Deste Lado da Ressurreição, Terça - Feira, 29.01.13, IPDJ



DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO, Joaquim Sapinho, Portugal, 2011, 118’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Joaquim Sapinho

Argumento: Joaquim Sapinho; Luís Araújo; Mónica Santana Baptista; Rui Alexandre Santos
Fotografia: Leonardo Simões
Montagem: Rui Alexandre Santos




Origem: Portugal
Ano: 2012
Duração 118’


SINOPSE
Rafael (Pedro Sousa, campeão júnior de surf do Guincho) é um jovem surfista perdido no mundo, desenquadrado de tudo e de todos. Com uma grande violência interior, que se reflecte no seu corpo e na maneira como surfa, busca um sentido para a sua vida. E será ali, entre a praia do Guincho, o Convento dos Capuchos e a serra de Sintra, que vai finalmente encontrar o seu lugar...
Quarta longa-metragem de Joaquim Sapinho, depois de "Corte de Cabelo (1995), "A Mulher Polícia" (2003) e "Diários da Bósnia" (2005), "Deste Lado da Ressurreição" teve a sua estreia mundial na selecção oficial do Festival de Cinema de Toronto no Canadá, na secção Visions, dedicada aos filmes que, nesse ano, contribuíram para a expansão das possibilidades poéticas do cinema. O filme foi escolhido como um dos dez melhores do ano na revista nova-iorquina "Film Comment" e teve antestreia nos EUA nas mais prestigiadas cinematecas do país: a Harvard Film Archive (Cinemateca da Universidade de Harvard) e Anthology.


TRAILER

DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES
Os média dão do surf uma imagem de riqueza, sexo e vaidade. Mas eu passei dez anos no Guincho com a comunidade surfista, e vi que os verdadeiros surfistas são pessoas que romperam com a sociedade. Não têm dinheiro. Quase não comem. Levantam-se todos os dias de madrugada para ir surfar. Ficam horas no mar, à espera das ondas, em contemplação, sozinhos no frio. Mas ao mesmo tempo, quando a onda vem, há uma violência única de entrega a uma força incontrolável da natureza. Só saem da água quando estão totalmente esgotados, destruídos. No dia seguinte fazem o mesmo. O mar do Guincho é o mais inclemente, rejeita aqueles que não têm a humildade de aceitar esta violência. Quando conheci o Pedro Sousa, campeão júnior de surf, conheci este outro lado. E um dia apercebi-me que tinham um segredo. Havia um lugar no topo da serra onde às vezes iam passar a noite. Eram as ruínas do Convento dos Capuchos. O Pedro Sousa não me sabia explicar porque se sentiam atraídos por aquele sítio. Um dia, também eu subi a serra, saltei o muro do convento, e sentei-me no claustro, preparando-me para passar ali a noite. Veio uma coluna de nevoeiro, das que vão passando no topo da montanha, que num segundo fez desaparecer o claustro, e depois o próprio convento. Na confusão das portas e das janelas escondidas, vi os monges nas suas tarefas quotidianas, abstraídos da minha presença, mas totalmente absorvidos numa oração interior. Tão rapidamente como veio, o nevoeiro levantou-se e desapareceu, levando os monges consigo. Eu sabia que o Pedro Sousa era um desses monges. Foi assim que começou o "Deste Lado da Ressurreição".

