A NOITE CAIRÁ, de André Singer || 3 MARÇO || IPDJ || 21H30

A NOITE CAIRÁ
André Singer, Reino Unido, 2014, 75’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização: André Singer
Argumento: Lynette Singer
Fotografia: Richard Blanshard
Montagem: Arik Lahav, Steve Miller
Som: Aviv Aldema
Compositor: Nicholas Singer 
Origem: Reino Unido
Ano: 2014
Duração: 75’



A 15 de Abril de 1945, as tropas britânicas libertaram o campo de concentração de Bergen-Belsen. Uma equipa de filmagens filmou as pilhas de cadáveres e os sobreviventes, provas irrefutáveis dos crimes cometidos pelo regime Nazi. O produtor Sidney Bernstein planeava usá-las num filme e convidou Alfred Hitchcock para o montar. Mas, depois do fim da Guerra, as forças de ocupação mudaram a sua política e em vez de confrontar a Alemanha com a culpa, preferiram instalar a confiança para tornar possível a reconstrução do pós-Guerra. E estas imagens de horror indizível foram confinadas aos arquivos. A Noite Cairá segue as pisadas deste filme inacabado conhecido como o “Hitchcock perdido”.

CRÍTICA
O documentário de Singer coloca o cerne da questão no projecto do produtor Sidney Bernstein, que devido a um conjunto de circunstâncias relacionadas com a instabilidade política do pós-guerra nunca chegou a ser completado. Até hoje: no final de 2014 o Imperial War Museum regressou às imagens recolhidas pelos soldados, num importantíssimo trabalho de digitalização e restauração. Um dos aspectos mais determinantes no projecto concebido por Bernstein, e que nunca chegou a ser verdadeiramente concretizado, está relacionado com o envolvimento de Alfred Hitchcock. 

As imagens recolhidas pela equipa de Bernstein seriam o ponto de partida para aquele que seria o único documentário da carreira de Hitchcock. Uma das razões avançadas para a inviabilidade do projecto prende-se com a recusa em acolher o elevado número de refugiados judeus, tanto da parte dos Estados Unidos como do Reino Unido. Perante a intensidade visceral das imagens, temia-se que o documentário não cumprisse o seu propósito fundamental - que passava em larga medida pela demonstração da dimensão dos crimes cometidos pelo regime Nazi -, tornando-se antes numa ferramenta de pressão política; sensibilizada pela injustiça atroz cometida contra o povo judeu, havia a hipótese da população manifestar forte apoio ao acolhimento dos refugiados em território aliado. 
Por outro lado, e esta era uma questão primordialmente referente ao contexto do Reino Unido, haveria também o receio que a divulgação do documentário contribuísse para a desmoralização do povo alemão, frequentemente responsabilizado pelas ações do seu regime; com os primeiros sinais de uma guerra fria a poluir o horizonte político, a prioridade passavam também por evitar alienar um potencial aliado contra a então União Soviética. Em ambos os casos, é esta uma das dimensões da difícil relação entre o sentido último da história e a "imagem", e que parece fazer eco de algumas das reservas avançadas por Lanzamnn. Singer nunca entra em diálogo explicito com o debate lançado por Lanzmann, tão pouco nos moldes em que o realizador de Shoah colocou a questão, mas o que aqui importa sublinhar é a importância de uma reflexão sobre a relação entre imagem e a (re)construção da História.

Um dos motivos de maior interesse do documentário de Singer passa pela aproximação às sugestões e instruções dadas por Hitchcock à equipa de Bernstein. Para evitar suspeitas sobre a credibilidade das imagens, Hitchcock recomendou que se utilizassem planos e sequências longas – daí a insistência nos momentos em que é possível ver as campas a céu aberto com os corpos dos judeus, com soldados nazis junto das suas vítimas. Outra sugestão foi a de demonstrar a proximidade entre os campos de concentração e povoações civis, de uma maneira ou de outra implicadas naquela tragédia.
Algumas das imagens restauradas pelo Imperial War Museum vão sendo intercaladas ao longo de toda a exposição factual de A Noite Cairá, e o que é aqui também impressionante é a "nitidez" ou "realismo" que o digital vem trazer a este imprescindível documento histórico. É que a degradação das imagens de arquivo tendem a distanciar-nos do momento histórico em que foram recolhidas: é oposto da impressão provocada pela alta definição digital e da sua relação afetiva com o espetador.
A obra não nos apresenta uma leitura do sentido último do Holocausto, mas relembra-nos da nossa proximidade histórica com o horror do Nazismo.

