subterrânea, autobiográfica, em que sentimos os seus desejos e os seus demónios ¬- está presente em toda a sua literatura. Não queria que o filme esquecesse estas variações e se quedasse num só aspeto da narrativa. O narrador/personagem que vemos no início ajudou-me a assumir este jogo, a abrir o espaço, a cena - é ele que nos leva para dentro do filme. Nos festivais em que o filme passou já me disseram que "A Vingança de Uma Mulher" tem atrás o fantasma do teatro. Não vejo nada de teatro ali. Não faço ideia o que daria o texto se o encenasse. Só procurei o cinema.

Procurou também uma proposta de realização que já não é nova no seu trabalho, explorando planos multo longos, reduzindo a découpage aos momentos fulcrais, e voltou a chamar para a fotografia Acácio de Almeida. Acha que há aqui um credo na mise en scène, passe a expressão?
Ou uma fezada: ainda sou daquelas que acreditam que o corte de um plano de cinema implica um motivo superior. Não se corta à toa. Gosto de planos longos, e explico porquê: eles permitem à pessoa que suposta¬mente se posiciona atrás da câmara entrar no filme como personagem. O trabalho com planos-sequência teve também que ver com a urgência de uma rodagem curta de quatro semanas em estúdio: permitiu-me poupar tempo. E é claro que a escolha do Acácio de Almeida favorecia este sistema: já fizemos alguns filmes juntos. Sabemos o que a casa gasta.

Essa maneira de filmar exigiu ainda dos atores um esforço suplementar?
Exigiu um trabalho muito exaustivo, mas, ao contrário do que se pode pensar, filmámos poucas takes. Havia planos tão 'puxados' na duração, com um tal volume de texto, em especial para a Rita Durão, que as repetições só levariam à estafa. E o cansaço num ator é uma coisa que 'mastiga'. Isto obrigou-nos a agir depressa. A apurar ao máximo o trabalho de preparação e os detalhes técnicos. A Rita Durão teve uma coragem sem limites. Eu acho que também tive alguma.

O texto de Barbey d' Aurevilly funciona em torno de um orgulho ferido - e de um escândalo necessário, o da duquesa de Sierra-Leone. Atrás daquelas linhas escorre sexo e sangue. Não houve também coisas 'de escândalo' que a assustaram, como filmar a cena em que a duquesa tenta comer o coração do amante depois de roubá-lo aos cães?
Houve. Essa é uma cena de grande risco, e até digo "mais: ou saía uma pepineira ou um momento de grande intensidade - quem quiser que a julgue. A cena podia ter sido contada. Mas eu tinha de a mostrar, mostrar o coração. Estava 'sozinha': ninguém na equipa acreditava que funcionasse. Acontece que eu também não acredito que se possa fazer um filme sem enfrentar o medo de filmar.


Porque foi Barbey d'Aurevilly tão poucas vezes adaptado ao cinema? Catherine Breillat pegou-lhe recentemente em "Une vieille maîtresse". Há a adaptação, sublime, do Astruc em "Le Rideau "Cramoisi", outro conto de "Les Diaboliques". Pouco mais...
Não vi nenhuma delas. Disseram-me no Festival de Roterdão que Robert Wiene também adaptou "A Vingança de Uma Mulher", nos anos 20. Aurevilly não é fácil de adaptar, porque não é fácil de entender. Ele é metade uma coisa, metade outra: daria um bom caso de estudo para a doutrina filosófica do maniqueísmo. Estão nele os nossos desejos todos e uma curiosidade insaciável.

Às vezes, penso: como será levar um tiro?, ou matar . alguém?, o que se sente? Espero nunca experimentar. Mas isso desperta curiosidade, ou não? Aurevilly tem algo disto.

O que representa aquela vingança?
Para mim, Rita? Ou o que representa no filme?

Para si e no filme, se me permite.
É um abismo sem limite. Levar as coisas ao extremo e "ser mulher de uma só moeda", como a duquesa. Subir muito ou descer muito. É um 'ou vai ou racha' - e às vezes racha – até ao fim.

