EXTENSÃO INDIE LISBOA 14
11º FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA INDEPENDENTE



TEATRO DAS FIGURAS 











29 MAIO

19H00
AMOR, PLÁSTICO E BARULHO
Renata Pinheiro , Brasil, 2013, 83′

22H00
MATAR A UN HOMBRE
Alejandro Fernández Almendras, Chile/França, 2014, 82′

30 DE MAIO

10H30 - Sessão Escolar
INDIE JÚNIOR  


19H00

CURTAS PREMIADAS
AS FIGURAS GRAVADAS NA FACA COM SEIVA DAS BANANEIRAS, Joana Pimenta, Portugal/EUA, 2014, 16’

SINFONIA N.º 42, Réka Bucsi, Hungria, 2013, 10’

IMPLAUSIBLE THINGS, Rita Macedo, Alemanha/Portugal, 2014, 29’

22H00
O NOVO TESTAMENTO DE JESUS CRISTO SEGUNDO JOÃO, Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Portugal, 2013, 129’

O CONGRESSO | 27 DE MAIO | IPDJ | 21h:30


DIA 27 MAIO | 21h30 | IPDJ

O CONGRESSO
Ari Folman
Israel/Alemanha/França/Bélgica, 2013, 122’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Ari Folman 
Argumento: Ari Folman , adaptação do livro "The Futurological Congress“ de Stanislaw Lem 
Montagem: Nili Feller 
Fotografia: Michal Englert  Música: Max Richter 
Interpretação: Robin Wright, Harvey Keitel, Jon Hamm, Paul Glamatti


CRÍTICA
Há uma cena absolutamente incrível em O Congresso e que tem, simultaneamente, tudo e nada a ver com o tema principal desta fábula futurista (será tão futurista assim?). Forçada a render-se perante as evidências de uma sociedade e indústria que não lhe presta mais atenção - foi obrigada a chegar-se para o lado e dar espaço a qualquer outra nova estrela - temos uma Robin Wright a fazer de (ser?) Robin Wright. A dar tudo de si enquanto actriz e pessoa, a entregar a sua alma, só com a sua expressão facial, a entregar-se perante um scanner majestosamente impressionante, repleto de luzes e sons, a retirar a máscara da máscara. A deixar-se ser. Uma Robin Wright que cometeu decisões erradas na vida (não cometemos todos?) e a enfrentar as suas consequências. Uma actriz a fazer de actriz, mas estarrecedoramente tão despida, a soar tão frágil e tão verdadeira, que nos fazer querer também que ela pudesse entregar-se assim em todos os filmes (e que lho permitissem mais também). E se nesta impressionante cena temos todas as desilusões da vida (dela e da nossa) ali espelhadas, na seca e crua constatação da verdade, depressa o filme vai caminhando para uma realidade (animada) virtual, curiosamente com uma semelhança acentuada com a realidade que conhecemos.
O filme, esse, é de certo modo inclassificável. É um objecto desconcertante, surreal, onírico, psicadélico e alucinado. Mas nem por isso menos desligado da nossa realidade. Um jogo de espelhos e realidades, uma espécie de Matrix em fase de pré-criação, uma constatação da facilidade (ou ser-nos-á imposto?) com que abdicamos da nossa identidade para sermos a identidade de todos ou de quem nos controla. Para sermos a identidade que querem que sejamos. Escrito nos anos 70, o livro em que este filme se baseia (Kongres futurlogiczny, Stanislaw Lem) não está assim tão distante da imagem que temos agora em pleno em século XXI. Daí que, apesar da dimensão absurda e satírica, nos consigamos relacionar tão bem com um filme que retrata o momento em que todos, enquanto seres que constituem uma sociedade, nos deixamos (re)criar por um mundo, interiormente, tão decadente. Demasiado trágico e desiludo para uns, francamente honesto e real para outros. Ari Folman entrega-se pessoalmente a um projecto surpreendente e magicamente estarrecedor, tão sublimado pela estonteante banda sonora de Max Richter. O Congresso não deixará certamente ninguém indiferente, porque o filme é feito sobretudo para incomodar. A uma indústria deslumbrada pelo glamour, a uma sociedade adormecida nessa falsa luz, a um espectador que se deixa irradiar por isso. Incomoda-nos a nós porque talvez nos vejamos ali ou porque talvez nos assustemos com esta profecia globalizada. Talvez seja este o mais fascinante filme do ano.