Joaquim Sapinho

 CRÍTICA


Há um casal de irmãos muito novos, perdidos um do outro, e perdidos na procura de um sentido para a vida. Há uma família quase ausente nas imagens - pouco funcional perante os atribulados desígnios da atualidade que nos esmaga no frenesi sem muito nexo e não deixa tempo para meditar, saber de nós mesmos. E há uma belíssima reflexão sobre a vida, a morte, a comunicabilidade.
Eis o centro da última obra de Joaquim Sapinho, “Deste Lado da Ressurreição”, um filme de territórios. Soberbos e definitivos territórios do espírito e da paisagem, que nos marcam a alma mais ainda do que o olhar cinematográfico. Transmite-nos uma espécie de delicada e crua exaltação, e muita dessa alquimia tem a ver com o processo como aborda os territórios onde fixa o olhar. O realizador explica: “No cinema que faço é como se eu já não escolhesse, são os sítios que me escolhem a mim, não consigo lidar com a ideia de tomar decisões prévias para fazer o filme. Os sítios é que atraem, sou testado por eles; O Guincho, o convento na serra de Sintra testam-me. E sobreviver a essa possessão é o trabalho do próprio filme.” Partir para filmar no maior despojamento, sem dinheiro, nem sequer uma planificação? “Claro que, quando ponho a câmara, estou a responder através do que vejo. E vejo a violência, uma tensão em que eu e os corpos dos atores estão a ser testados...
É complicado explicar. Como dizia Fritz Lang, são lugares de felicidade, no sentido em que há uma intensidade maior, em que me sinto exposto, frágil, e não desejo controlar a situação.”
Ouve-se e sente-se a presença tutelar do cineasta António Reis, seu mestre: “As formas falam, os planos falam, os sítios falam, e o meu trabalhar +e ouvir, olhar e saber registar”.
Estamos perante um filme espiritualmente telúrico e ao mesmo tempo de fortes sensações físicas...quase sentimos o frio da água, o vento na cara. Mais do que ‘figurantes’, os elementos da natureza são atores com dimensão esmagadora que dá justa continuidade à especificidade dos corpos das personagens principais, à deriva em busca de si próprias.
Disseram, do filme, que apresenta três ordens: a científica e do conhecimento (na escola), a da natureza e a do sagrado. Realça Sapinho: “É aqui que entronca com António [Reis], na ideia de que os espaços manifestam sistemas de viver e de saber. Ao querer trabalhar nestas três ordens é como se quisesse abordar como viver, pergunta tão bela de que estamos tão amputados agora em Portugal, parece que não temos possibilidades nem tempo para nos confrontarmos com ela!” Quando Rafael corta com a sociedade é como se pensasse que há solução, “uma redenção através da natureza, mas ela está de nós separada, é autónoma. Ele pensa depois que há uma saída, não lhe permite fazer as pazes com os outros”.
O filme fala também de solidão e, se expõe como uma chaga metafísica a consumação máxima da espiritualidade, retrata cruamente a solidão, no sentido da ‘não solidariedade’. Sapinho sabe disso: “A nossa sociedade, ao proibir a solidão, ao obrigar-nos a estarmos sempre em comunicação, impõe uma espécie de destruição da vida interior que leva a uma forma de estar com os outros que é falsa”. No filme assiste-se a um tempo de solidão perante a morte: “Acho extraordinário que a sociedade de consumo tenha colocado as pessoas das novas gerações nuas, diante do nada. Já não é necessário chegar a uma idade avançada para o confronto com a morte. Os adolescentes de hoje estão já diante da morte, não há nenhum sentido nesta sociedade de consumo. É como se tais perguntas fossem também postas demasiado cedo em relação à capacidade de se responder.” A adolescência devia ser um momento de esperança, de expansão em relação à vida, um lugar de experimentação entusiasmada. “Mas já foi tudo vivido nas imagens, então nada tem valor. No filme, os protagonistas embatem contra a realidade, explodem com ela. Vivemos isso, e eu quis testemunhá-lo.” A necessidade de comunicar ininterruptamente provoca o pânico da solidão, quando esta não é um mal também pode ser uma forma acertada de respirar. “Dá-nos liberdade”, diz Sapinho.
As frases são esparsas entre as pessoas, quase murmúrios, mas estão muito presentes os sons da natureza. São sons vividos pelo realizador, mentalmente trabalhados e assumidos. São frequentemente rudes, mas nem mesmo os da tempestade que desaba sobre o corpo mortificado do noviço Rafael é tão agressivo ou se impõe tanto quanto o som do látego contra a carne penitente, num sofrimento apenas ouvido, mal desvendado pelas sombras. “Tem que ver com o facto de o som, para mim, ser uma banda como a da imagem. Eu diria que são duas bandas de imagem. O som também invoca imagens. É como se eu as pusesse, ao sobrepô-las, em conflito. Como se, numa mise en scène, trouxesse para primeiro plano certos sons, por literal escolha de filmagem”.
Este é um filme em que o espectador é levado a ouvi-lo: “Queria que as pessoas dissessem ‘ouvi o mar’ como se estivessem dentro do mar. Ou, ainda mais perturbador – por simultânea razão de pudor e de dificuldade – ouvir o que é respirar ou sentir a corda cortando a pele numa mortificação. Destruo e reconstruo o som para que fique numa espécie de tridimensão. Porque filmar uma pessoa é filmar a presença, que pode estar mais visível na sua respiração ou num murmúrio. Quando filmo, procuro saber qual é a maneira que possibilita tornar mais presente a pessoa ou uma situação, e muitas vezes o som tem de vir para primeiro plano.
António Loja Neves, Expresso, 17/11/12


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