Francisco Ferreira, Expresso




Realização e Argumento: Rita Azevedo Gomes
Fotografia: Acácio de Almeida
Interpretação: Rita Durão, Fernando Rodrigues, João Pedro Bénard, Hugo Tourita, Maria Carré,
Francisco Nascimento. Com a participação especial de Isabel Ruth
Origem: Portugal
Ano: 2012
Duração: 100’

Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

Reservas
cineclubefaro@gmail.com

2ªf, 23, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

“Meia-Noite em Paris” é o melhor filme de Woody Allen em muitos anos (desde “Match Point”) - uma comédia serena sobre a lucidez de dizer adeus às ilusões.

De x em x anos, os rumores começam a rodar outra vez que Woody Allen voltou à sua grande forma, a partir de um filme particularmente inspirado - aconteceu entre 1994 e 1996 (“Balas Sobre a Broadway”, “Poderosa Afrodite” e “Toda a Gente Diz que Te Amo” de rajada), depois em 1999 (“Através da Noite”) e 2005 (“Match Point”), apenas para o que vem a seguir decepcionar significativamente. Em 2011, os rumores davam a entender que o novo “Meia-Noite em Paris”, a mais recente paragem na “tournée europeia” iniciada com “Match Point”, era o novo “regresso à grande forma” - tornou-se no seu maior êxito comercial em muitos anos (nos EUA é mesmo em quase 30 anos) e no seu filme melhor recebido desde “Match Point”. E é verdade, “Meia-Noite em Paris” é mesmo o melhor Allen desde “Match Point”. E tal como aquele remetia forçosamente para uma das últimas grandes obras-primas do cineasta (“Crimes e Escapadelas”, 1989), também o novo filme marca um regresso à leveza fantasiosa de “Toda a Gente Diz que Te Amo” dentro de uma narrativa que retoma a premissa melancólica da lendária “Rosa Púrpura do Cairo” (1985).

O tema, não por acaso, é caro a Allen: a nostalgia de uma “idade de ouro” passada, traço que sempre foi recorrente no cinema do nova-iorquino (“O Agente da Broadway”, “Os Dias da Rádio” ou “A Maldição do Escorpião de Jade” são exemplos) ou mesmo nas suas escolhas artísticas (como o jazz pré-II Guerra Mundial que ele continua a tocar todas as segundas-feiras e que compõe, desde há décadas, a exclusiva banda-sonora dos filmes).

Quem conhece os seus textos humorísticos reconhecerá em “Meia-Noite em Paris” referências a alguns deles (e nomeadamente ao “Episódio Kugelmass” onde a Madame Bovary de Flaubert se materializava na Nova Iorque contemporânea) nesta história de um americano em Paris, fascinado pelo passado mítico da cidade, que um táxi mágico transporta até aos anos 1920. É uma aplicação prática da velha máxima “dantes é que era bom”, que Allen confronta engenhosamente com a realidade para provar por A+B que não senhor, dantes era tão bom como os dias de hoje. O jogo de passados e presentes que o realizador encena com humor, com Gil Pender (Owen Wilson como o mais recente alter-ego Alleniano) a encontrar (e a pedir conselho a) Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Dali ou Picasso, é lucidamente resolvido em favor do presente, tornando “Meia-Noite em Paris” numa espécie de “adeus à inocência”, moderando a amargura recente dos últimos filmes com uma serenidade discreta e um optimismo que sugere que, afinal, tudo pode dar certo.

Comparado com a escuridão escarninha de filmes mais recentes como “O Sonho de Cassandra” ou “Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos”, “Meia-Noite em Paris” é literalmente luminoso - é o filme de um realizador que, de certo modo, acabou de fazer as pazes com o mundo e se concentra naquilo que realmente interessa, com uma elegância e um humor abertos que já não víamos em Allen há uns anitos largos. Pode-se acusar o filme de tombar no cartão-postal do turismo parisiense (e o que é a abertura do filme senão uma versão parisiense de “Manhattan”?) mas essa é também uma parte importante do engenhoso jogo de espelhos que Allen lança, com o postal a funcionar como metáfora das ilusões feitas para serem desfeitas: por trás da imagem há vida e emoção que vão muito para lá da superfície. E se, como se diz a certa altura no filme, o trabalho de um artista é “não sucumbir ao desespero”, Allen, por uma vez, recusou-se a fazê-lo. E sim, o resultado é o seu melhor filme desde “Match Point”.

