FAUSTO, Aleksandr Sokurov, 2011 | 11.06.13 | Auditório do IPDJ, 21:30



DIA 11 DE JUNHO
FAUSTO, Aleksandr Sokurov, Rússia, 2011, 140’

FICHA TÉCNICA
Título Original: Faust
Realização: Aleksandr Sokurov
Argumento: Aleksandr Sokurov, Marina Koreneva
Director de Fotografia: Bruno Delbonnel
Montagem: Jörg Hauschild
Interpretação: Johannes Zeiler , Anton Adasinsky , Isolda Dychauk , Georg Friedrich
Origem: Rússia
Ano: 2011
Duração : 134’


SINOPSE
Livremente inspirado na obra de Goethe,  Aleksandr Sokurov reinterpreta radicalmente o mito. Fausto é um pensador, um rebelde e um pioneiro, mas também um homem anónimo feito de carne e sangue, conduzido pela luxúria, a ganância e os instintos.
Fausto (Johannes Zeiler) é um homem sábio que se sente frustrado com os limites do conhecimento humano ; as suas experiências para transformar metais em ouro falham sucessivamente, questiona a natureza da alma humana, e está apaixonado por Margarete (Isolda Dychauk), uma mulher que não mostra o mínimo interesse por ele.
Enquanto deambula por uma curiosa casa de penhores, Fausto encontra um agiota desagradável mas falador (Anton Adasinskiy) que lhe propõe o amor de Margarete em troca de um documento assinado onde o cientista se compromete a ceder a sua alma…



CRÍTICA:
Depois de “Moloch” (1999), “Taurus” (2000) e “O Sol” (2005), numa viagem atormentada por alguns dos protagonistas do poder no século XX (Hitler, Lenine e o imperador Hirohito), nada mais natural do que ver Aleksandr Sokurov a abordar a mais acabada das personagens dispostas a vender a alma por algo que se avalia inatingível. Neste caso, todavia, o objetivo não parece ter desmesura que baste, não é um império milenar, nem a transformação radical da rota dos humanos, nem a divindade. Fausto vende a sua alma por uma noite com Margarida, que tem o rosto das Madonnas de Botticelli, mas que não parece impossível de seduzir pelo belo  cientista que procura a alma no âmago dos cadáveres que disseca, Talvez Sokurov nos queira dizer que o gesto de ceder aos torneios do demónio não é uma questão do que se terá em troca, mas um capricho cuja valia está dentro de cada um dos que estão dispostos a mercadejar o que não tem preço.
Como sempre neste cineasta embaído pelas manipulações das imagens e dos sons, “Fausto”, que venceu o Leão de Ouro de Veneza 2011, é um filme visualmente hipnótico em que algumas das representações icónicas são deveras penetrantes. É o caso do satânico Mefistófeles, que nunca é designado por esse nome, mas a quem é atribuída a profissão de  prestamista, figurado como uma espécie de larva sebosa e assexuada (a sequência dos banhos, em que ele assim se revela, é um dos momentos mais fortes do filme). Ou a figuração da união de amor em precipício de morte que as artes maléficas do tentador propiciam, conúbio perfeito entre o lirismo mais exacerbado e um peso funéreo irremível. Ou, ainda, certos momentos de contemplação dos rostos, transfigurados pela luz e pelos matizes de cor que o pincel fílmico do realizador concretiza (mas, atenção, a direção de fotografia é assinada pelo grande Bruno Délbonnel, cujos méritos já vimos bem materializados em “O Fabuloso Destino de Amélie” ou “Sombras da Escuridão”). Ou, melhor do que tudo, todo o espaço da longa sequência final em que Fausto já está no tártaro, mas ainda não se deu conta, entusiasmado por ir mais além no conhecimento. É filmado na fronteira gélida de um glaciar na Islândia, a par com uma caldeira vulcânica, em montes escarvados, um território surpreendente se pensarmos nas tradicionais figurações dos infernos. Mas nada espantoso se pensarmos no que significa, na tradição judaico-cristã, esse lugar de danação: o afastamento absoluto do rosto de Deus, ou seja, a ausência do amor — em suma, a solidão.
“Fausto” é um filme que se vê como quem se deixa possuir pela embriaguez — ou não se vê de todo. Por vezes há matérias cuja decifração é indiscernível (porquê a exuberância do guarda-roupa da mulher do prestamista?) e não há que procurar um encadeamento de sentido orientado. Mas a quem se deixar penetrar pelo encantamento está prometida uma ímpar jornada. 
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 13/4/13




