20.000 DIAS NA TERRA, 3 Fevereiro, IPDJ, 21h30


20.000 DIAS NA TERRA

Iain Forsyth, Jane Pollard
Reino Unido, 2014, 95’, M/12


FICHA TÉCNICA
Título Original: 20,000 Days on Earth
Realização: Iain Forsyth, Jane Pollard
Argumento: Nick Cave, Iain Forsyth, Jane Pollard
Direcção de Fotografia: Erik Wilson
Montagem:  Jonathan Amos
Som: Joakim Sundström
Música: Nick Cave, Warren Ellis
Com: Nick Cave, Kylie Minogue, Blixa Bargeld, Susie Cave, Warren Ellis, Ray Winstone
Ano: 2014
Origem: Reino Unido
Duração: 95´





FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim 2014 - Panorama
Sundance Film Festival – Prémio Melhor Realização e Montagem (secção Documentários)
Istanbul International Film Festival – Prémios FIPRESCI

CRÍTICA
Por norma, quando se pretende concretizar um documentário sobre uma personalidade musical (e não só), facilmente se recorre à modelização narrativa numa alternância entre testemunhos / imagens de arquivo e vice-versa. Com 20,000 Days on Earth, tal matriz seria desrespeitosa e automaticamente transformada numa oportunidade desperdiçada face a um homem tão curioso como Nick Cave, o líder dos Nick Cave and Bad Seeds, que no cinema ficou célebre como o autor do argumento de um dos mais envolventes filmes australianos dos últimos anos (Escolha Mortal, de John Hillcoat).




Nesta obra que celebra a criatividade e a multifacetada forma do documentário, a dupla Ian Forsyth e Jane Pollard acompanham um Nick Cave autónomo e autodidático, um poeta ilusionista que profere vulgares "ordinarices" e que descaradamente transformas-as em prosa graças à sua voz carismática e sapiência. Mas acima de tudo, em 20,000 Days on Earth o artista em questão revela-nos e convida-nos a entrar no seu íntimo, ao mesmo tempo que o oculta do espectador. Invocando palavras soltas sob a atmosfera boémia e confortante da noite, Cave demonstra os "pequenos prazeres da vida" num pleno egocentrismo, daqueles que se assumem como Deus sob uma quinta das formigas. Diria antes que Nick Cave funciona como a perfeita anarquia e, contraditoriamente, no alicerce para toda a execução deste documentário em constante moldagem.

Poesia visual é o registo acentuado numa alegoria que prova que é possível materializar um documentário de cariz musical sem o uso do academismo. Depois disto tudo, é Nick Cave, a figura central e o ator de um palco imenso, o único capaz de transformar o interior de um automóvel num confessionário e a televisão, não como um gesto de banalização e de sedentarismo, mas numa vontade de aproximação familiar.
Tudo é possível neste relato que tornará os mais ávidos fãs hipnotizados pela aura desta personagem dentro de uma personagem. Quanto aqueles que nunca ouviram falar de Nick Cave, a vontade insaciável de conhecer o homem por trás de Push the Sky Away nascerá após o último crédito. De distinto requinte.
Hugo Gomes,.c7nema.net/

O Guia de Ideologia do Depravado || 27 Janeiro || IPDJ || 21h30


O GUIA DE IDEOLOGIA DO DEPRAVADO
Sophie Fiennes
Reino Unido/ Irlanda, 2012, 134’, M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original: Pervert's Guide to Ideology
Realização: Sophie Fiennes
Argumento: Slavoj Žižek 
Montagem: Sophie Fiennes
Fotografia: Remko Schnorr
Música: Magnus Fiennes
Origem: Reino Unido/ Irland
Ano: 2012
Duração: 134’


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Doclisboa'13 - Sessão Especial