Tiago Ramos, splitscreen-blog.blogspot.com





ENTREVISTA AO REALIZADOR
Ao fim de mais ou menos 50 minutos de projecção, O Congresso abandona a imagem real para passar a ser inteiramente animado. Nesse momento, o espectador na sala perde as referências: o que até aí era uma meditação melancólica sobre a fugacidade da fama e as mudanças tecnológicas que o mundo está a impor ao cinema como o conhecemos transforma-se numa alucinação lisérgica sobre um futuro próximo onde as regras da realidade tal como as conhecemos deixaram de ter efeito. É como se entrássemos em território desconhecido, com algo da inscrição de Dante à entrada do Inferno: abandonai toda a esperança ao atravessar este portal. Do outro lado da linha telefónica, o realizador e argumentista Ari Folman, 51 anos, diz que sim, que é isso que espera que os espectadores sintam. Depois do triunfo de Valsa com Bashir (2008), o cineasta queria afastar-se o mais possível da “verdade” e da verosimilhança daquela catarse em forma de “documentário animado” das suas próprias experiências no exército israelita, sobretudo durante o infame massacre de Sabra e Chatila em 1982.

A sua escolha? Um romance de ficção científica do escritor polaco Stanislaw Lem (1921-2006), O Congresso Futurológico, publicado em 1971, sobre um futuro onde a realidade é infinitamente mutável e subjectiva. Folman introduz na sátira de Lem sobre uma sociedade em fuga para a frente a odisseia futurista de uma actriz - Robin Wright, interpretando-se a si própria - que aceita ser “digitalizada”, nunca mais trabalhar, e deixar que o estúdio de Hollywood a que vendeu a sua imagem faça o que quiser com o seu avatar digital.
Folman fala ao PUBLICO de Telavive alguns dias antes de O Congresso chegar às salas portuguesas, um ano depois da estreia em Cannes 2013 na secção Un Certain Regard. Ao contrário de Valsa com Bashir, cujo percurso imparável começou na competição de Cannes 2008 e terminou na nomeação para Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, a invulgaridade de O Congresso tem deixado muita gente perplexa - uma primeira metade em imagem real, com um elenco que inclui ainda Harvey Keitel, Danny Huston e Paul Giamatti, e uma segunda metade em animação tradicional que recorda os midnight movies psicadélicos dos 1970s. O cineasta admite: “É como partir numa viagem estranha, numa espécie de montanha russa. Mas se aceitar entrar, tem de se recostar na cadeira e deixar-se levar, confiando que pelo final do filme vai chegar são e salvo onde quer que seja o término, e por muito longe que seja.”
O Congresso combina imagem real e animação de um modo que muito pouca gente tentou antes. E que muito pouca gente vai tentar no futuro... Foi assim tão difícil?
Tanto que ainda nem acredito que consegui fazê-lo! Foi de loucos. Trabalhar com nove estúdios de animação em sete países, conseguir o financiamento, tudo neste filme foi difícil. E não creio que mais alguém vá repetir a experiência.
Por causa dessa loucura?
A loucura é uma metáfora muito simples para exprimir a minha teimosia. O establishment cinematográfico é tão antiquado que é muito difícil conseguir fazer algo diferente. E vivemos numa época onde a forma de arte está a mudar tanto... Penso que em breve os espectadores vão deixar de ir ao cinema ver filmes de autor, porque esses filmes não vão ter acesso aos complexos multi-salas. Vamos ter de os ver em casa, e só vamos poder ir ao cinema ver os filmes de super-heróis. E os actores já podem ser inteiramente digitalizados; as instalações de digitalização que se vêem no filme são verdadeiras, nem eu pensava que já existisse algo do género quando escrevi o guião. A animação por computador é cada vez mais perfeita...
É por isso que a animação de O Congresso tem uma qualidade primitiva, antiquada, como os filmes dos irmãos Fleischer [animadores pioneiros de Hollywood, activos nas décadas de 1920 e 1930 e responsáveis pelos cartoons de Betty Boop]?
A animação é de facto uma homenagem aos irmãos Fleischer - tinham um estilo fantástico, muito artesanal. Comparados com os filmes da Disney o seu traço era muito menos certinho, o que fazia deles os “maus rapazes”, e penso que é isso que ainda hoje torna os seus cartoons muito interessantes. Procurámos canalizar os Fleischer a par dessa nostalgia do cinema antigo, mas a verdade é que, artística e financeiramente, ser-nos-ia muito difícil conseguir prever o futuro. Não tenho dinheiro para fazer sequer hoje um minuto de animação ao nível da Pixar, acha realmente que vou ser capaz de projectar o que eles vão estar a fazer daqui a 20 anos? Seria como meter um golo na própria baliza. Foi uma solução artística que se tornou numa solução de produção que jogava igualmente bem com o tema do filme.