Jorge Mourinha, Ípsilon


ENTREVISTA A WOODY ALLEN

Gil e Inez (Owen Wilson e Rachel McAdams) são um jovem casal americano, estão noivos e chegaram a Paris para umas férias com os pais dela. Gil é argumentista de sucesso nos EUA que está a tentar dar o salto - por enquanto sem êxito - para o seu primeiro romance. Quando chega a Paris, apaixona-se perdidamente pela cidade. Encontra ali a inspiração que lhe faltava e entusiasma-se a tal ponto que até o namoro com Inez fica em risco. Porquê? É que, quando a noite cai, Gil gosta de deixar o hotel para dar uma volta. Vai sempre sozinho. Num dos passeios, perde-se na cidade. E descobre um local mágico quando o relógio marca a meia-noite em que um velho carro passa e o leva para os loucos anos 20. Conversámos com Woody Allen no último Festival de Cannes, um dia depois da estreia mundial do filme.

Tem trabalhado muito na Europa nesta última década. Fez quatro filmes em Londres, um em Barcelona, rodou este em Paris e, tanto quanto sabemos, o seu próximo projeto vai passar-se em Roma. Como é que tem funcionado esta tournée europeia?
Bom, antes de tudo tenho de dizer que são as cidades que me convidaram. Eles fazem-me a proposta e ocupam-se da montagem financeira do filme. Depois, sim, começo a pensar se posso fazer um filme ali. Se serei capaz. Se um dia fosse convidado para filmar em Berlim, acho que faria um filme de intriga e espionagem, é essa a vibração que a cidade me traz à cabeça. Do mesmo modo, para Paris, pensei numa comédia romântica.

Você costuma dizer que detesta viajar.
Sim, mas a minha família adora. Eles gostam de vir à Europa passar férias e se eu posso fazer um filme ao mesmo tempo tanto melhor.


A Paris que vemos neste filme é uma fantasia. Sente-se Influenciado pelas suas próprias memórias da cidade?
Muito. A verdade é que as cidades onde tenho trabalhado são ou já foram locais muito importantes para mim. Detestaria tratá-las só como um pano de fundo. Paris é uma cidade mágica, jamais a poderia ver de uma forma realista. O mesmo se passa com Manhattan: vejo sempre a 'minha' Nova Iorque através de uns óculos cor de rosa. Só vejo as coisas boas. As más existem, obviamente, mas eu não as filmo. Além disso Paris é uma cidade bonita de se ver. Não sei que filme conseguiria fazer numa terriola desinteressante e industrial. Nós enviamos sempre um grupo de olheiros antes da rodagem para que eles escolham os décors. Eles trazem-me mui¬tas possibilidades para cada cena do argumento, compete-me depois escolher o local definitivo.

O que o leva a fazer o filme seguinte?
O divertimento. Para mim, o cinema é um hobby.

Também sofre crises de inspiração como as da personagem de Owen Wilson?
Às vezes aparecem, sim. A receita é sempre a mesma: sento-me no meu escritório e fico sozinho, o tempo que for preciso, até a crise passar. Eu gosto de escrever, basicamente. Nunca tive uma agenda de argumentistas. É um dos poucos defeitos que não tenho...

Como lhe surgiu a Ideia da viagem no tempo?
Veio do título: "Midnight in Paris". Começou tudo aqui. Eu estava à procura de algo interessante que se passasse à meia-noite. Queria que a personagem fosse para uma festa secreta. Depois tive a ideia do carro, um carro dos anos 20 que o levaria para esse tempo, e o leque abriu-se.

Gil vai parar a uma época em que havia uma troca de ideias abundante entre intelectuais e artistas. Gostaria de ter vivido e trabalhado nesse meio?
Nos EUA, todos nós conhecemos os anos 20 na Europa e as coisas extraordinárias que aconteceram nessa década para a arte do século XX. Estavam lá Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Buñuel, Dalí... Aquilo era um mundo de boémios que trocavam de namoradas a toda a hora e adoravam beber juntos... Eu jamais poderia trabalhar naquele meio. Definitivamente, sou muito mais classe média! Preciso de estar no meu quarto silencioso e confortável, não me sento à mesa de cafés a beber com intelectuais. À noite gosto de estar em casa a brincar com os meus filhos e ver futebol na TV.

