CINEMABRASIL: TROPICÁLIA DE MARCELO MACHADO, 30 SETEMBRO, 21H30, IPDJ


30 DE SETEMBRO || 21H30 || IPDJ

TROPICÁLIA
Marcelo Machado, Brasil/EUA/Reino Unido, 2012, 87’, M/12

NOTA DO REALIZADOR
Mergulhei completamente nesse período, dando prioridade, sempre que possível, àqueles que realmente fotografaram, filmaram e gravaram em 1967, 1968 e 1969. Sempre tive a impressão que fazer documentários gera mais material do que aquele que é realmente usado. Por isso, fui à procura de entrevistas sobre o Tropicalismo feitas por outros realizadores, tentando encontrar material que nunca tivesse sido visto. Juntei o melhor desse material, de forma cronológica, e escolhi alguns excertos que mostrei para os próprios tropicalistas disponíveis para comentar. A seguir gravei o que tinham a dizer. No espírito do canibalismo cultural, comi isso tudo e estou a retribuir com esta colagem onde o interesse
principal é a música e as canções são o foco de atenção. É, também, um filme para cantar em coro.
Marcelo Machado

FICHA TÉCNICA
Realização: Marcelo Machado
Argumento: Vaughn Glover, Marcelo Machado, Di Moretti                     
Fotografia: Eduardo Piagge
Montagem: Oswaldo Santana
Supervisão Musical: Alexandre Kassin.
Com: Gilberto Gil, Rita Lee, Caetano Veloso, Tom Zé
Origem: Brasil/EUA/Reino Unido
Ano: 2012
Duração: 87’

FESTIVAIS
Doclisboa 2012 - Selecção Oficial


CRÍTICA
Um documentário inteligente, pouco convencional, sobre um movimento que se recusou a encaixar em gavetas.
Dificilmente um documentário “convencional”, de “cabeças falantes”, conseguiria fazer justiça ao movimento tropicalista que marcou indelevelmente a música popular brasileira - e, por extensão, a cultura popular brasileira [...] está, então, em trabalhar essa explosão criativa encimada por Caetano Veloso e Gilberto Gil na música ou Hélio Oiticica nas artes plásticas como se fosse um mosaico em constante desenvolvimento.
Machado registou depoimentos contemporâneos dos principais tropicalistas (Caetano, Gil, Tom Zé, Rita Lee, Rogério Duprat...) mas, durante a maior parte do filme, mantém-os apenas em voz off, sonorizando um trabalho extraordinário de pesquisa de imagens de arquivo e pós-produção visual, como um comentário “a posteriori” - o presente a olhar para o passado, a contar a história de um “sonho lindo que acabou” mas que, em vez de lamentar o seu fim, celebra o seu fervilhar. Verdadeiro happening visual onde até imagens de arquivo do Zip Zip (registadas aquando da passagem de Caetano e Gil por Lisboa em direcção ao exílio britânico) surgem, Tropicália traduz de modo notável a explosão de ideias, imagens e experiências numa “panela de pressão” que se pretendia retrato à la minuta das contradições e potencialidades de um país a encontrar ainda o seu caminho. Ao fazê-lo com esta inteligência formal, evita cair na tendência do “especial televisivo” mais ou menos esquemático; a textura das imagens deixa de ser um simples efeito visual ou uma afectação estilística para se tornar numa aproximação contemporânea a um movimento que se recusou a ficar encerrado em gavetas. 
[...] o que interessa é que este é o perfeito ponto de partida audiovisual para compreender o Tropicalismo.
Jorge Mourinha, www.publico.pt/