Como Ihe surgiu a ideia de introduzir a história da actriz que vende a sua imagem nos temas do romance de Stanislaw Lem?
Quando comecei a trabalhar no projecto, fui a uma conferência que teve lugar num festival de ficção científica aqui em Telavive, que debatia o motivo pelo qual Lem tinha detestado todas as adaptações que tinham sido feitas dos seus livros – tanto o Solaris de Andrei Tarkovski (1972) como a versão de Steven Soderbergh com George Clooney (2002), e uma série de adaptações polacas [de outros livros]. Percebi que, independentemente do que fizesse com o livro, ele detestá-lo-ia. Por isso encontrava-me numa posição confortável, não tinha de lhe agradar - e senti-me à vontade para me afastar o mais possível do livro. A primeira parte também tem a ver com o tema da identidade do romance... A história da actriz tem qualquer coisa de tragédia grega, é sobre uma mulher que está a envelhecer e a quem o diabo vem propôr um pacto, vem oferecer a juventude eterna, como Dorian Gray. O representante do estúdio é o diabo, mas não diz que a matam se ela não aceitar a oferta; diz que a eliminam dos écrãs, do passado, da história. Que ela deixaria de existir. Ela assina o pacto com o diabo, mas não porque precise de dinheiro para operar o filho - isso aconteceria num filme americano, mas este não é um filme americano. EIa fá-lo porque quer ser jovem para sempre... Mais tarde, quando acabámos o filme, mostrá- mo-lo aos herdeiros de Lem. E eles acharam que era a adaptação mais fiel jamais feita de um dos seus livros, porque apesar de todas as diferenças o seu espírito estava lá.
Quando pede a uma actriz para se interpretar a si própria, está a obrigá-la a olhar-se ao espelho e entregar-se ao projecto de modo muito mais intenso do que é habitual.
 Sim, é verdade, mas o que aconteceu é interessante. Quando propus o filme à Robin, ela aceitou imediatamente. Quando lhe enviei o guião dez meses depois, estava à espera que ela pedisse alterações - mas nunca me pediu para mudar nada, e achei isso intrigante. Começámos a rodagem, tudo correu bem. Quando fomos a Cannes apresentar o filme, fizemos muitas entrevistas em conjunto, e ela passava o tempo a dizer que não tinha nada a ver com a personagem no écrã. Deixou- me usar o seu nome verdadeiro, os seus dois filmes mais conhecidos, A Princesa Prometida e Forrest Gump, e o facto de ser uma mãe solteira com dois filhos; mas fora isso a Robin Wright do filme nada tinha a ver com ela. Isso foi chocante... mas nos intervalos das entrevistas percebi que não era uma brincadeira. A mulher que estava ali ao meu lado não tinha mesmo nada a ver com a mulher que estava no écrã e que eu tinha escrito. O que vemos no ecrã é um ideal , e acho que ela tomou a atitude correcta, a fim de ser capaz de repreentar uma personagem. Foi algo muito corajoso da parte dela.
Já abordou um pouco o assunto, mas a realidade está a ultrapassar a ficção de tal modo que O Congresso pode ser entendido como uma antecipação muito assustadora do futuro...
E é! E isso já estava no livro. Quando escreveu o romance, Stanislaw Lem previu muitas coisas como o ipad, a televisão em 3D - sobretudo, previu que as drogas farmacêuticas teriam o poder de transformar as nossas emoções. Previu que sempre que vivêssemos uma crise iríamos ao médico para ele nos aviar uma receita que nos pusesse a funcionar outra vez. Previu os anti-depressivos, a reality TV e o novo sonho de ser uma estrela instantânea, de podermos ser famosos sem termos de trabalhar para isso. No fllme, há essa dimensão de se tomar uma droga para se ser quem se quiser ser; e o que eles querem mesmo é ser famosos.
Ainda se pode ser optimista num tal mundo?
Posso dizer-lhe uma coisa. A tecnofobia não levou a natureza humana a lado nenhum, e talvez um dia as pessoas leiam a sua entrevista e digam, “olhem para este palerma a falar da televisão em 3D, parece aqueles tipos que quando se inventou o cinema sonoro diziam que o cinema ia morrer.” Os meus filhos nasceram nos tempos da Playstation e estão tão à vontade com um joystick como com uma caneta. Acha que daqui a uns anos eles se vão importar que o actor no écrã seja uma versão digital e não de carne e osso?
Jorge Mourinha, Público, 14/3/14

