ALENTEJO, ALENTEJO || 11 Novembro || 21h30 || IPDJ

ALENTEJO, ALENTEJO
Sérgio Tréfaut
Portugal, 2013, 100’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Sérgio Tréfaut
Montagem: Pedro Marques
Direcção de Fotografia: João Ribeiro
Som: Miguel Moraes Cabral, Olivier Blanc, Armanda Carvalho
Com: Os Camponeses de Pias, Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, Grupo da Casa do Povo de Serpa, Os Ceifeiros de Cuba, Grupo do Sindicato Mineiro de Aljustrel, Papoilas do Corvo, Coro Feminino, Cantares de Alcáçovas, Os Rouxinóis da Damaia, Os Bubedanas
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 100’

PRÉMIOS
INDIELISBOA 2014:
Prémio Allianz-Digimaster para Melhor Longa-metragem Portuguesa
Premio Tap pata Melhor Documentário Português

NOTA DO REALIZADOR
A MINHA DESCOBERTA DO ALENTEJO
Descobri o Alentejo na minha adolescência. O meu pai, originário da margem esquerda do Guadiana, queria muito que eu conhecesse a terra dos seus antepassados e o terreno fértil onde estava a nascer a «Reforma Agrária». Enviou-me para passar uma semana na casa de camponeses da Amieira, a aldeia de onde provinham os trabalhadores que cultivavam a terra na Quinta da Esperança, o monte onde ele tinha crescido, junto ao rio Ardila. Confesso que foi muito importante para mim ter vivido o quotidiano de uma família na Amieira, aos 12 anos. Senti na pele o abismo que existia entre o mundo cosmopolita em que eu tinha crescido primeiro no Brasil, depois em Paris, rodeado de exilados políticos, jornalistas e universitários, e o modo de vida pobre de uma pequena aldeia alentejana, onde toda a gente trabalhava no campo e, com sorte, aprendera a escrever o nome depois dos 40 anos. Perturbou-me e comoveu-me a generosidade das pessoas que me ofereciam absolutamente tudo o que tinham, sem ter nada. Lembro que a casa de banho, recente e precária, ficava fora da casa. O duche era improvisado com uma mangueira de água fria. No primeiro dia devo ter comido frango porque era visita. Mas depois habituei-me à açorda de alho, algo que já conhecia da minha infância brasileira, nos dias em que a empregada nordestina, dava uma gargalhada e perguntava ao meu pai: «Hoje o Seu Miguel quer uma sopa de água?». Lá em casa, toda a gente se espantava com a delícia com que o meu pai comia aquela água fervida com alho, coentros e um ovo escalfado. Depois voltei muitas vezes ao Alentejo. Rodei várias sequências dos meus documentários por lá (Outro País, Fleurette) e até filmei a quase totalidade da minha primeira ficção (Viagem a Portugal). Ao mergulhar no Alentejo hoje, já em idade madura, reencontro pessoas de uma fé generosa e panteísta, por quem tenho imenso carinho. Sinto que, para eles, a Senhora de Guadalupe, os Reis Magos, Catarina Eufémia e os rebanhos de ovelhas que passeiam na planície são santos de um mesmo altar. A respeito do cante, a história é muito simples: foi graças a um grupo de camponeses alentejanos reunidos em serenata, por baixo da janela do quarto onde a minha mãe dormia pela primeira vez, que o meu pai conseguiu convencê-la a deixar a França para casar com ele. Ao longo da vida, a minha mãe chorava sempre que ouvia cantares alentejanos numa taberna. Ela gostava muito de tabernas. Não creio que a razão da sua emoção fosse apenas a lembrança do seu namoro com o meu pai, mas a poderosa comoção que aquelas vozes saídas do fundo da terra lhe causavam. Comigo acontece o mesmo.
Sérgio Tréfaut