ENTREVISTA A MARCELO MACHADO
O maior cinema da capital, o São Jorge, estava quase lotado para a primeira sessão de Tropicália, de Marcelo Machado, no Doclisboa. Numa pequena escala, repete o sucesso que o filme vem alcançando no Brasil.
O filme revive, através de documentos visuais e entrevistas, um dos momentos mais marcantes da cultura brasileira contemporânea, com especial incidência na música e nos anos de 1967, 1968, 1969 – quando o recrudescimento da repressão e da ditadura pôs vários dos seus líderes na prisão e no exílio. Com o sucesso da iniciativa, surge no horizonte a ideia para uma biografia de Heitor Villa-Lobos, o maior nome da música clássica brasileira. Para o público português, além de trazer nomes conhecidos da música brasileira, traz uma verdadeira relíquia logo na sua abertura: um extrato do programa Zip Zip, que Raul Solnado e Carlos Cruz apresentavam em direto na RTP, em 1970.
O filme começa com um jornalista a perguntar ao Caetano o que havia sido a Tropicália… Acha que no final do filme se chegou a alguma definição?
Não. Não acho que explique alguma coisa com esse filme (risos). Eu acho que esclareço algumas coisas, dou elementos para as pessoas tentarem compreender, para eu mesmo tentar entender. Mas a ideia da Tropicália é um pouco confusa, muitas vezes mistificada. Nós temos no Brasil algumas ideias, como o conceito de antropofagia e de que a mistura étnica, racial, o sincretismo religioso, de que todas essas misturas nos beneficiam. O caldo da cultura do Brasil é essa mistura. O Jorge Mautner fala em “amálgama”, ele gosta de usar essa palavra – “alquímica”, no sentido de gerar um novo e precioso metal. 
 Existem vários momentos em que os brasileiros, pensando um pouco na forma como a sua sociedade foi construída, acabam valorizando a mistura como elemento formador. Ali na Tropicália há de novo a crença de que você tem que se abrir “para fora”, não só para dentro, tem que estar receptivo às influências internacionais, ao desenvolvimento tecnológico. 
O grupo de Caetano e Gil era muito aberto, eles estavam muito interessados no pop e no rock, na guitarra elétrica – como uma expressão da cultura jovem contemporânea, daquele tempo. Então, os músicos mais tradicionais, da esquerda ortodoxa brasileira, eram puritanos em relação ao violão – quando este instrumento também veio da península Ibérica, chegou para nós de fora algum dia. Parece até ingénuo falar isso hoje, mas naquele tempo fez-se até passeatas contra as guitarras elétricas! Como se elas fossem ferramentas do imperialismo americano. 
Sobre isso o Caetano tem uma forma de pensar que eu acho inteligente – que é sim, você deve lutar contra as formas de imperialismo. Mas assumir um antiamericanismo radical, querer generalizar, dizer que estes Estados Unidos que invadiram o Iraque são uma coisa só e que não têm uma influência positiva em muitos aspetos da sociedade e no mundo contemporâneo, é uma forma muito limitada e maniqueísta de entender a realidade. 
E principalmente que o Brasil não era tão assim “o certo e o errado”. É um país que apresentava e continua a apresentar muitas contradições. Por isso a leitura que se faz da realidade é algo complexo, não é simples. Então acho que eles tinham essa complexidade. Era muito interessante essa posição dos artistas.
A nível de produção, teve muitas dificuldades? Em relação aos artistas entrevistados, por exemplo…