20 de Maio | 21:30 | IPDJ - TERRA DE NINGUÉM, Salomé Lamas, 2012 ,72'

DIA 20 MAIO | 21h30 | IPDJ
TERRA DE NINGUÉM, Salomé Lamas, Portugal, 2012, 72’, M/16

SINOPSE
Paulo oferece retratos sublimados das crueldades e paradoxos do poder assim como das revoluções que o depuseram, apenas para erguer novas burocracias, novas crueldades e paradoxos. O seu trabalho como mercenário encontra-se na franja destes dois mundos.

 

FICHA TÉCNICA

Realização e argumento: Salomé Lamas
Director de fotografia: Takashi Sugimoto
Som: Bruno Moreira
Montagem: Telmo Churr
Origem:Portugal
Ano: 2012
Duração: 72'


CRÍTICA
Como numa manobra de feitiçaria, “Terra de Ninguém” faz aparecer à nossa frente um enviado das trevas da história portuguesa das últimas décadas. “Trevas” em todos os sentidos - aquilo que permanece obscuro, que não foi trazido à luz (à luz do cinema, pelo menos), mas também, como numa narrativa mitológica, “trevas” enquanto lugar de onde o mal emana. Esta conversa maniqueísta é nossa, não do filme, cuja mise en scène faz o possível por se manter neutra e por resistir a emitir qualquer comentário que ultrapasse a matéria de facto que é a presença, frente às câmaras e aos microfones, de um homem vindo dos subterrâneos da história de Portugal. Mas justamente a força do filme é essa, e é pela ausência de comentário, por não-imposição de um contexto, que a presença do homem se torna poderosamente espectral - e como “espectro” acaba o filme, singularmente desaparecido, como se, ainda em termos “mágicos”, a sua própria existência real, física, pudesse ser posta em causa e tudo não tivesse sido mais do que uma assombração.
O homem, de sessenta e tal anos, é um ex-comando. Esteve em acção na guerra colonial, onde participou em “esquadrões da morte” e cometeu execuções sumárias. Mais tarde, terminada a guerra, trabalhou como assassino a soldo, e este envolvido nos GAL, a famigerada unidade clandestina “anti-terrorista” que o Estado espanhol criou para dar caça, fora da lei, à ETA. De tudo isto o homem fala, com pormenores e descrições por vezes bastante precisos, sentado num cenário despido, em posição de absoluta frontalidade. O filme bebe-lhe as palavras e sorve-lhe os traços da fisionomia, os músculos que se mexem a cada confissão - para ele, também, o filme é um exercício confessional, e todas as considerações morais, todos os julgamentos sobre as sua acções, provém dele próprio. Para o espectador, posto no papel de ouvinte destinatário da confissão, o lugar é singularmente desconfortável - e por maioria de razão, para o espectador português, que não tem forma de se abstrair, de se pôr de fora daquela narrativa.
Pedaço de “história oral”, “Terra de Ninguém” também é uma espécie de “filme de acção”, mas onde a acção não tem imagens nem tradução visual possível - como nas trevas, nada se vê, tudo é questão de palavras e de relato. A sua sobriedade austera (apenas interrompida por um bizarríssimo número “musical”, onde se sugere que o homem, mais “fantasma” do que nunca, acabou os dias como “sem abrigo”) funciona como amplificação do poder desse relato, e é difícil imaginar que alguém lhe possa ficar indiferente.