Qual é a sua equipa?
De futebol? Os New York Giants. Em basquetebol, sou dos Knicks e em basebol dos Yankees. Todos de Nova Iorque, como é óbvio. Li muitos livros mas não o suficiente para me considerar um intelectual. Nunca fui, de modo algum. Tirando os óculos... Não me especializei em nada: nem em vinhos, nem em desporto, nem em mulheres...

Cinema à parte, não tem pelo menos uma categoria em que se considera especialista? Na música?
Bom, eu acho que sei muito, muito mesmo, sobre jazz de Nova Orleães. Mas é a exceção.


Faz tudo no cinema: realiza, produz, interpreta, ocupa-se da montagem. Controla os seus filmes do início ao fim e faz pelo menos um por ano. Quais são as vantagens disto?
A maior de todas é aceder a uma regularidade de trabalho. Para mim, tudo isso vem de uma só palavra: organização. Sou muito meticuloso no que faço. Gosto de controlar to¬dos os detalhes. É claro que respeito quem consegue trabalhar no caos e fazer coisas fantásticas mas eu não sei fazer. A minha organização, volto a dizê-lo, é muito classe média: levanto-me de manhã bem cedo, faço exercício físico, tomo o pequeno-almoço, levo os miúdos à escola e depois começo a escrever.

O seu tipo de cinema é complicado de fazer nos EUA? Mesmo para alguém com o seu estatuto?
Na América, acho que não tenho estatuto... É impossível obter financiamentos sem ter um argumento terminado e um elenco confirmado. Na Europa é muito mais fácil porque não há indústria nem sistema de estúdios. Há quem pague (na maioria das vezes, é o Estado), e quem fique feliz em fazê-lo. Eu realizo, eles pagam: é o paraíso.

Conseguiria trabalhar sem independência?
Acho que não. Sabe, nestes anos todos de carreira, eu sempre tive o final cut dos meus filmes. Nunca ninguém interferiu nos meus argumentos. Não era agora que eu ia abdicar disso. Preferiria passar a escrever peças de teatro e terminar assim os meus dias se já não pudesse fazer cinema à minha maneira. É por isso que eu trato o cinema como hobby. Quando toco clarinete, é a mesma coisa, é outro hobby. As pessoas vêm aos concertos porque viram os meus filmes. Não querem perder pitada e dizem: "vamos lá ouvir o Woody Allen." Ouvem-me e nunca mais voltam...

É nostálgico?
Sou. Mas, a nostalgia é uma armadilha. Não é um sentimento doce, pelo menos para mim. A nostalgia não significa pensar na infância, na rádio, nos rebuçados e nos livros de BD. A minha foi horrível. Ia para a escola e... nem imagina como eu a odiava. Lembro-me nessa altura de estar mortinho por crescer só para me livrar daquilo tudo.

Houve tempos melhores para si enquanto cineasta?
Não penso assim. Nenhum tempo foi melhor do que outro. Tive sempre que lutar muito para financiar os meus filmes, montá-los como queria, ter o final cut, etc. Nunca foi fácil, nem nos tempos de "Annie Hall" e "Manhattan". No cinema, estamos sempre no escuro. Não é a mesma coisa que tocar clarinete ou jogar basebol. Fazer filmes é um trabalho difícil, há sempre algo que falha. Mas se não falhasse, acho que o cinema deixava de ser uma arte. Tornava-se uma indústria de salsichas.

Disse em tempos que falhou quase todos os seus filmes. Passando por cima do exagero, não há nenhum com que se sinta plenamente satisfeito? "Annie Hall", por exemplo?
Humm... "Annie Hall", nem por isso. Mas fiquei satisfeito com "A Rosa Púrpura do Cairo". E com "Match Point". Há assim um grupo de filmes - não muitos - em que olho para trás e digo: "Oh, pá, até fiz aqui um bom trabalho."

Como é que decide que vai interpretar ou não um filme seu?
Depende dos filmes. Não tenho saudades de interpretar. Além disso, é preciso fazer a barba todas as manhãs. Uma maçada.