Tudo isso aconteceu há mais de 40 anos atrás… Essa história já foi muito contada – por jornais e revistas, nas universidades, com muitas teses académicas, e nos programas de televisão. O que eu percebi que não existia era um filme, principalmente algo que pudesse recuperar tudo o que fosse possível a nível de material filmado e gravado naquele momento. 
 Mas quando eu comecei os artistas estavam muito cansados de falar desse assunto. Eles não tiveram boa vontade para falar comigo no início. O Caetano Veloso foi o único que desde o início se abriu até para uma conversa de nível pessoal, para entender o projeto, ver o que eu queria fazer. Ele disse: Olha, veja bem, você não vai encontrar muito material deste período. Muita coisa foi apagada, mal guardada ou não foi documentada. É uma deficiência que nós temos no Brasil em relação à toda a nossa memória, em todos os ramos artísticos. Cuidamos muito mal da nossa memória. O filme é um esforço neste sentido. 
Aquilo do Glauber Rocha é uma relíquia…
Sim, o Glauber, o Oiticica (artista plástico, também muito influente no movimento tropicalista)… Então, quando eu comecei eles não queriam falar do assunto. Mas isso foi bom para mim porque me obrigou a usar a pesquisa de arquivos, a escolher o trabalho com os acervos como a principal ferramenta. Porque se eu quisesse basear a minha estratégia como documentarista em entrevistas eu teria desistido logo no começo. Realmente não receberam muito bem a ideia. Eu me dediquei muito à pesquisa de arquivo e isso foi muito bom, porque me deu conhecimento sobre o material. Aliás, foi com aquilo que eu recolhi que consegui atrair os artistas para dar depoimentos, pois acabei encontrando material que eles não conheciam. 
O material do Zip Zip, por exemplo. Você tem que imaginar que eles estavam indo para Londres, exilados. Então passaram aqui por Lisboa e foram para a televisão, que era em direto. Como é óbvio, se estavam ali não estavam em casa assistindo o programa. Então eles nunca o tinham visto. Quando fui lhes mostrar disse quero mostrar para vocês material que vocês nunca viram. Isso foi o sucesso da minha estratégia, porque todos então se interessaram. Assim colhi meus depoimentos. 
Mas também foram apenas uma ou duas horas que eu fiquei com eles. Não fiquei horas e horas, a não ser o Caetano que eu visitei três vezes. Ele é muito generoso, gosta de conversar. Falamos longamente. 
Os outros foram sempre encontros pequenos, com a mostra do material. Mas eram momentos de grande valor, pois envolvia muita surpresa, muita emoção. Foi em torno disto que eu fiz o filme. 
Também o fiz utilizando entrevistas de outros documentaristas e filmes do período. As preciosas entrevistas com Glauber e Oiticica foram feitas por outro documentarista, Silvio Darin, que tinha filmado esse material em 1978. 
O meu filme é um painel da realização de muitas pessoas. O montador, o Osvaldo Santana, é quase um coautor do filme, porque foi uma obra feita muito na sala de montagem. O diretor de arte, Ricardo Fernandes, teve uma contribuição na narrativa, com o uso das intervenções gráficas, mas como narrativa, não gratuitamente. Acabou dando a estética do filme. Também tive dois pesquisadores de alto nível que me ajudaram a encontrar o material. 
Não menos importante foi a assessoria jurídica. Quando vemos o making of desses grandes filmes americanos, eles mostram como fizeram o ‘efeito para o homem-aranha voar’. O making of do meu filme é um advogado sentado junto de uma mesa com telefone (risos). Liberando direitos de imagem. Isso foi feito desde que nós iniciamos o projeto, tive uma estrutura muito sólida. Eu vi outras pessoas fazerem filmes sobre um período da música brasileira que não conseguiram distribuir por causa dos direitos. 
Os direitos de autor no caso das músicas são bastante caros.
Além de ser caro conseguir a liberação de músicas, existem muitas distorções nas negociações pelos direitos. Existem muitos herdeiros cobrando absurdos. Eu respeito o seu direito, mas quando começam a pedir fortunas por imagens que muitas vezes são um património da coletividade… Você acaba por ficar limitado.
Tiveram que cortar algum trecho de filme ou música por causa de direitos?
 Sim, mas foram poucos. O nosso sucesso nas negociações foi alto. Usamos um critério de jurisprudência que consistia na fixação de um valor que era sempre o mesmo pelo tempo de imagem de música. Então não entramos em nenhum leilão. Desde o início dizíamos quanto pagávamos. Demorava mais, mas quase sempre tivemos sucesso. Eu lembro-me de algumas negociações mais difíceis onde eu fui chamado a entrar para tentar explicar o projeto e conseguir a liberação. 
Mas houve uma, por exemplo, que não conseguimos. Existe uma personagem importante, que é o José Agripino de Paula, um escritor do período, autor de “Pan América”. É um livro que influenciou muito o Caetano Veloso e ele aparece num filme do Rogério Sganzerla chamado A Mulher de Todos (1969). Eu liguei ao produtor, expliquei o que era o projeto, que queríamos usar uma sequência do filme, com o José Agripino a fazer de guerrilheiro, muito adequado ao que eu pretendia. E ele me respondeu: Olha, é o seguinte. Quando eu fiz esse filme, não tinha patrocínio cultural. Cada centavo eu tirei do meu bolso. Eu não tinha apoio nem leis de incentivo, nada. Então, ou você paga o que eu peço ou não usa o meu filme! Eu acabei por não usar, pois eu não tinha como pagar aquilo que ele pedia. 