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon

ENTREVISTA
[...] o documentário Terra de Ninguém já circula com um longo e premiado percurso desde que foi escolhido o Melhor Filme português da edição de 2012 do Doclisboa. O filme baseia-se numa sessão de entrevistas com um único personagem mas, aquilo que a princípio pode parece redutor, ganha uma enorme dimensão devido ao entrevistado em si, o ex-soldado e mercenário Paulo de Figueiredo, que terminou os seus dias como sem-abrigo, em Lisboa. Em entrevista ao C7nema, a realizadora explicou como o conheceu, falou sobre o reconhecimento que a obra tem recebido e sobre os seus novos projetos.
Terra de Ninguém traz um depoimento verdadeiramente impressionante e que soa carregado de autenticidade. Em que circunstâncias é que conheceu Paulo de Figueiredo e quando é que percebeu que queria fazer um filme com ele?
O Paulo foime apresentado pelo Miguel (Lamas), sociólogo cujo trabalho admiro e sem o qual este filme não existiria. O Paulo e o Miguel tinham uma amizade. Desde a primeira vez que ouvi falar sobre ele, o que ocorreu fora do âmbito de filmes ou do que quer que seja, que me coloquei essa questão. A partir desse momento persegui, literalmente, essa ideia.
O processo já estava avançado, mas percebi verdadeiramente que queria fazer um filme com o Paulo quando ele concordou em fazê-lo. Neste momento ele disse-me "estou a utilizarte para contar a minha história" e eu respondi: "Está certo, eu estou a utilizarte para fazer um filme".
Tornar assuntos privados em discussão pública não é algo que deva ser feito de ânimo leve. Aqueles que escrevem a história devotam demasiada atenção aos tão falados eventos escutados pelo mundo fora, ao mesmo tempo que negligenciam os períodos de silêncio.
A forma como a memória (privada) se articula com uma narrativa histórica é extremamente complexa e problemática. O trauma está fora da memória, fora da história. É irrepresentável, não memorável e, ao mesmo tempo, inesquecível. Como poderemos conhecer o trauma, ou seja, como é que a sua irrepreensibilidade pode ser representada? E não será a própria história um contentor original do trauma? O trabalho da memória e o seu processo memorial de transformação do tempo e espaço, do político, do público e do privado, da nação e da família, não será este um processo do desejo?
Como funcionou a organização das perguntas e a construção do documentário? Foi tudo pensado e planeado de antemão ou foi modificando na medida em que ouvia as declarações do Paulo de Figueiredo?
As perguntas, ou o guião possível, surgiram de uma conversa inicial com o Paulo, que serviu para testar o dispositivo, comunicar a ele as minhas intenções, de escrever um guião para a rodagem. Neste primeiro encontro foi claro o meu descompasso. E foime dito algo como "tens de ir para casa estudar (...) não tens ideia no que te estás a meter".
Depois de refletir apercebime que este era o único dispositivo possível para este filme que respeitasse o Paulo, o hipotético espectador e o processo de feitura do próprio filme.
Procurei um espaço neutro no qual nem eu nem ele tivéssemos referências. Filmar para documentário é estabelecer uma relação para ser filmada entre a câmara e dois corpos (pelo menos). Ao permitir uma entrevista, a relação de poder entre o sujeito do filme e a realização é atenuada. Ao sujeito é dada a palavra e a possibilidade de escolher como interagir com o
realizador e o espectador. Alguém irá falar e alguém irá escutar. A conversa tem lugar no presente "aqui e agora" e a ideia era que o espectador pudesse sentir aquilo que eu estava a sentir naquele momento. Se isso acontecer, o filme é bem-sucedido.