Faria um filme em Lisboa?
Why not? Você paga?
.
Francisco Ferreira, Expresso



Título original: Midnight in Paris
Realização e Argumento: Woody Allen
Fotografia: Johanne Debas e Darius Khondji
Montagem: Alisa Lepselter
Música: Stephane Wrembel
Interpretação: Owen Wilson, Kathy Bates, Adrien Brody, Carla Bruni, Marion Cotillard, Rachel McAdams, Michael Sheen,
Origem: EUA/Espanha
Ano:2011
Duração: 100’

Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

Reservas
cineclubefaro@gmail.com

6ªf, 20, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

No princípio do filme não sabemos nada do seu protagonista, a não ser que, nu, se desloca, obsessivamente, no interior de um apartamento, do quarto, à direita, para a casa de banho, à esquerda. Câmara fixa, sem imperativo de identificar aquele homem que circula. No caminho há um telefone com o respetivo atendedor automático e uma voz feminina, urgente, a rogar que responda. Não é claro, em cada uma dessas deslocações, o que está a acontecer; indícios de atividade sexual não permitem certezas. O que essa sequência materializa é uma rotina de abluções (matinais, noturnas?), com um desnorte, por baixo. E ficamos a saber que o filme vale a pena ser visto, porque não há, nele, a opção de contar explicadinho, para espectador perceber -, antes a vontade de dar corpo a emoções, a coisas indizíveis com o léxico que as palavras permitem, mas concretizáveis por imagens em movimento. Aliás, um dos aspetos mais exaltantes de "Vergonha" é o extraordinário rigor plástico dos planos, frequentemente trabalhando nos limites do enquadramento (senhores projecionistas, por favor, não aviltem o trabalho de Steve McQueen, ponham a imagem inteira no ecrã e não anavalhem em cima, ou de lado, seja lá a que pretexto for: é melhor que a imagem não preencha o ecrã todo do que sobrar!). Há uma beleza visível, explícita, significante, que funciona quase como uma declaração de princípios. E não me refiro apenas ao 'quadro', mas aos fatores cromáticos ("Vergonha" está sempre com cores dessaturadas, uma frieza sem abrigo), à cenografia (o interior do apartamento do protagonista, Brandon Sullivan, clean, de um bom gosto imaculado de simplicidade e requinte - aquário fora do mundo), à música (Glenn Gould a tocar Bach, absoluta perfeição que Brandon persegue porventura como forma de esquecer a sua própria fealdade interior). Até Nova lorque, vista das janelas do apartamento ou nas ruas, nos bares, é filmada com intenção inóspita.

Mas, afinal, de que fala o filme? De solidão. Brandon Sullivan, o protagonista (que Michael Fassbender interpreta com uma secura que vai fazendo crescer a angústia), é um viciado em sexo e, nessa medida, um ser humano escalavrado pela sua própria compulsão e incapacidade de, verdadeiramente, obter prazer. Preso num continuado desejo que nunca se consuma numa relação onde haja afetos, investimento pessoal, partilha, Brandon é, na realidade, um onanista, como o seu imoderado consumo de pornografia atesta - e que está só, mesmo quando faz sexo com outros.

Tudo se precipita quando a voz no atendedor de chamadas ganha corpo numa irmã também com desequilíbrios afetivos que não tem mais para onde ir e fica ali mesmo, naquela casa zen, impessoal, tentando uma boia de salvação para tentações suicidárias que não param de a empurrar para uma vontade de oblívio. E a compostura que, apesar de tudo, ia balizando a vida de Brandon começa a entontecer e a impeli-lo para o lado mais negro da existência. A parte final deste filme chega a arrepiar: o abismo é visível, a comiseração pela vítima da dependência uma constante, mas nada disso aplaina a dureza do olhar de McQueen. E é comovente como Fassbender, espantoso ator com um raro perfil de segurança e domínio do espaço de representação, se entrega à terrífica incapacidade de prazer, como se cada fibra do seu corpo carburasse em seco e a existência fosse um ciclo vicioso onde o orgasmo é difícil e o amor inadmissível.

Jorge Leitão Ramos, Expresso


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Para muitos Steve McQueen continua a ser um artista plástico que faz filmes. Depois do sucesso de Fome, estreia-se em Portugal Vergonha, um filme igualmente perturbante, com Michael Fassbender no principal papel. O JL ouviu o realizador.