Porque decidiu utilizar uma versão integral de Asa Branca (música muito popular do “cancioneiro” do sertão do Nordeste brasileiro, sem conexão aparente com a Tropicália) perto do final do filme?
O filme é organizado em três atos, correspondentes a três anos: 1967, 1968, 1969 – ou seja, introdução, desenvolvimento e uma espécie de conclusão. Esta se dá num dos momentos mais dramáticos que são a prisão e o exílio. Aí entram as imagens dos artistas dando os depoimentos, até então estiveram em off. Você só os vê com a idade que têm na parte final, que tem menos narração e mais música. 
O terceiro ato é quase inteiramente musical, as músicas vão ficando mais integrais. Asa Branca era a música que melhor representava o estado de espírito da época do exílio. Por um lado, eles eram artistas que falavam muito de influências internacionais, que acabam por morar fora do Brasil, em Londres, onde está tudo acontecendo, os festivais, tudo aquilo que queriam ver. 
Por outro lado, é neste momento em que ele é mais brasileiro, vai buscar no fundo do sertão da Bahia uma questão de retirante, de imigrante. O sentido que aquilo tem eu não conseguiria expressar em palavras, acho que está ali, numa canção maravilhosa do Luís Gonzaga, cantada de um jeito magistral, sem guitarra elétrica, sem nada. É ele com um violão. Ali a música fala muito mais alto do que qualquer explicação que eu quisesse dar. No arco dramático do filme, na sua construção, tem funcionado muito bem nas salas, tem sido um momento de grande emoção, com pessoas chorando e tudo.
Também faz questão de insistir que a sua abordagem histórica não é voltada para o passado, mas para o presente e para o futuro.
A história serve para um entendimento de como chegamos aqui. O que tem acontecido muitas vezes com o tropicalismo é ser lembrado com uma espécie de saudosismo, um sentimento de ‘ah, como já fomos melhores, como era melhor antes’. Isso vem tanto de pessoas novas quanto daquelas que viveram no período. Em relação a estes, temos que ter um certo respeito: viveram um momento de grande força, de energia, de luta, de muita criação, de invenção. Mais que tudo, o tropicalismo foi um exemplo de tremenda criatividade. 
Para os jovens essa ideia de que ‘já foi melhor’ é muito conformista, derrotista. Você tem que olhar para trás, para os momentos onde foram feitos uma síntese, quando houve um entendimento do que era cultura brasileira, das suas dificuldades e contradições, para andar para a frente. Não consigo entender a história como um mecanismo só de olhar para o passado. O entendimento do passado existe para que se possa caminhar para a frente, para o futuro. Não gostaria que o filme fosse visto como um culto ao passado.
No fundo o que continua a ser fascinante é a própria mitologia dos anos 60, aquela coisa libertária, revolucionária… E um pouco por todo o lado em simultâneo!
Sim, houve o Swinging London, a primavera de Praga, o maio de 68 em Paris, a luta contra a guerra do Vietname e a contracultura muito forte dos Estados Unidos. Se você pensar bem, até a revolução cultural na China também teve o seu auge nesses anos, com uma parcela muito grande da juventude tentando rever os velhos valores. As guardas vermelhas do Mao Tse Tung investigavam se todos os valores burgueses e os hábitos antigos não estariam contaminando ainda a mentalidade da China vermelha. Isso foi levado às últimas consequências e chegou a grandes absurdos. 
Tudo isso para dizer que o momento era de turbulência, de contestação, de busca de uma outra forma de estar no mundo. Questionava-se a própria civilização; não só os comportamentos. Era forte na contestação da política e dos comportamentos, mas também do que chamamos de civilização. O tropicalismo é um dos movimentos deste período. 
Mas insisto que esse questionamento é atual, o que estamos vendo de novo na crise que a Europa enfrenta neste momento é o próprio modelo de civilização que está a ser posto em causa. E aí é interessante olhar para esse período para buscar dele a energia, a forçar de lutar, a alegria. 
Os estilos de vida e os modos de viver, com todo o universo de bens materiais, a própria tecnologia e o que isso implica no uso de recursos naturais, estão fadados a destruir o planeta. O modelo de riqueza que se tem é muito concentrado, você vê que quem está usufruindo e se beneficiando dele são grupos muito pequenos e que manipulam a política internacional em função de seus interesses. O que foram essas invasões pelos Estados Unidos dos países do Oriente nestas últimas décadas? Temos de novo essa história… 
Nós temos que buscar outras formas de viver e de estar no mundo. Neste sentido os anos 60 são inspiradores. Embora também tragam a lembrança de como às vezes podemos ser ingénuos…

Quantos anos você tinha na altura?
Eu tinha 10. Eu cresci no pós-tropicalismo, olhando para tudo isso como algo que já tinha acontecido. Era recente e eu ainda pegava o eco dessa coisa toda. Todos os músicos que eu vi na minha adolescência vinham desta época. Será que todos eles vinham do mesmo território comum? A minha principal motivação para fazer o filme foi de tentar entender esse território, essa região, esse momento. 
Roni Nunes, www.c7nema.net/




DIA 23 DE SETEMBRO || IPDJ || 21H30

E AGORA? LEMBRA-ME
Joaquim Pinto, Nuno Leonel
Portugal, 2013, 164’, M/12

O filme de Joaquim Pinto "E Agora? Lembra-me" foi escolhido pela Academia Portuguesa das Artes e Ciências Cinematográficas para representar Portugal como candidato ao Óscar 2015 de Melhor Filme Estrangeiro. Trata-se de um documentário autobiográfico já premiado em vários festivais de cinema nacionais e estrangeiros. Narra a história do próprio Joaquim Pinto, ao longo de vinte anos e convivência com a sida e a hepatite C, através de apontamentos variados sobre ensaios clínicos com drogas tóxicas, memórias e o amor.



FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Joaquim Pinto
Cinematografia, Som e Montagem:  Joaquim Pinto e Nuno Leonel 
Com Joaquim, Nuno, Jo, Deolinda,Cláudia, Nelson, Rita
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 164’

FESTIVAIS e PRÉMIOS
Locarno - Prémio Especial do Júri e Prémio da Crítica Internacional
DocLisboa - Grande Prémio e Prémio Júri Universidades
Buenos Aires - Melhor Filme
Valdivia - Melhor Filme e Prémio da Crítica Internacional
Montréal - Grande Prémio
Bilbau - Melhor Documentário  
Cartagena das Índias - Prémio Especial do Júri
Cineport -  Melhor Documentário 
Curutiba - Melhor Filme






CRÍTICA

O diário pessoal de Joaquim Pinto é um dos mais surpreendentes e poderosos retratos de nós todos que se viram nos últimos tempos.
A primeira cena de E Agora? Lembra-me parece vinda de um documentário sobre a natureza. Em plano aproximado, e quase “microscópico”, um bicho invertebrado atravessa o ecrã, arrastando-se sobre raminhos e folhagens à sua velocidade de lesma. De certo modo, é um plano para enganar: o filme de Joaquim Pinto será longo mas veloz e ritmado, nunca se movendo a passo de caracol. Mas se nesse sentido é uma abertura em trompe l’oeil, tudo o mais nesse plano constitui um anúncio fiel do que será o filme: um olhar sobre a vida, em todos os seus estados e instâncias (naturais, sociais, afectivos, profissionais), construído numa permanente ligação com o mundo, um mundo feito de todas as coisas, grandes e pequenas, vindas da História ou da contemplação do presente, abordadas pela acção ou pela reflexão.
O género “diarístico”, a que sem grande incorrecção classificativa E Agora? Lembra-me pertence, tende muitas vezes para o solipsismo, e nada contra isso; mas raras vezes, e essa é obviamente uma das coisas notáveis do filme de Joaquim Pinto, se viu uma aproximação ao género que conseguisse, com este poder, ser um diálogo constante entre o autor e o universo, físico e, apetece dizer sem exagero, metafísico, que o envolve. Num filme assombrado por uma ameaça de morte muito concreta — a sida —, esta dimensão vital e vitalista, esta presença de “coisas vivas” (mesmo com a ambiguidade que o filme inteiramente reconhece, pois também os vírus são “coisas vivas”) é porventura o seu factor distintivo mais saliente e mais extraordinário, como se E Agora? Lembra-me resultasse de um gesto etimologicamente “religioso”, confirmado pela presença da religião (agora sem aspas) no filme e na vida de Joaquim Pinto, algo que de resto abre para o título que depois se estreou (a apresentação mundial de E Agora? Lembra-me ocorreu há pouco mais de um ano, em Locarno), co-realizado com Nuno Leonel, O Evangelho Segundo S. João.
O filme tem o seu eixo, a sua estrutura narrativa, no período de sensivelmente um ano em que Joaquim Pinto se submeteu a um tratamento experimental. É uma crónica disso, com a abundância de pormenores suficiente para fazer de E Agora? Lembra-me também uma entrada relevante na história da “filmografia da sida”. É claro que é muito mais do que apenas isso, como começámos por tentar dizer, mas isso não impede que a questão médica adquira até outras formas de importância. Porque marca uma espécie de pauta, a que se retorna sempre depois de cada uma das muitas derivas, e porque, poeticamente mas não só, ela justifica o “fluxo de consciência”, por vezes “febril”, que toma conta da sua narração e da sua organização. Aqueles planos em que Joaquim Pinto se filma deitado ou “zombificado”, com o corpo abatido pela potência dos medicamentos contra o vírus e pela potência dos medicamentos que servem para atenuar os efeitos secundários dos medicamentos contra o vírus, criam um estado de consciência particular, um torpor que é ao mesmo tempo uma “suspensão” do tempo e a sua acumulação, um combate entre um “vazio” e “toda a memória”, todas as memórias deste homem. É dessa bruma que resulta o filme, como se — e agora? lembra-me claramente — o acto tivesse tanto de uma organização da memória como, através dela, de uma conquista de uma forma de clareza ou de claridade. Ou de limpidez.
Essa clareza e essa limpidez mandam no filme, são mesmo aquilo que mais impressiona no olhar e na narração de Joaquim Pinto. Apesar das curvas e contracurvas, no espaço e no tempo, do seu percurso, E Agora? Lembra-me vai sempre a direito, a cortar caminho por entre uma história pessoal e uma história colectiva, por entre um momento pessoal e um momento colectivo. São as memórias dos encontros profissionais e das amizades de Joaquim Pinto — de Serge Daney a João César Monteiro, a Rita Azevedo Gomes — e são as reflexões sobre o Portugal e a Europa da “crise”. É o humor, propriamente cortante, que subjaz ao filme todo e que, sobretudo a propósito da doença, é o sinal de uma “aceitação” sem “resignação” e, ainda mais, sem rendição. É o olhar, ao mesmo tempo muito pudico e muito expressivo, sobre a vida pessoal de Joaquim Pinto e de Nuno Leonel, a maneira como olha para os dois, ou como retrata um a olhar para o outro e tenta arrancar, encontrar, no outro a maneira como ele olha para o primeiro. O filme é uma história de amor, tudo nele releva, como também já tentámos dizer, de um enorme amor pela vida e por todas as suas coisas. Mas é neste olhar, tão delicado como isento de pieguices, sobre uma relação que resiste tanto quanto um corpo humano resiste aos vírus e aos medicamentos, que a história de amor, de algum modo, se perfaz, e se constitui na matéria essencial de E Agora? Lembra-me.
Ao animal invertebrado do primeiro plano respondem vários outros ao longo do filme, dos cães de Joaquim e Nuno à abelha (ou vespa) comedora de hambúrgueres, imagem de um surrealismo que Buñuel não desdenharia. Talvez irracionalmente, é ainda de Buñuel que nos lembramos nos planos finais, com a já célebre camioneta cheia de perus engaiolados, presumivelmente a caminho da degola. Depois de duas horas e tal a falar dele, Joaquim Pinto não nos deixa ir embora sem nos dar um murrozinho no estômago. Aqueles perus em rota para o seu fim são o mais surpreendente e poderoso retrato de nós todos — da “humanidade” — que alguém mostrou em tempos recentes. Memento mori: e agora, lembra-me que vamos todos morrer.
Luís Miguel Oliveira,.publico.pt