O melhor: A contextualização da dimensão política do documentário.
O pior: Nada a apontar.

José Raposo, www.c7nema.net

Os Maias - Cenas da Vida Romântica || Teatro Municipal de Faro || 24 de Fevereiro

DIA 24 – Teatro Municipal - 15h e 21h30
PRESENÇA DO ACTOR PEDRO LACERDA (POETA ALENCAR)

OS MAIAS
João Botelho, Portugal, 2014, 139’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: João Botelho
Argumento: João Botelho, a partir da Obra de Eça de Queiroz
Montagem: João Braz
Imagem: João Ribeiro
Som: Jorge Saldanha
Direção de arte: Sílvia Grabowski
Quadros a óleo: João Queiroz
Interpretação: Graciano Dias, Maria Flor, Pedro Inês, João Perry, Hugo Mestre Amaro Adriano Luz, Filipe Vargas, Marcello Urgeghe, Pedro Lacerda
Origem: Portugal
Ano: 2014
Duração: 139’




CRÍTICA
Comecemos pelo bom, pela grande vitória de João Botelho ao atirar-se aos imortais Maias de Eça de Queiroz: a de olhar para o livro não como um manual de instruções a cumprir à risca, mas como um guia de leitura.
Não é a adaptação convencional que muitos esperam ou desejariam – e ainda bem; de leituras reverentes de clássicos estamos nós fartos, e como não temos a tarimba 
dos ingleses também não vale a pena andarmos a armar ao pingarelho. Este é um filme fiel ao espírito do livro, mesmo que não à sua forma; o artificialismo distanciado e assumido, a construção da história de Carlos da Maia em “quadros” ou “cenas” que parecem saídos de uma ópera escarninha, são perfeitos para dar a dimensão de “fogueira das vaidades” da Lisboa de 1875 vista por Eça. Os Maias segundo João Botelho são uma parada de costumes de uma capital prisioneira das aparências, onde todos estão constantemente em cena como num palco permanente onde importa mais parecer do que ser. É aí que o filme se eleva muito alto, logo a partir do genérico que cria um imediato efeito de distanciamento; é uma espécie de filme-pantomima, de ópera (bufa) de bolso de um Portugal dos pequeninos, sublinhada pelo romantismo exacerbado das escolhas musicais, pela opulência da fotografia de João Ribeiro, pelo artificialismo aguarelado dos telões de João Queiroz que fazem a vez de exteriores.
[...] Mérito do romance, sem dúvida, mas também de um realizador que não se deixou assustar por ele. Ainda assim, fica a sensação que a “compactação” do romance para uma duração “viável” em sala, somada à construção do filme por quadros, acaba por tornar Os Maias mais numa sequência de episódios do que numa narrativa coesa e contínua, e que a própria aposta de Botelho na dimensão de comédia de costumes sobre o “Portugal dos pequeninos” pode ter contribuído para a menorização da história de amor. O que, na verdade, não é um problema perante um filme que ganha em ser visto mais do que uma vez - e, preferencialmente, na versão longa – e que faz ao livro de Eça a justiça devida.
Jorge Mourinha, Público