Estabeleci que a rodagem teria a duração de 5 dias, nem mais, nem menos. Estes 5 dias marcam a estrutura do filme. Uma estrutura quase literária pontuada com capítulos, virgulas e pontos. A partir do momento em que o Paulo se senta na cadeira, adquire a consciência de que será julgado, não por mim, que ousei não julgar para que este processo coubesse ao espectador. É um filme misterioso em que muitas das questões levantadas, que são maiores do que o Paulo e do que a realização. É um filme onde as expectativas da realização se encontram com as expetativas do sujeito do filme.
Como é que lidou com as questões da alta política implícitas nas declarações dele, principalmente no que se refere aos espanhóis?
A maioria das declarações do Paulo infelizmente não é estranha aos espanhóis. Por outro lado, o desconforto da sua narrativa, a forma como interroga o nosso conforto e a hipocrisia que coexiste com a suposta democracia, ou mesmo com os discursos que à sombra da democracia se constroem é, no mínimo, desconcertante.
Consta que Paulo de Figueiredo dedicouse a uma instituição de SemAbrigo (GIMAE) e obteve uma espécie de redenção do seu passado. Alguma vez pensou em explorar este outro lado no filme?
Bom, isso foi como escreveu Friedrich Nietzsche em "Assim Falava Zaratustra": "Redimir os passados e transformar tudo, 'foi' num 'assim o quis': só isto é redenção para mim."
Sim, é certo, mas se "obteve uma espécie de redenção do seu passado" é uma questão para o Paulo e para aqueles que o acompanharam. O filme abre precisamente com a questão: "O que achas que estamos a fazer aqui?", ao que Paulo responde: "Quis contar a história da minha vida e a partir dai cada um que pense o que quiser".
Terra de Ninguém aborda a complexidade de Paulo e não é possível afirmar com clareza que o filme siga um caminho e não o outro (independentemente do que estes possam ser e do que se possa dizer sobre o filme). Na cena final, de exterior, que poderia ser o início de um outro filme, é visível o companheirismo entre Paulo, Chiquinho e Alcides (os dois últimos, africanos todos eles sem-abrigo).
Este momento reequaciona e desconstrói toda a narrativa escutada anteriormente. Nunca pensei incluir a GIMAE (seria escolher um enquadramento institucional para alguém que recusava ser enquadrado) – pensei, sim, em incluir um amigo próximo de Paulo, alguém que nunca se preocupou com questões de identidade. Depois as coisas não seguiram esse caminho.
O seu trabalho foi escolhido o melhor filme português do Doc Lisboa no ano passado, passou pelo Fórum do Festival de Berlim e pelo Cinéma du Réel, entre outros. Alguma vez pensou que o seu trabalho iria ter essa repercussão? Que expetativas tem para estreia comercial de Terra de Ninguém depois do prémio no DocLisboa?
Não e sim. Não tenho expetativas. Os filmes que fazemos são para serem vistos. A repercussão que os filmes têm ou não infelizmente nem sempre depende unicamente destes. Tentámos fazer um filme que coloca questões e que, para tal, procura um espectador ativo.
Está a trabalhar em novos projetos?
Acabei de realizar uma curtametragem, Teatrum Orbis Terrarum, que estreou recentemente no DocLisboa e no Festival de Roma (secção Cinema XXI), projeto que teve também uma versão em instalação apresentada na Sala Polivalente do Museu Nacional de Arte Contemporânea – integrada na programação do Festival Temps d'Image.
Encontrome neste momento a desenvolver uma docu-ficção para rodar no Peru com a produção de O Som e a Fúria. Neste momento o projeto encontrase comprometido devido à situação que se vive no setor audiovisual, arriscando uma estratégia de coprodução internacional.