CRÍTICA
Sérgio Tréfaut continua apostado em utilizar o documentário como um instrumento de revelação de vivências singulares: "Alentejo, Alentejo" mostra como os cantares alentejanos são uma tradição viva, envolvendo todas as gerações.
De que falamos quando falamos de documentário? Lembremos apenas o mais simples. Ou seja: um filme documental ajuda-nos a saber/conhecer; ajuda-nos sobretudo a ter em conta como as coisas existem. As coisas, entenda-se: também as pessoas, sobretudo as pessoas.
"Alentejo, Alentejo", de Sérgio Tréfaut, é um objecto que nos ajuda a entender o encanto, a beleza e o poder de comunicação dos tradicionais cantares alentejanos. Como? Começando por recusar a via mais simples e, por certo, mais fácil: a de tratar a tradição como uma espécie de curiosidade pitoresca que sirva para sustentar uma qualquer retórica turística ou, pior ainda, para animar o populismo televisivo. O que está em jogo é bem diferente: a redescoberta das sonoridades alentejanas enraiza-se numa dinâmica viva de passado/presente.
Nomes como os Camponeses de Pias, os Cantadores de Aldeia Nova de São Bento ou o Grupo da Casa do Povo de Serpa (e estou apenas a citar algumas das entidades que colaboraram no filme) surgem, assim, numa dupla e fundamental qualidade: por um lado, são herdeiros directos daqueles cantares — o chamado cante alentejano — e da sua energia poética e simbólica; por outro lado, existem como manifestação de uma atitude que vê o passado como algo que importa reconverter para as manifestações do presente.
Daí que "Alentejo, Alentejo" documente, não apenas os próprios cantares, mas a sua inserção no quotidiano dos nossos dias, incluindo no espaço específico da escola. Há mesmo uma cena tocante (com o grupo Os Rouxinóis da Damaia) em que deparamos com um ensaio, numa escola, que concentra uma ideia fundamental: a de que a transmissão da tradição não se faz convocando uma nostalgia mais ou menos piedosa, mas sim através da permanente associação do gosto de descobrir e do trabalho que enriquece esse gosto.
João Lopes, rtp.pt/cinemax



ENTREVISTA AO REALIZADOR
É reputado documentarista e tem na sua filmografia dos mais carismáticos filmes portugueses. Agora debruça-se sobre o cante alentejano, numa jornada invulgar que vai até à alma de um povo, pela voz das suas gentes. Um Alentejo profundo resgatado pelo seu olhar peculiar. É sobre esse trabalho de três anos que nos fala.
Como é que nasce a vontade de fazer um filme sobre o cante alentejano?
O ponto de partida é o convite da Câmara de Serpa, que decidiu desencadear a candidatura do cante a Património da Humanidade. Sugeriram-me dois filmes, um de dez minutos para integrar a candidatura, cumprindo as regras da UNESCO, e que é estritamente jornalístico, informativo e que explica a um paquistanês como a um australiano ou a um malaio o que é o cante alentejano, mesmo que nunca tenha ouvido falar dele. Foi feito nessa perspetiva, com voz off, o que é um pouco frustrante relativamente às ambições estéticas e à paixão que possa despertar essa música, ter de pôr uma voz off no meio da música para dar explicações! A outra proposta, em simultâneo, era uma longa-metragem com total liberdade e que fiz ao longo de três anos.
Ajudou à decisão de aceitar o facto de se tratar do cante alentejano?
Se me tivessem proposto fazer um filme sobre o fado, por exemplo, não teria aceite, não seria a pessoa indicada nem seria acertado. Mas o cante alentejano sempre me tocou muito. Na música portuguesa, é o que sempre me comoveu mais. Não hesitei e entrei no desafio de descobrir como é que tudo se construiria, se filmava, se gravava.
Este não é um documentário regular. De que premissas partiu para o estruturar?
Uma é minha, a outra vem do convite, que implicava não dever focar apenas um grupo ou uma região, mas ser mais abrangente. Compreendi que nunca teria possibilidade de conhecer os cerca de 150 grupos que havia no início da candidatura e assumi que ia fazer algo sobre a identidade alentejana, a identidade de um povo. São essas as premissas. A partir daí, fui filmar os grupos a cantar. Também fiz pesquisa em arquivos e percebi que o que estava filmado era mau, excetuando uma ou outra coisa, nomeadamente o trabalho do Alfredo Tropa com o Michel Giacometti [“Povo que Canta’], interessante pelo conceito com que o filmaram.