DECLARAÇÃO DA REALIZADORA
“Quase imediatamente depois da estreia de O GUIA DE CINEMA DO DEPRAVADO, o Slavoj sugeriu-me que fizéssemos O GUIA DE IDEOLOGIA DO DEPRAVADO – e aqui está ele.
A ideologia é um tema de enorme relevância na obra de Žižek. As suas raízes no pensamento psicanalítico possibilitam uma nova compreensão de como o nosso mundo está estruturado. 2012 parece ser a altura absolutamente ideal para fazer este filme. Foi entusiasmante e exigente para mim reunir estas ideias num filme. Através dos exemplos que usamos, tão díspares como filmes, música, dados históricos e acontecimentos actuais, a ideologia surge como uma moldura fantasiosa em constante mutação que molda todas as sociedades.
Agradeço ao Slavoj a sua generosidade, confiança e, claro, o seu fenomenal sentido de humor!”
Sophie Fiennes



CRÍTICA

O filósofo esloveno Slavoj Zizek volta a colaborar com a cineasta inglesa Sophie Fiennes: "O Guia de Ideologia do Depravado" propõe-se reflectir sobre os mecanismos ideológicos a partir de cenas de filmes muito conhecidos.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek é um genuíno cinéfilo — gosta de filmes; gosta de percorrê-los para além de qualquer dicotomia "bom/mau"; enfim, vê e pensa o cinema como componente viva de um aparato imenso onde se cruzam os valores sociais, os seus efeitos visíveis e também os seus recalcamentos.

Em 2006, desenvolvera uma primeira colaboração com a cineasta inglesa Sophie Fiennes (irmã do actor Ralph Fiennes), sob a designação "O Guia de Cinema do Depravado" (título original: "The Pervert's Guide to Cinema"). Agora, com "O Guia de Ideologia do Depravado" ("The Pervert's Guide to Ideology"), os dois propõem uma espécie de derivação argumentativa do filme anterior — trata-se de discutir o que é a ideologia, conservando sempre os filmes como fundamental matéria de reflexão.

Até certo ponto, a mise en scène deste "Guias" funciona a partir das matrizes tradicionais do documentário: Fiennes coloca a sua câmara face a Zizek que, por sua vez, vai desenvolvendo as suas reflexões a partir de extractos de filmes. Em todo o caso, há uma diferença, com tanto de irónico como de pedagógico, que importa sublinhar: o protagonista aparece em cenários que, muito explicitamente, copiam ambientes dos filmes citados [exemplo aqui em cima: "Laranja Mecânica", de Stanley Kubrick].


Os autores citados são muitos e muito variados, de John Carpenter (Eles Vivem") a Martin Scorsese ("Taxi Driver"), passando por James Cameron ("Titanic"). Sempre de acordo com uma lógica de ocupação: Zizek aparece, por assim dizer, como figurante esquecido dos seus bastidores, propondo-nos novas formas de entendimento das suas imagens, cenas e valores. Em última instância, redescobrimos os filmes como etapas de um labor ideológico que envolve todas as formas de percepção, consciente & inconsciente, do mundo à nossa volta — e mesmo quando podemos não nos reconhecer nas argumentações propostas, esta é sempre uma viagem empolgante.

João Lopes, rtp.pt/cinemax/

A PRAÇA, Sergei Loznitsa || 20 Janeiro || 21h30 || IPDJ


20 JANEIRO || 21h30 || IPDJ

A PRAÇA
Sergei Loznitsa, Ucrânia, 2014, 130’, M/12


FICHA TÉCNICA
Título Original: Maïdan
Realização: Sergei Loznitsa
Montagem: Danielius Kokanauskis e Sergei Loznitsa                       Fotografia: Sergei Loznitsa e Serhiy Stetsenko                         
Som: Vladimir Golovnitskiy             
Origem: Ucrânia
Ano: 2014
Duração: 130’

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Sessão Especial
Festival Doclisboa - Selecção Oficial