ALEKSANDR SOKUROV EM ENTREVISTA
Trabalhou a partir de Goethe? Qual é a sua distância em relação ao mito de origem?
A distância é grande, tal como era a que existia entre a lenda e aquilo que Goethe escreveu. O FAUSTO que me serviu de base é acima de tudo a obra de arte inventada e escrita por Goethe; a certa altura o projecto chamava-se mesmo « Goethe e Thomas Mann ». Goethe sentia-se muito livre relativamente ao
mito. Penso que ele não era um homem do século XVIII. Era, talvez possamos dizer, um homem do século XXIII. A sua ligação com a cultura medieval, que viu nascer a lenda, é muito discutível. Mas essa ligação existe, e sobretudo através da linguagem: nas particularidades da língua alemã, na sua brutalidade, no seu dramatismo, nos seus aspectos aguçados.
Mergulha-se na obra de Goethe em luta com uma certa rigidez antiquada da língua. É necessário ter-se consciência do tempo que foi necessário para o autor desenvolver as suas duas partes: quase cinquenta anos. Raramente as obras literárias surgem rapidamente. Goethe serviu-se do tempo para ir além da lenda e estabeleceu fundações para um novo mito. Quando se é confrontado verdadeiramente com problemas climáticos, quando a vida das pessoas se torna cada vez mais complicada com a evolução da crise económica, relê-se FAUSTO.
Qual foi o ponto de partida para trabalhar esta adaptação?
Eu crio uma obra visual, a sua distância com a obra literária é um grande problema. Um dos problemas principais é a questão dos detalhes. Goethe tem a capacidade única de não mencionar os detalhes: não sabemos nada sobre a vida de FAUSTO. E no entanto emerge uma personagem incrível, gigantesca, uma espécie de monólito. Porquê? Porque ele está sempre a falar. Nos espectáculos adaptados desta obra, em todos os teatros do mundo, a personagem esgota o espectador através da sua verbosidade, pelo frenesi de frases acutilantes…
Imaginem estes encadeamentos de fórmulas filosóficas ditas com as graves entoações da língua alemã: o espectador não sabe mais onde se esconder. E sai do espectáculo sem saber quem é FAUSTO. Essa foi a minha tarefa principal: tentar criar este homem, a minha versão.
Dediquei-me a tentar aprofundar a sua biografia. É difícil, tendo em conta que se trata de uma personagem mitológica. Mas um cineasta precisa disso, porque vai mostrar um ser humano no ecrã. É um grande problema saber como ele é, qual a sua personalidade. Temos de procurar o seu pai e a sua mãe, sem os quais não é possível acreditar. Isso não interessava a Goethe; não estava interessado nas suas pernas, apenas nos seus pensamentos eruditos, na sua cabeça voadora. Mas o que há abaixo dessa cabeça? Como é que ele se veste? O que come? Esse é o problema: como passar do mito à vida.
Como chegou até à vida desta personagem?
Recusei concentrar-me em pensamentos filosóficos para que não se tornasse numa confusão. Escolhemos mostrar uma história humana, de forma a vermos um homem no ecrã. E passa-se numa época incerta. FAUSTO ocupa um espaço social, ele tem a cabeça no lugar, uma boa educação. Porém, encontra-se numa posição difícil, humanamente. Como assim? Onde é que ele mora? Quais são os seus erros? Ele decide em consciência, mas também erra sem compreender. Até mesmo alguém com a mesma educação e inteligência de FAUSTO, um monólito, erra por falta de julgamento. O quê? FAUSTO não é capaz de avaliar uma situação? FAUSTO está errado? Como é possível? Mas é o FAUSTO! É
precisamente isto que faz a camada superficial do filme, que não pretende uma leitura completa da obra. Eu quero sobretudo que as pessoas queiram ler as obras. Ler Goethe! Eu, o realizador Sokurov, sou um pequeno homem que lança a pedra para que ela se mova para o mais longe possível. Se eu conseguir
espicaçar a curiosidade de um espectador, então já cumpri o meu papel.
Ao mesmo tempo, este filme é uma parte de uma tetralogia. Na sua dramaturgia, a sua atmosfera emocional, existem ligações que eu já tinha feito nos filmes anteriores. O actor que interpreta Hitler em Moloch, Leonid Mozgovoy, encarna o pai de FAUSTO. E na minha imaginação, tal como idealizei, sem saber se o consegui, queria que a tetralogia não fosse linear, mas antes um círculo. Neste círculo, os laços vão interligando personagens e momentos históricos muito distantes.
Como se desenrola um processo de adaptação tão delicado? O trabalho inicial sobre a história já contém as primeiras visões ou directrizes visuais?
Para mim, o filme é como uma árvore à qual deve ser permitido crescer. Quando a vemos a brotar do solo, parece-se muito pouco com a árvore em que se vai tornar. Quando nos deparamos face a um poder como o do texto do Goethe, é ainda mais difícil deixar crescer a árvore do filme, à sombra de um tal texto… É preciso ter muito cuidado.
Trabalhar numa língua estrangeira é um caso particular, porque implica encaixar o trabalho no guião literário, que se torna uma espécie de solo a arar cada vez mais para que a árvore cresça correctamente. Contei ao argumentista a minha ideia. As personagens e as grandes linhas do tema principal eram já claras para mim, tal como as acções e as emoções das personagens. O argumentista esboçou um rascunho geral de situações e diálogos, em russo. Depois comecei a adaptar tudo para alemão e no final restou muito pouco do guião inicial. Para o trabalho de um escritor, tal como para o de um actor, a distância entre línguas é grande, na atmosfera emocional, no temperamento. Os meios para exprimir o pensamento filosófico são diferente : em russo, ele toma uma tonalidade quase terna, suave. Na Rússia, somos apaixonados pela Filosofia, encaramo-la um pouco como a Música. Na Alemanha é o inverso. E isso acontece da mesma forma com o trabalho de um actor. Se um actor russo interpreta um alemão, mas em russo, será impossível recorrer à dobragem posteriormente – a natureza da dicção é muito diferente, a acentuação lógica e emocional é enfatuada em momentos diferentes.
É por isso que a tradução é uma segunda escrita, que afasta o argumento da sua primeira versão. Isto para vos explicar que essa etapa do trabalho é muito delicada. A tradução é o nascimento do próprio filme, que é filmado a partir deste segundo texto. Existem novas personagens, novas situações… E ainda durante a rodagem, constantemente, surgem alterações. Porque o sentido que está expresso nas palavras é também interpretado de outras formas, pela simples presença dos actores, pelos objectos, pela luz. E não podemos sobrecarregar o espectador. Por isso eu lanço os diálogos e as cenas suavemente.
Cyril Béghin, Cahiers du Cinéma nº 663

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