Entrevista ao Realizador
Há quantos anos se pensava em levar ao cinema o célebre romance de Eça de Queirós sem que ninguém tenha arriscado dar esse passo? Ao imortal “Os Maias”, acrescenta agora João Botelho um novo comentário e também um apêndice ao título, “Cenas da Vida Romântica”, que o cineasta explica em entrevista. “Os Maias” é o seu filme mais forte deste milénio. Um grande Botelho. Valeu a pena esperar pela ousadia. E pelo atrevimento.
Há no filme algo que vem obviamente do Eça mas que eu creio que você sublinhou na adaptação: uma noção de presente. Um presente com um abismo à espreita. O livro acaba quando Portugal está à beira de uma bancarrota e os tempos de ontem, tão diferentes, não deixaram de ser os tempos de hoje. Decidiu pegar neste livro agora também por isso?
É uma pergunta justa. O Eça tem outros romances prodigiosos mas eu estou convencido de que o único que se pode transportar para os dias de hoje é “Os Maias”. O Eça demorou sete anos a escrevê-lo. E agarrou Portugal. Os comportamentos são iguais. Os Afonsos da Maia, os Dâmasos, os Gouvarinhos, os banqueiros Cohen andam aí à solta... Sim, é a história do fim de uma época: uns tempos depois da publicação do livro, em 1888, Portugal entrou em bancarrota. A monarquia pediu a um banco inglês um empréstimo amortizável a 99 anos e a dívida só foi liquidada em 2001. Agora a sra. Merkel quer que nós paguemos ‘isto’ em quatro anos... é estranho. O Eça agarrou uma era neste livro. E até o seu assunto central, que é um tabu para onde tudo converge, o incesto, é um incesto político com um destino funesto: já não há ninguém com quem dormir e para que esta nossa ‘raça’ se mantenha o irmão tem que dormir com a irmã.
Disse várias vezes que nunca fez um filme de época.
Nunca. Fiz sempre filmes sobre os dias em que filmei, sobre o presente. Resisto ao filme de época, não sei o que é. Conheço os tempos de hoje, mais nada. E gosto de anacronismos.
O genérico de “Os Maias — Cenas da Vida Romântica” recorda essa ideia quando expõe a matéria do filme em estúdio: o livro, o décor, os figurinos, as anotações ao texto, etc. Mostram-se os ingredientes antes de começar o cozinhado?
O genérico é a chave para abrir a porta. É a exposição dos artifícios do filme que se vai seguir, uma falsidade que nos é dada à partida, um pouco como no ‘espetáculo dos espetáculos, que é a ópera: se a senhora de 50 anos que sobe ao palco para fazer de adolescente cantar maravilhosamente. se a sua interpretação for justa, acreditamos nela.
E choramos. O genérico expõe ainda outra coisa: não foi por acaso que eu escolhi um barítono, Jorge Vaz de Carvalho, para a voz do Eça. Ou seja, a voz do narrador é a voz de um cantor de ópera. Foi uma escolha deliberada para instaurar à partida uma ideia de libretto ou de filme cantado. Uma vez instalada a falsidade, tudo a partir daí passa a ser verdade. E com isso, é o texto que ganha. Quando adaptei Pessoa em “Filme do Desassossego” a luta com o texto foi muito diferente. O trabalho levou-me a tender para um gesto de abstração. No caso de “Os Maias”, pelo contrário, mantive as narrativas e as suas várias camadas: um discurso político, outro social, outro ainda psicológico. Comportamentos humanos.
Qual foi a maior dificuldade da adaptação?
Decidir o que cortar. Eu não escrevi nada neste filme. Não há uma frase minha, vem tudo do livro. Fiz apenas uma alteração mais radical: não dou o flashback da família de Carlos Eduardo tal como está no livro. Coloco-o por ordem cronológica, num passado que abre a história.
Esse passado é a preto e branco. Porquê?
Não foi por uma questão de atitude estética mas sim narrativa. É um resumo do passado antes de se passar à cor e ao bloco central do livro sobre a paixão impossível de Carlos por Maria Eduarda. No final, que corresponde às últimas páginas do romance dez anos após a ação central, a cor, não sei se se deu conta, também quase desaparece, está deslavada. O Eça diz que Lisboa está igual dez anos depois, “mas um bocado mais porca.” Apesar de ter surgido a Praça dos Restauradores entretanto, e a modernização do Passeio Público, aquela já não é a Lisboa traçada pelo marquês de Pombal, é a Lisboa do carvão, do gás, das ruas cheias de pedintes. Já os políticos... Estão iguais.