NOTAS DO REALIZADOR
Fui a Kiev em meados de dezembro. Eu sabia que era urgente. Eu sabia que tinha de estar lá e tinha de filmar. Adiei todos os meus outros projetos e compromissos e fui para Maïdan.
O ambiente eufórico dos primeiros dias da revolta de Maïdan era tão reconfortante e emancipador, que a sensação era a de estar no ventre materno. Nunca antes eu tinha visto ou sentido tamanha solidariedade, camaradagem e um autêntico espírito de liberdade. Foi incrível ver tantos voluntários trabalharem juntos, numa imensa harmonia e com grande zelo. Todos pareciam estar atarefados: a vigiar Maïdan, a ajudar nas cozinhas, a dar assistência médica, a atuar no palco deste carnaval folclórico medieval – o espírito livre da nação, que desperta após um longo sono.
Durante as primeiras semanas da revolta de Maïdan, o perigo estava presente, mas havia também muito humor e riso. Foi este sentido de humor ucraniano tão particular, que os ajudou a superarem alguns dos momentos mais negros da história deste país. Eles riam-se dos políticos incompetentes e corruptos, em vez de os odiarem. A energia criativa era avassaladora e dezenas de cantores e poetas amadores interpretaram as suas baladas muito ingénuas, mas incrivelmente sinceras no palco de Maïdan. Havia também a abundância de comida… Esta foi talvez a revolução mais bem alimentada da História. Cozinhas de campanha trabalhavam sem parar e os voluntários e cidadãos vulgares de Kiev traziam toneladas de alimentos e iguarias caseiras para alimentar toda a gente – eles não perguntavam se apoiávamos a oposição ou o regime… Em meados de janeiro, o ambiente alterou-se. Já não se tratava de um carnaval, mas sim de uma batalha.
Sangue foi derramado. Já não era um protesto pacífico contra o presidente corrupto. Era uma luta contra um regime diabólico era uma revolução…
A PRAÇA é o primeiro filme na minha longa carreira de realizador de documentários, em que eu tive de seguir os eventos da “vida real”, à medida que se desenrolavam. Esta foi uma experiência nova e que me deixou bastante nervoso. Normalmente, quando começo a trabalhar num documentário, começo por
definir a estrutura completa do filme na minha mente. Sei exatamente como o filme vai começar, como a narrativa se irá desenvolver e como vai terminar.
Fazer A PRAÇA foi uma experiência completamente diferente. Fui recebendo imagens novas ao longo de janeiro e fevereiro e enquanto a tensão escalava e o sangue era derramado, eu estava a editar o filme, sem saber que final esperar. Dividi o filme em várias partes: o prólogo, a celebração, a batalha e o post-scriptum.
O meu objetivo é trazer o espetador até Maïdan e fazê-lo experimentar os 90 dias de revolução, à medida que iam acontecendo. Eu queria distanciar-me dos eventos e deixar o espetador relacionar-se com eles, sem qualquer comentário ou narrativa em voz off. Fiz takes longos, para embrenhar o espetador na narrativa.
Tentei gravar o máximo de som direto possível e vou usar muito desse som no filme.
Maïdan é um enigma para mim, que ainda não consegui resolver.
Sergei Loznitsa - Março 2014




CRÍTICA
Melancólica meditação sobre homens e mulheres numa situação de conflito: os acontecimentos da Praça Maidan, em Kiev.
Como aconteceu com a Praça Tahrir, no Cairo, durante o episódio egípcio da “primavera árabe”, também a Praça Maidan, em Kiev, se tornou extremamente familiar para o mundo inteiro enquanto lugar simbólico da resistência e do poder populares, durante a sequência de acontecimentos que, em finais de 2013, teve como consequência imediata a deposição do presidente ucraniano, Yanukovich, e como consequência de longo prazo um imbróglio de proporções “globais” ainda bem longe do seu desfecho.
Esses dias entre o final de 2013 e o princípio deste ano em que multidões se aglomeraram na Maidan e a Maidan se tornou emblema de mais um conflito leste/oeste são o foco da atenção do cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, tradicionalmente dado à reflexão, na ficção ou no documentário, sobre a história do seu país (e a relação do seu país com a URSS), e que aqui encontramos a trabalhar a quente, quase “em directo”, no momento em que a História se desenha.