Conhecemos Steve McQueen quando o Festival de Cannes, e depois o mundo, ficou atordoado com o seu filme de estreia. O artista multifacetado servira-se da greve de fome do membro do IRA Bobby Sands contra o governo de Margareth Tatcher, e do seu sofrimento na cadeia para alcançar uma forma de liberdade. Michael Fassbender usou igualmente o seu corpo escanzelado nessa extensão conceptual. Reencontrámos Steve (e Michael Fassbender) em Veneza, após recebermos um novo choque com Vergonha. Uma vez mais, a exposição física oculta um outro sentimento mais profundo. Uma vez mais Fassbender excede-se, com uma interpretação que foi a melhor, masculina, do ano que passou. E nem nomeado para os Oscars foi. Percebe-se que a deriva de um homem viciado em sexo não fosse possivelmente o melhor serão para os membros mais idosos da Academia visionarem os DVD dos candidatos. Pelo menos em família... Não faz mal, Vergonha não tem vergonha de ser assim. Já agora, lamentamos igualmente que a prestação, ainda que breve, de Carey Mulligan, naquele momento cândido em que sussurra o tema integral de New York, New York num clube noturno e nos faz chorar. Precioso. Mas vamos a Steve, Steve McQueen. Este, e não o outro.

Acha que poderia ter feito este filme com um outro ator que não o Michael Fassbender?
Não conheço assim tantos atores... Para fazer esta viagem é necessário conhecer muito bem o ator. E eu e o Michael conhecemo-nos muito bem. Temos uma paixão mútua...(risos). Até por vimos do mesmo lugar - ninguém estava interessado em nós. Acho que só ele poderia ter feito este papel.

Em 2008, em Cannes, toda gente ficou surpreendia com a chegada de um novo realizador e ator. Para si, também foi uma surpresa aquela aclamação?
Fiquei muito surpreendido porque viemos sem qualquer expectativa e ganhamos já mais de 50 prémios. E foi até por esse filme que muita gente arranjou um emprego na Irlanda. Eu fico até mais orgulhoso por isso.


Sentiu que após Fome tinha ainda algo mais para falar sobre esta outra forma de prisão pessoal? Era para si uma viagem inacabada?
Fome foi o fim de uma história. Agora virei Belfast ao contrario. Como um objeto. Qual seria oposto de uma prisão em Belfast? Pois bem, Nova Iorque! Uma Metrópolis com acesso a tudo. Seguramente, o oposto a uma cela fria e cinzenta na Irlanda do Norte. E colocar Brandon nesse ambiente foi muito importante e interessante para mim. É claro que ele tem uma dependência de sexo. Mas não quer ter qualquer contacto humano. Tudo gira em seu redor. Ao contrario de Bobby Sands, em que era tudo sobre as pessoas. Nesse sentido, acho que são ambos anti-heróis.

Apesar de opostos, são filmes com uma certa proximidade.
Sim. De um lado Bobby Sands usando seu corpo como uma arma, uma ferramenta, uma forma de libertação. E é na sua prisão que ele cria essa liberdade, deixando de comer. Agora temos Brandon, cujo excesso de liberdade acaba por o encarcerar nele próprio.

Até que ponto esta era uma história importante para si?
Era muito importante. Porque é algo que se passa agora. Há uma certa urgência. Se o cinema quer sobreviver tem de ter alguma urgência nas suas histórias. Hoje temos a televisão, a HBO, a AMC, mas o cinema também poder ser global.

É interessante a ligação que faz entre Johann Sebastian Bach e Nova Iorque. Mas também toda a sua escolha musical. Quer falar um pouco disso?
A música do Bach é muito matemática, e o Brandon é metódico. Também gosto da ideia do ritual, de todas as coisas banais que fazemos quando nos levantamos. Seguir uma pessoa com uma câmara a fazer isso é quase como tai-chi. E no bar ouvimos Tom-Tom Club e Blondie. Hoje ninguém ouve isso. Hoje ouve-se a Adele. Gostei desse sabor. Não podemos usar a música como de fosse um filme de época.


É verdade que a Carey Mulligan quase se lhe impôs para fazer este filme?
Sim, ela tinha uma cópia do guião quando nos encontramos. Falamos um pouco e dei-lhe o papel. Na hora.