TRANSEUROPA: 16 de Setembro || 21H30 || IPDJ - O SONHO DE WADJDA


16 DE SETEMBRO || 21H30 || IPDJ
O SONHO DE WADJDA
Haifaa Al-Mansour
Arábia Saudita/Alemanha, 2012, 98’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Wadjda
Realização e Argumento: Haifaa Al-Mansour
Montagem: Andreas Wodraschke
Fotografia: Lutz Reitemeier
Música: Max Richter
Interpretação: Reem Abdullah, Waad Mohammed, Abdullrahman Algohani,
Origem: Arábia Saudita, Alemanha
Ano: 2012
Duração: 98’






PRÉMIOS
BAFTA - Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro
Festival do Dubai - Prémio Muhr Arab Melhor Atriz & Melhor Filme
Festival de Durban - Melhor Primeiro Filme
Festival de Friburgo - Prémio do Público
Guild of German Art House Cinema - Prémio da Liga – Ouro
Festival de Gotemburgo - Prémio Dragon do Público Melhor Longa-metragem
Festival de Los Angeles - Prémio do Público Melhor Filme Internacional
Festival de Palm Springs - Realizadores a Observar
Festival de Roterdão - Prémio Dioraphte
Festival de Cinema Noites Negras de Tallinn - Prémio Dom Quixote Menção Especial & Prémio Netpac
Festival de Tromsø - Prémio Norwegian Peace Film
Festival de Vancouver - Primeiro Filme Mais Popular
Festival de Veneza - Prémio “CinemAvvenire”, Prémio C.I.C.A.E. & Prémio Interfilm