A Praça faz o relato desses dias, com suficiente informação e contexto para que ninguém se perca, mas sem recorrer àquele mais básico modo de condução do olhar do espectador, o comentário “off”, cuidadosamente evitado. Dos primeiros dias, onde o ambiente é sobretudo festivo, espécie de “happening” popular, ao momento em que a coisa começa a azedar e a atmosfera “pacífica” (mas sempre cheia de uma electricidade a prenunciar tempestade) descamba em caóticas batalhas campais. Como que assinalando que isto é apenas o princípio de uma história ainda sem fim à vista, termina inconclusivamente sobre uma nota sombria, a imagem de um memorial fúnebre improvisado, velas e ramos de flores, pelas vítimas da violência que caiu sobre a Maidan.
Para além desta dimensão informativamente documental, deste lado de “reportagem”, o que é interessante em A Praça, e totalmente condicente com a opção de ignorar um comentário “off”, é o facto de Loznitsa evitar os mecanismos habituais de sugestão de uma “urgência”. Está em cima do acontecimento mas todo o filme trabalha em criação de uma distância, bem longe dos clichés da reportagem filmada, os planos curtos ou a câmara à mão. Pelo contrário, a câmara fixa é dominante em A Praça, e os planos são por norma longos e frequentemente filmados de um ângulo muito aberto. É como uma sequência de “tableaux” arrancados ao “real”, às vezes um estranho bailado de multidões (com muitas canções e tudo), outras uma pintura de paisagem com batalha, numa agitação que tem o condão de ultrapassar as divisões contextuais (os “pró-ocidentais” e os “pró-russos”) para se dar a ver como uma inesperadamente melancólica meditação sobre homens e mulheres numa situação de conflito.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/culturaipsilon/

ADEUS À LINGUAGEM, de Jean-Luc Godard || TEATRO MUNICIPAL DE FARO || 13 JANEIRO || 21H30


13 JANEIRO  -  21H30
TEATRO MUNICIPAL 

ADEUS À LINGUAGEM
Jean-Luc Godard, Suíça, 2014, 70’, M/14

FICHA TÉCNICA
Título original: Adieu au langage
Realização e Argumento: Jean-Luc Godard
Fotografia:  Fabrice Aragno
Interpretação: Héloise Godet, Kamel Abdelli, Richard Chevallier, Zoé Bruneau, Jessica Erickson, Christian Gregori
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 70’


PRÉMIOS
Festival de Cannes - Prémio do Júri 




CRÍTICA

“Sim, foi o que tivemos de melhor, diz Deslauriers” - é uma das citações (Flaubert, no caso) que ocupa o “pré-genérico” de Adeus à Linguagem, filme que como quase todo o Godard desde sempre, e em especial o Godard desde Nouvelle Vague (1990), se constrói como grande colagem textual, e em certa medida imagética, com excertos e passagens retirados das mais diversas fontes.
Retirada ao contexto - A Educação Sentimental - a frase de Flaubert abre bem o caminho à indefinida melancolia de Adeus à Linguagem: é para ler com exaltação e exclamação, ou para ler com encolher de ombros e reticências?... Certo, certo, é que Adeus à Linguagem, como todo o Godard de há pelo menos vinte anos, se coloca num tempo “depois”, num tempo do fim, num tempo em que, definitivamente, já passou o que “tivemos de melhor”. Em simultâneo, não há apocalipse nenhum, as coisas são o que são e estão como estão - politicamente, poeticamente, sensivelmente, este mundo “depois” é reconhecível como “este mundo”, este mundo de agora. Enquanto folheia um livro com pinturas de Nicolas de Stael, uma personagem interroga-se: “o fim de um mundo”, ou o “advento de um novo mundo”?