DIA 13 MAIO
ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS
Joaquim Leitão, Portugal, 2005, 192’, M/12

SINOPSE
Portugal, 1944. Num país oprimido pela ditadura, há quem resista e se organize para mobilizar o povo para a luta pelo pão e pela liberdade. Mesmo que isso lhe possa custar a prisão, torturas, ou até a vida. Pessoas como Vaz, Ramos, António e Paula militantes e funcionários do Partido Comunista, que desenvolvem a sua acção na clandestinidade, reorganizando o Partido nas zonas dos arredores de Lisboa e do ribatejo, ao mesmo tempo que preparam uma grande jornada de luta, com greves e marchas contra a fome.


FICHA TÉCNICA
Realização: Joaquim Leitão
Argumento: adaptado da obra homónima de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal), Luís Filipe Rocha
Montagem: Pedro Ribeiro
Interpretação: Gonçalo Waddington, Paulo Pires, Lonor Seixas, Marco D´Almeida
Origem: Portugal
Ano: 2005

Duração: 192’

Crítica
Até Amanhã, Camaradas, CALMA, CUIDADO E PONTUALIDADE
Factualmente é o maior filme que Joaquim Leitão já fez, mas provavelmente também será o melhor.
A palavra austeridade está contaminada pelo seu atual contexto bárbaro, que estreita o seu significado e constrange o uso. Ao ponto de que se justamente a usarmos para falar de um estilo arquitetónico ou da clandestinidade comunista durante a ditadura do estado novo, arriscamo-nos a ser mal entendidos. Mas não deixemos que a austeridade que nos assola, e que já nos levou tanta coisa, também nos furte as possibilidades de emprego da própria palavra. Tudo isto para chegar a Até Amanhã, Camaradas, que não é um filme austero, pelo contrário, é do tempo em que as vacas davam leite gordo, mas que usa boas ferramentas cinematográficas para retratar a vida austera dos militantes comunistas na clandestinidade, partindo do livro homónimo de Manuel Tiago, ou seja Álvaro Cunhal.
O projeto de Joaquim Leitão, provavelmente o mais importante em que já se envolveu, teve uma sequência contrária à habitual. Juntar apoios de cinema e televisão é prática vulgar cá no burgo, até Raul Ruiz o fez com Os Mistérios de Lisboa. Aproveita-se o material e a equipa e fazem-se duas versões: uma muito longa, partida em episódios, para mostrar na televisão; outra mais curta própria para as salas de cinema. Só que, por uma questão de lógica e de contrato, os filmes costumam estrear primeiro nas salas e só mais tarde é exibida a versão televisiva. Com Até Amanhã, Camaradas passou-se exatamente o contrário. A série, de quatro episódios de 90 minutos, estreou-se na SIC, em 2005, com sucesso e aplauso. E só oito anos depois chega às salas de cinema a versão cortada para metade (ainda assim são três horas de filme), coincidindo com a celebração do centenário de nascimento de Álvaro Cunhal. O tempo passado é mostra das atribulações recorrentes do cinema português (ainda há boas longas metragens por estrear, como Guerra Civil, de Pedro Caldas), mas em termos de visibilidade até tem o seu lado positivo. Com a distância perde-se a necessidade de comparar as versões e é mais fácil olhar para o filme por si só como um objeto autónomo.
E que filme é este? Factualmente é o maior filme que Joaquim Leitão já fez, mas provavelmente também será o melhor. O que não é difícil de asseverar comparando com as obras recentes, menores e por vezes confrangedoras, de um realizador de quem muito se esperava para o cinema português. Mas mesmo olhando mais para trás, pode dizer-se que Até Amanhã, Camaradas tem meios, intenção e uma grandiosidade que os primeiros e esmerados filmes do autor não poderiam alcançar. Sem correr riscos desnecessários, a adaptação é de grande qualidade, conciliando as qualidades de objeto cinematográfico e documento histórico. Conta com uma boa fotografia, que ganha relevo no cinema, bons atores e diálogos, uma construção de argumento empolgante. As personagens são fortes em todas as suas facetas, ajudadas por boas interpretações de Gonçalo Waddington, Cândido Ferreira, Leonor Seixas, Paulo Pires, Marco D'Almeida, Adriano Luz, Carla Chambel, Ivo Ferreira. E tem uma das melhores cenas de não-sexo do cinema português.
O filme é rico em detalhes. Tal como a Manuel Tiago, interessou a Joaquim Leitão os pormenores quotidianos, os indivíduos por trás das grandes lutas. Indivíduos também com as suas questões comezinhas, os seus problemas sentimentais, e as dificuldades quotidianas de viver num risco. Não é deixada de fora a questão do machismo no seio do PCP. E a austeridade. A austeridade enquanto estratégia de sobrevivência e de luta. Austeridade no sentido de disciplina, organização e espírito de sacrifício. Calma, cuidado e pontualidade, como se diz no filme. E uma convicção ideológica que tornou estes homens e mulheres em verdadeiros heróis. A austeridade do PCP serviu, ao tempo, entre outras coisas para evitar a austeridade em que vivemos agora. Em Até Amanhã, Camaradas, através da história de uma pequena batalha, adivinhamos a guerra.
Manuel Halpern, visao.sapo.pt/