Fui até um país distante — o cinema também serve para isso. Um país enorme quase do tamanho de uma península desértica do outro lado do mar Vermelho, a Arábia Saudita. E ainda mais distante em usos e costumes, sobretudo em liberdades no que ao género feminino respeita. Conheci Wadjda, uma rapariguinha de 10 anos que não se conforma a ser diferente. Ela tem um amigo da mesma criação, naquela idade em que rapazes e raparigas ainda podem ter algum convívio. E estão sempre a competir. Ele tem uma bicicleta e ela aposta que seria capaz de andar mais depressa do que ele se tivesse uma também. Mas uma bicicleta não é coisa para meninas, sobretudo das bem-comportadas, socialmente aceites. A ambição dela é, assim, coisa pouca — uma bicicleta —, mas vai desunhar-se para conseguir uma. É claro que o que ela quer mesmo é coisa muito maior: ser igual a ele.
“O Sonho de Wadjda” é um filme de uma espantosa acuidade no desenho da situação feminina na Arábia Saudita, onde uma mulher não pode conduzir um automóvel, fora de casa deve vestir uma burka negra até aos pés, é normal estar casada aos 15 anos com um marido arranjado pela família, a quem deve obediência. Ele, todavia, pode ter mais do que uma mulher, pois a letra do Corão permite a poligamia. Extraordinário é que as autoridades tenham permitido a uma mulher, Haifaa Al-Mansour, realizar um filme num país onde as salas de cinema são proibidas e onde não há nenhuma tradição de produção (bem diferente do que se passa no Egito, mesmo ali ao lado).
 “O Sonho de Wadjda” é, por isso, muito mais do que um filme. É um gesto — e que ninguém se engane com o seu ar afável e cálido. É de combate e de duro combate que se trata. Como em “Esposas e Concubinas” de Yimou, em
 “Of- fside — Fora-de-Jogo” de Panahi, em “O Destino”, de Chahine, o cinema leva-nos lá longe para nos mostrar gente que sentimos aqui perto, combate também nosso.  