Este espaço “entre” (um fim e um advento) é daquilo que, lembrem-se da citação de Élie Faure que abria o Pierrot le Fou, mais interessa a Godard. É o mundo das formas indefinidas, já não fixas, ainda não estáveis. Um movimento permanente entre a luz e a sombra, entre a matéria e a evanescência, entre as coisas e a sua compreensão.
Neste filme que, além de ser sobre “o fim de tudo” é “sobre tudo”, essas cenas domésticas representam mesmo uma espécie de centro de gravidade. Há algum tempo que Godard não voltava assim a esse núcleo essencial de tantos momentos da sua obra: o reduto doméstico, o “casal”, a “fábrica” (expressão usada num filme antigo para definir essa união entre o trabalho “material” e o trabalho que faz um “casal”). Se se diz “adeus à linguagem” é também para encontrar esse ponto em que as palavras, os códigos, as fórmulas de comunicação pré-definidas, deixam de funcionar, com drama e com exuberância, e tudo existe como liberdade e potência, a inventar, a recriar, a ser visto “para além” da linguagem. Deixar, como noutra citação, “que o não-pensamento contamine o pensamento” - e é talvez por isto que aparece o protagonista não-humano (e “não-pensador”), o cão Roxy, “intérprete”, fazendo apenas as coisas que os cães fazem, de algumas das mais belas cenas e sequências do filme, aquelas em que, por bosques e lagos e citações de Monet, Godard continua a sua “reinvenção electrónica” do impressionismo (já vista noElogio do Amor ou no Filme Socialismo). “O que está no exterior”, diz outra citação (agora Rilke), “só pode ser conhecido através do olhar do animal”.Adeus à linguagem, portanto, num filme que procura olhar, assim como nos desafia a olhar, com esse “olhar do animal”. 


É com Roxy que nos despedimos, adormecido em cima dum sofá. A voz “off” comenta: “parece deprimido”. “Não”, contrapõe outra voz “off”, “está só a sonhar com as Ilhas Marquesas”. Num certo sentido, Adeus à Linguagem é um filme sobre esse sonho com as Ilhas Marquesas. Foi o melhor que tivemos.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/


CAVALO DINHEIRO de Pedro Costa || 6 JANEIRO || 21H30 || IPDJ


6 JANEIRO
O CAVALO DINHEIRO
Pedro Costa, Portugal, 2014, 104’, M/12


 

FICHA TÉCNICA
Realização: Pedro Costa
Imagem: Leonardo Simões, Pedro Costa
Som: Olivier Blanc, Vasco Pedroso
Montagem: João Dias
Montagem Som: Hugo Leitão
Música: Os Tubarões
Com: Ventura, Vitalina Varela, Tito Furtado,António Santos, Benvindo Tavares
Origem: Portugal
Ano: 2014
Duração: 104' 





PRÉMIOS E ALGUNS FESTIVAIS
Festival de Locarno, Suiça - Leopardo Melhor Realizador
Festival do Rio de Janeiro, Brasil
Festival de Vancouver, Canadá
Festival de Toronto, Canadá
Festival de Nova Iorque, EUA
St. Petersbourg Media Forum, Rússia
Festival de Valdivia, Chile
Festival du Nouveau Cinéma, Montreal, Canadá
Festival de Londres BFI, Reino Unido


CRÍTICA
Cavalo Dinheiro é tudo menos “outro filme das Fontaínhas”. Pelo contrário, e mesmo se tudo o liga ao essencial da obra de Pedro Costa desde Ossos (e antes desse, a Casa de Lava, o filme “caboverdeano” que está na origem de toda esta série), é um “filme novo das Fontaínhas”. Nunca as Fontaínhas – ou o que resta delas – tinham servido para o que Cavalo Dinheiro faz.
Se, por boas razões, de Ossos a Juventude a Marcha, passando pelas várias curtas-metragens que Costa foi fazendo com o mesmo universo, se tratava sempre de filmes “concêntricos”, geograficamente concêntricos, a primeira surpresa de Cavalo Dinheiro é o seu início, a sua abertura (com jogo de palavras e sem ele). A montagem de uma sequência de fotografias de Jacob Riis, retratando operários, biscateiros, sem-abrigo, da Nova Iorque de finais de século XIX, as casas onde vivem, os bares onde se divertem. Vemos vários Venturas – cada vez mais o único verdadeiro “ícone”, em todos os sentidos, do cinema português contemporâneo – naquelas imagens, e é impossível deixar de pensar em todos os “filhos” que ele procurava em Juventude em Marcha: mas aqui vemos os pais, os primos, os irmãos, de outra época e doutro lugar, um parentesco imaginário que fica a pairar sobre o filme e que o inscreve em algo mais vasto do que só a História portuguesa das últimas décadas. O filme tem, de resto, uma espécie de “intervalo”, sensivelmente a meio, para uma série de planos com figuras marginais ou estranhas à “narrativa” de Cavalo Dinheiro (e uma canção dos Tubarões em “off”), que directamente se ligam, entre a homenagem e o reconhecimento, a essa montagem fotográfica inicial.