RESISTÊNCIA E RESILIÊNCIA - 6 DE MAIO, IPDJ, 21:30

GUERRA OU PAZ
Rui Simões, Portugal, 2014, 97', M/12


FICHA TÉCNICA
Realização | Rui Simões
Direcção de Fotografia | Marta Pessoa
Som | Paulo Cerveira
Montagem | Márcia Costa
Direcção de Produção | Jacinta Barros
Produtores | Jacinta Barros E Rui Simões
Produção | Real Ficção
Origem | Portugal
Ano | 2014
Duração | 97’


SINOPSE
Entre 1961 e 1974, 100.000 jovens portugueses partiram para a guerra nas ex-colónias. No mesmo período, outros 100.000, saíram de Portugal para não fazer essa mesma guerra.
Em relação aos que fizeram a guerra já muito foi dito, escrito, filmado. Em relação aos outros, não existe nada, é uma espécie de assunto tabu na nossa sociedade.
Que papel tiveram esses homens que “fugiram à guerra” na construção do país que somos hoje? Que percursos fizeram? De que forma resistiram?
Esta é a história que GUERRA OU PAZ pretende contar: a dos jovens que se recusaram a participar numa guerra que não sentiam como sua, sem pôr em questão o seu amor à Pátria. Se há a figura do Soldado Desconhecido, este filme pretende retratar esse outro Homem Desconhecido que recusou ser soldado.


TRAILER

CRÍTICA
Este era um filme que Rui Simões há muito queria fazer. "Este é um assunto de que ninguém fala. Fala-se muitos dos traumas de quem fez a guerra, e com razão, mas ninguém fala daqueles que não quiseram fazer a guerra. Mas já era tempo de falar deles. E se algum cineasta o pode fazer sou eu, porque eu sou testemunha viva da história."
Queria contar a história dos 100 mil jovens desertores ou refractários. Os motivos porque decidiram fugir do país. Como o fizeram. Como viveram no exílio - em Paris, Bruxelas, Frankfurt, noutras cidades. Como voltaram. "A certa altura achei que devia dar a cara e contar a minha história. Achei que me devia colocar em pé de igualdade com os outros entrevistados. A minha história não é importante, não tem nada de especial. Mas representa muitas histórias. Porque eu conheci em Paris e em Bruxelas muitas pessoas iguais a mim."
Além da história de Rui Simões, que saiu de Portugal em 1966 e regressou após o 25 de abril de 1974, o filme conta as histórias do cartoonista Vasco (um dos primeiros a ir para Paris), do escritor e professor universitário Manuel dos Santos Lima (que desertou do exército português para criar o braço armado do MPLA), do historiador e arqueólogo Cláudio Torres e a sua mulher Manuela (que deixaram Portugal num barco frágil, numa aventura que quase dava um filme autónomo), do sociólogo João Freire (que desertou da marinha), do músico Luís Cília (que continuou a sua carreira musical em França), do jornalista António Setas (que cresceu dividido entre Angola e Portugal), do escritor angolano Arlindo Barbeitos (para quem a guerra era impossível: "Eu não queria lutar contra o meu próprio povo"), do diretor do grupo de teatro Elinga, José Mena Abrantes. E ainda, à margem destas todas, a história da jornalista Myriam Zaluar, que nasceu em França, onde os pais estavam exilados, e que faz ponte para o presente e para as guerras que os jovens têm de enfrentar nos dias de hoje.
Cada história é diferente. Há portugueses e angolanos. Há refractários e desertores. Houve quem fizesse a guerra do outro lado e quem nunca tenha pegado numa arma. Em todos a consciência de que esta era "uma guerra injusta". Em todos uma consciência política. E também o medo, de que não se fala, mas que existia, reconhece o realizador.
Rui Simões recorda como viu os amigos que regressaram da guerra transformados. A falarem da morte. A mostrarem fotografias com os seus troféus. "Eu não queria ficar assim. Eu não queria matar ninguém. Claro que há medo. Medo não só das mazelas físicas mas medo de nos transformarmos, de deixarmos de ser quem somos."