Jorge leitão Ramos, Expresso






ENTREVISTA
Escolheu abordar um tema complexo como a situação das mulheres na Arábia Saudita, através de uma história aparentemente simples de uma menina que quer uma bicicleta. Porquê?
Eu queria dar um rosto humano ao debate intelectual, uma história com que as pessoas pudessem identificar-se e perceber. O filme não mostra uma grande história, pelo contrário, é a história das emoções das poucas personagens principais, uma menina e a sua mãe, as vidas destas personagens dentro da sua sociedade. Não creio que as pessoas queiram ver um filme e levar um sermão. A ideia é levá-las numa viagem inspiradora e comovente. Por mais simples que pareça a história, acho que é tecida por temas mais complexos. Para mim, era importante que a história fosse um retrato fidedigno da situação das mulheres na Arábia Saudita e que as personagens fossem credíveis como pessoas comuns, que têm de se movimentar pelo sistema da única maneira que sabem.
A personagem de Wadjda foi inspirada pela sua própria infância? Há elementos autobiográficos nesta história?
Bem, eu venho duma família muito liberal, que me apoiou muito. Lembro-me de ser criança e o meu pai levar-me com os meus irmãos para ir comprar bicicletas e eu escolhi uma verde. Tenho muita sorte por ter um pai que queria que eu me sentisse digna enquanto mulher, mas a situação das minhas colegas e amigas era diferente, elas nunca sonhariam em pedir uma bicicleta.
Mas acho que o coração da história é algo com que todos se podem identificar, que é a ideia de sermos rotulados de diferentes ou perversos por querermos algo fora do que é tradicionalmente considerado aceitável. A cultura saudita pode ser especialmente brutal e implacável para as pessoas à margem da sociedade, por isso há um medo real de ser considerado um proscrito. Por isso, de certa forma, a história é parte da minha vida e das coisas com que me deparei na minha vida. Muitas das minhas experiências, bem como as dos meus amigos e família, estão refletidas de algum modo no filme, não são apenas um produto da minha mente.
Há várias personagens femininas fortes, a própria Wadjda, a sua mãe, a diretora da escola. Este é um filme de mulheres?
Talvez seja! Mas não foi essa a minha intenção. Eu queria fazer um filme sobre as coisas que eu conheço e pelas quais passei. Uma história que contasse as minhas experiências, mas também as das sauditas vulgares. Para mim era importante que as personagens masculinas no filme não fossem retratadas como um simples estereótipo ou vilões. Tanto os homens como as mulheres no filme estão no mesmo barco, ambos são pressionados pelo sistema para agir e se comportar de certa forma e depois são forçados a lidar com as consequências do sistema por qualquer ação que tomem. Gosto muito das cenas da mãe e filha juntas e acho que transparece na sua relação muito amor e emoção, quando estão a cozinhar ou a cantar juntas, há algo de muito bonito nisso.
Ao crescer num país sem cinemas, como descobriu o cinema e decidiu fazer dele um modo de expressão e uma carreira?
Cresci numa pequena cidade da Arábia Saudita. Não quero dar a ideia de que éramos totalmente isolados do mundo exterior, mas também não se passava grande coisa. Embora os meus pais fosse viajados, enquanto eu era criança fizemos apenas algumas viagens pela região. Toda a minha vida de adolescente se centrou naquela cidade. O conceito do grande mundo terminava nas cidades a umas horas de distância. O mundo para lá disso parecia muito distante e fora de alcance. Sempre li livros e vi filmes e quis fazer parte do grande mundo, de algum modo. A Arábia Saudita é um país sem cinemas, onde os filmes são proibidos, mas o meu pai tornou o cinema acessível a nós e fazíamos serões familiares em que víamos filmes juntos. Eu gostava muito de filmes, mas nunca pensei que seria cineasta, quanto mais a primeira mulher realizadora na Arábia Saudita.
Como escolheu os seus atores?
Num lugar tão conservador como a Arábia Saudita, é difícil encontrar mulheres e raparigas que queiram aparecer em frente às câmaras, em público. O obstáculo era ainda agravado pelo facto de não termos uma indústria cinematográfica local nem infraestruturas para apoiar todo o processo. Não existem castings abertos, por isso demorou bastante até conseguirmos encontrar atores. A Waad veio a uma das sessões que fizemos em Riade e eu vi logo que ela tinha o visual e atitude para o papel. Todas as meninas que tínhamos visto antes dela não tinham a garra necessária; ou eram demasiado doces ou pouco descaradas. E de repente surgiu Waad, com os seus auscultadores na cabeça, a usar calças de ganga e com tatuagens nas mãos. Eu procurava também uma rapariga que tivesse uma boa voz, para poder cantar com a mãe, que memorizasse e recitasse o Corão, por isso uma boa voz era um requisito essencial e a Waad tem uma voz muito bonita e doce. Eu tinha visto muito do trabalho de Reem Abdulla na televisão e sempre achei que ela seria ideal para o papel de mãe. Ela fez um excelente trabalho ao adaptar-se da representação de televisão para a do cinema e acho que ela teve um desempenho poderoso.
Como foi para si, enquanto mulher, realizar um filme em Riade?
Foi ao mesmo tempo um grande desafio e muito compensador. Cada passo foi difícil e foi uma aventura. Por vezes tinha de fugir e esconder-me na carrinha de produção, em zonas mais conservadoras, onde as pessoas não aprovavam que uma mulher realizadora convivesse profissionalmente com homens no plateau. Por vezes tentei realizar através do walkie talkie, na carrinha, mas ficava sempre frustrada e acabava por sair e fazer as coisas pessoalmente. Tivemos alguns casos de pessoas que expressaram verbalmente o seu desagrado com o que estávamos a fazer, mas nada de grave. Todos tínhamos as autorizações necessárias, por isso, duma maneira geral, tudo correu de forma relativamente pacífica.
Como é vista na Arábia Saudita e no mundo árabe? É considerada uma exceção? Uma pária? Uma pioneira?
Acho que por vezes posso ser vista como uma figura polarizadora, pois algumas pessoas acham que uma mulher fazer filmes ou trabalhar neste meio é algo controverso. Mas a minha intenção não é ofender ninguém. Não acredito em armar sarilhos sem qualquer objetivo, mas acho que devemos trabalhar para perceber como devemos incorporar a mudança inevitável e a modernização na nossa cultura de forma razoável. Claro que as ameaças de morte podem ser assustadoras, mas não podemos deixar os extremistas afetar o nosso trabalho e os objetivos que temos para desenvolver o nosso país. Espero ter feito um filme que seja próximo das vidas das mulheres sauditas e que as inspire e lhes dê força para desafiar as complicadas amarras sociais e políticas que as rodeiam. Embora seja difícil desconstruir as tradições fortemente enraizadas e que negam às mulheres uma existência digna, sobretudo porque estão misturadas com interpretações literais da religião, esse é um objetivo pelo qual vale a pena lutar.
Qual é a situação atual das mulheres sauditas que têm aspirações criativas ou artísticas?
Estou muito impressionada com todas as jovens que conheci na Arábia Saudita agora e sabem que estão a crescer numa era diferente da minha, com muitas mais oportunidades. Quero ajudar a proporcionar uma plataforma para as suas vozes nunca antes ouvidas e ajudá-las a contar as suas histórias ao mundo. É muito difícil para as mulheres serem elas mesmas. Se agirem fora de certas normas aceites, são consideradas “controversas” em qualquer parte do mundo, e mais ainda num local tão conservador e com regras sociais tão rígidas como a Arábia Saudita. Espera-se que as mulheres sejam duma certa forma e sempre que se afastam dessa convenção, costumam ser rotuladas e estigmatizadas. Espero que os meus filmes ajudem algumas delas a encontrar coragem para arriscar e falar dos assuntos que são importantes para elas.