Mas também é o filme onde vemos Ventura na cidade – Ventura face às janelinhas iluminadas do Hospital de Santa Maria (soberbos planos onde “a noite tem mil olhos”), Ventura na Fonte Luminosa da Alameda, um plano ao lusco-fusco onde a combinação de auto-estradas, aviões a rasar e placards publicitários cria uma aparência de lugar sem sítio definido. O paradoxo – mas o filme é isto, uma constante deriva entre abertura e fechamento, sem nunca se esclarecer qual dos termos é mais ilusório – é que nunca Pedro Costa foi tão cavernoso, tão cheio de subterrâneos, escadarias íngremes, corredores estreitos, reais ou criados a partir do trabalho da iluminação (e eventualmente, da pós-produção, sendo certo queCavalo Dinheiro puxa as possibilidades da imagem digital a um alcance nunca visto e que é, isso sim e de pleno direito, “vanguardista”). “Sweet Exorcist”, a curta-metragem incluída em Centro Histórico, revisitada em Cavalo Dinheiro (Ventura preso dentro do elevador) e por ordem cronológica de visibilidade a sua origem, já nos deixava a pensar no expressionismo no sentido da sua tradição cinematográfica, esse jogo com a projecção da interioridade das personagens a transmitir-se ao espaço circundante, a deformá-lo, distorcê-lo, defini-lo, inventá-lo. Cavalo Dinheiro é também isto, do princípio ao fim: um sonho, ou um pesadelo, de Ventura, onde nada (nem as outras personagens, como a espantosa Vitalina, primeira figura feminina depois de Vanda, ausente neste filme, a ser um “match” para Ventura) tem uma segura existência “real”, no sentido diegético do termo. Tudo são sombras e subterrâneos, ou tudo pode sair das sombras e dos subterrâneos, terreno fértil para a imaginação e para a sugestão, como acontecia nos filmes de Tourneur ou de Lang, velhas predilecções de Costa, e descendentes directos do expressionismo histórico, que Cavalo Dinheiro, tanto, mas tanto, faz lembrar de uma ponta a outra.

O que equivale a dizer, mais ou menos, que Ventura está tão preso dentro da sua cabeça como dentro do elevador onde, no final, o deixamos. Sonho ou pesadelo, das sombras e dos subterrâneos saltam fantasmas, memórias desconexas, histórias apenas oralmente relatadas como a do cavalo que dá nome ao filme (e foi “comido pelos abutres”, fábula cheia de ressonâncias contemporâneas, é outra maneira de explicar o que aconteceu ao “dinheiro”). São os fantasmas da história de Portugal dos últimos 40 e tal anos, da diáspora cabo-verdeana, da guerra, do 25 de Abril, do que aconteceu depois, do que ainda não deixou de acontecer. Como num teatro onírico, cenas da guerra são revividas, com soldados e chaimites, num qualquer beco dos arredores de Lisboa. Como num filme de “zombies”, um soldado-homem-estátua serve de último parceiro a Ventura (que de facto raramente está sozinho neste filme), na extraordinária sequência do elevador que se conclui com aquele, poderosíssimo, gesto de mãos, como se em desespero de causa a personagem tentasse um derradeiro exorcismo, um “doce exorcismo”. Tem um efeito: pára o sonho, pára o filme. Mas espectador algum conseguirá sair daquele elevador.
Como dizia alguém, o que é espantoso em Pedro Costa é que cada filme é melhor que o anterior, mesmo quando isso parecia impossível. Cavalo Dinheiro, magnífico filme, confirma isso.

Luís Miguel Oliveira, publico.pt/