O material, em geral, é tão mau?
É mortiço, triste, predomina o registo simples. Quando se vai a uma taberna e se coloca a câmara à frente de uns cantores, permitindo-nos apenas a alusão à ‘tristeza’, o que se consegue é uma porcaria, e destrói-se a essência do cante. A maioria fica-se por isso, o que impede a possibilidade de reconhecer os grupos de forma alegre, positiva. Fiz uma reflexão com o diretor de fotografia, o João Ribeiro, para perceber como entrar na cabeça das pessoas, entender a essência da música, a alma das gentes. Filmar um grupo com estes pressupostos não é fácil. Optei por fazê-lo com a câmara muito próximo das pessoas em grupo, através de travellings à mão, recusando o plano de conjunto, ou então não se consegue a intimidade pretendida nem se entra ‘dentro’ da música. Acho que descobri como filmar e gravar o som da melhor forma para o projeto. Os primeiros alinhamentos, só com partes musicais, revelaram-se muito interessantes, mas à medida que o filme se tornava maior isso mostrou-se repetitivo, aborrecido...
Daí as entrevistas isoladas e os alunos das escolas...
Pensei neles e também nos poetas populares para dispor de uma forma narrativa mais lírica. E registei muitos depoimentos ou entrevistas. Só que a contaminação do formato dos telejornais faz com que as pessoas tenham um discurso informativo, e tive de deitar muita coisa para o lixo. Culpa minha, provavelmente. Só mais tarde é que me surgiu a hipótese da açorda para fazer com que as pessoas se abrissem mais, pudéssemos chegar à sua intimidade. Afinal, a açorda faz parte da identidade alentejana e tem também a ver com a minha própria relação com o Alentejo, esteve no meu primeiro contacto com aquela região. E essa opção mostrou-se bastante forte para o andamento do projeto.
Tem uma relação anterior com o Alentejo. Trabalha isso no filme?
O filme não tem nada de autobiográfico, longe disso. Se tenho essa relação com o cante é porque aos 12 anos, chegado a Portugal vindo do Brasil e de Paris, menino da cidade habituado à convivência com intelectuais, exilados políticos e universitários, tive a experiência do contacto com um território onde encontrei pessoas que raras vezes sabiam escrever o próprio nome e que não tendo praticamente nada ofereciam tudo o que possuíam, tinham o hábito da partilha, o que me marcou para sempre. Nutro um enorme respeito pelas pessoas que então conheci e que reconhecia como a parte mais fraca de um sistema que não lhes permitia ter condições dignas de vida, mas que, apesar de tudo, tinham uma nobreza enorme.
O que está bem vincado no testemunho da senhora Catarina, do Baleizão, quando fala do tempo em que o pai dividia uma sardinha pelos filhos e do respeito e dignidade que transmite ao falar desses tempos de pobreza extrema.
Fala de ter frio, de andar descalça até no inverno, a Catarina, que ainda hoje não sabe assinar. E que conta aquela pobreza toda e acaba dizendo que, mesmo assim, iam pela estrada em direção ao trabalho nos campos, com tão tenra idade, cantando as modinhas. Ela é uma força da natureza, uma mulher maravilhosa. 

É a primeira a ser filmada na preparação da açorda, a estratégia para chegar à intimidade dos cantores. E há, quase ao fim do filme, o grupo de três jovens que preparam um petisco uma açorda, exatamente e que fazem uma reflexão profunda sobre a sua pertença ao cante alentejano.
Correu muito bem com Catarina. A partir daí surgiu a ideia de ter as pessoas a falar após ganharmos intimidade, e cozinhar pareceu bem. Carlos Arruda, que é um rapaz de vinte e tal anos, solista do grupo de Serpa, faz aquela açorda já numa cozinha toda high-tech lisboeta — trabalha no Banco de Portugal — e fala de quanto lutou na adolescência contra os colegas de escola, que achavam que era ridículo e risível pertencer a um grupo de cante. É mais importante ter depoimentos íntimos do que discursos teóricos, que dariam outro filme, diferente... Por exemplo, há tanto a dizer sobre as diásporas, só que preferi que as pessoas que falam sobre as diásporas falassem de dentro. Se o filme não fala do facto de haver uma diáspora alentejana no Canadá ou nos Estados Unidos, ou que há grupos na Alemanha e na França, paciência! Desejo é que se entenda que as pessoas que tiveram de sair do Alentejo trouxeram consigo essa paixão, a condição dessa pertença. Mesmo quando as modas têm autor conhecido, quando os grupos as editam em disco, raras vezes está lá escrito quem é. Trata-se de um património coletivo, e em qualquer lugarejo toda a gente sabe cantar as modas mais conhecidas, com variações de lugar para lugar. Mas é um património comum, que teve a sua evolução histórica e que conhece hoje, um novo entusiasmo.
António Loja Neves, Expresso, 20/9/14

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