A versão integral de New York, New York, que interpreta com rara beleza, é um dos melhores momentos do filme...
Eu queria que ela cantasse um tema, um standard. Mas o New York, New York não é um standard, é de 1980, escrito para o filme do Martin Scorsese. Mas ela canta-o de uma forma em que tomamos mais atenção à letra. These vagabond shoes, are melting away... Fala de alguém destituído. Para mim, é um blues. Se fosse cantado pela Bessie Smith ficaria muito melhor. Acho que é isso que o jazz faz desde o início.

É também um forte e comovente momento de comunicação com o irmão, Brandon.
Essa música resume tudo aquilo que é o Brandon. Cantar-lhe esse tema, é a melhor conversa que tem com ele. É um momento bonito, em que temos tudo. Se as pessoas não perceberem, dou-lhes o dinheiro de volta.

Como planificou as cenas de sexo? Quais foram os seus limites?
Os limites eram, obviamente, a penetração. Não estava interessado em fazer um filme porno, queria transcender o lado porno. O que eu queria era que a câmara estivesse dentro da ação. Queria que o publico estivesse ali também e se sentisse perturbado. Tivemos excelentes atrizes e o Michael.

Porquê as sequências tão longas?
As cenas de sexo têm de ser sexy. Não é só fornicar. Temos de ver a possibilidade e o falhanço. E vemo-lo falhar.

Se calhar porque hoje o sexo inunda o nosso mundo...

Mas 'no meu tempo' não era assim. As revistas pornográficas estavam sempre na prateleira de cima. E só em certas lojas. Esse era o nosso ponto de vista sobre o sexo. A uma distância considerável, pois ninguém ousava comprá-las. Hoje essa vergonha está erradicada. Em dois cliques temos tudo.

Acha que Vergonha é um filme moral?
... Deixe-me ver. É uma boa pergunta. Acho que é um filme moral. É tudo moral, mas fazemos o que queremos. Ou talvez seja mais um filme reflexivo.

O Michael Fassbender descreveu-nos o filme como um homem doente que procura uma penitência. Concorda?
Acho que muitas pessoas estão desesperadas, porque apenas querem sentir. Ele está dormente. E não sabe como sair desse estado de letargia.

Mas ao fazer um filme sobre letargia e desconexão, como evitou não o tornar também maçador?
As melhores musicas são blues. Pelo menos para mim. São tristes. They hurt so good. É a única forma de responder a essa pergunta.



Qual é para si o verdadeiro significado da palavra vergonha?
Foi algo que discuti com a Abi Morgan, a argumentista. Na nossa investigação, os tipos que fazem estas escapadas sexuais, quando terminam sentem essa onda de vergonha. Que regressa sempre. E o que fazem então para a superar? Fazem-no de novo. É um pouco como a adição a alcool ou tabaco. Mas quando encarei pela primeira vez a ideia de um viciado em sexo, ri-me com isso. Só que quando o Brandon sente que tem de ter sexo a toda a hora, já não dá vontade de rir. É um problema.

De que forma, o seu passado na arte o acabou por ajudar a fazer cinema?
Ajudou-me com a imagem, a composição. O que eu quero com este filme é que as pessoas olhem e vejam. Por vezes as pessoas olham, mas não veem.

Poderemos dizer que o seu cinema vai um pouco para além do cinema e entra no domínio da arte conceptual?
Não me interessa tanto o conceito. É limitador. Acaba por ser uma coincidência que tenha filmes apenas com uma única palavra, Fome e Vergonha. Não sei, espero que não seja visto assim. Apenas quero ser livre para experimentar coisas diferentes. O próximo filme poderá não ser bom, mas quero experimentar algo diferente.

Depois de fazer um filme na Irlanda do Norte e outro em Nova Iorque fará agora um terceiro na Grã-Bretanha?
Vou fazer, em 2013, um filme na América. Chama-se Twelve Years as a Slave, sobre um nova-iorquino que é raptado e vendido como escravo, em 1835.

Paulo Portugal, Jornal de Letras




Título original: Shame
Realização: Steve McQueen
Argumento: Steve McQueen e Abi Morgan
Fotografia: Sean Bobbitt
Montagem: Joe Walker
Música: Harry Escott
Interpretação: Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale, Mari-Ange Ramirez, Nicole Beharie
Origem: Reino Unido
Ano: 2011
Duração: 101’


Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

Reservas
cineclubefaro@gmail.com