O filme passa do preto e branco à cor no exato momento em que o narrador fala da transladação do corpo do pai de Carlos, Pedro da Maia, que se suicidara por amor...
Segui esta ideia simples: agora vamos romper com o passado e contar uma história. Uma história já de si fragmentada, que pode ser contada de mil maneiras diferentes. É possível fazer um filme inteiro só sobre a descrição da Casa do Ramalhete. Ou uma curta apenas sobre os reflexos da luz no cabelo de Maria Eduarda. No entanto, eu sei que este romance é absolutamente central na história da literatura portuguesa e que as pessoas têm a expectativa de sentirem a sua narrativa no filme. Não o esqueci.
Há um acrescento aos ‘seus’ Maias no título: “Cenas da Vida Romântica”. Porquê?
Havia um grande problema que se deparava à adaptação: o livro é já de si fragmentado, sincopado, e é difícil escolher um só ponto de vista. Ora, eu tinha que ter um ponto de vista no filme. Que acaba por incidir muito na metade do alter-ego do Eça na história: o João da Ega. Volto à questão anterior: este filme chama- se “Cenas da Vida Romântica” mas podia ter dado origem a outro chamado “Episódios da Comédia Portuguesa”. Há sempre uma distância reflexiva no livro, há a tensão dramática do tédio aristocrático, mas também o seu comentário impiedoso, que vem do João da Ega.
Como ele diz, “o desacato é...
“a condição do progresso”. Mais uma das frases lapidares do Eça, como esta: “para que é que serve o Governo? Para contrair empréstimos e cobrar impostos. . .“ Há de ser sempre assim neste modo de vida à portuguesa. Os personagens do Eça são arquétipos, isto é, são personagens coletivas.
Já adaptou Pessoa, Agustina, Diderot, Garrett. E também Dickens, há mais de vinte anos, em  “Tempos Difíceis”. Ao adaptar agora Eça, ficou surpreendido pelo tom e pelo ritmo que o filme ganhou? Tive a sensação no visionamento que, ora é o texto que convida a imagem, ora é a imagem que atraí o texto e o filme vive muito desta atração mútua.
Houve adaptações mais evidentes que outras. Por exemplo, em “Tempos Difíceis” tinha indicações de cinema que nunca mais acabavam. Estão no livro. Isto é obviamente anacrónico mas não sou eu que o digo, foi Eisenstein, na sua arrasadora frase: “O cinema não foi inventado por Griffith mas sim por Dickens.” Ou seja, 50 anos antes de haver cinema, um escritor pensou numa estrutura de cinema para o seu romance, com elipses indicadas, capítulos a terminarem em plano geral e o seguinte a começar em grane plano. Adaptar o Dickens foi por isso mais simples: limitei-me a tirar a carne e a deixar o osso. No Garrett houve cortes profundos, “Quem és Tu?” deixou de ser “Ninguém” e passou a ser Portugal. Filmei-o numa altura em que os espanhóis compraram meia Avenida da Liberdade. Já não eram os Filipes mas uma armada financeira de Zaras e bancos Santander. No caso de “Os Maias” a ameaça é a bancarrota. Adaptar o Eça é fácil, pela história fluida do livro mas complicada porque o filme deveria ter 20 horas se quisesse ser fiel. E eu tentei não ser traidor. Repito: o problema foi saber o que cortar. Ajudou-me saber que o próprio Eça, num comentário sobre o seu livro, escreveu que, se lhe pedissem para resumir “Os Maias”, ele publicava apenas o Sarau da Trindade e mais nada. Porque está lá Portugal inteiro. A sua demagogia provinciana, a sua subserviência inata, o nosso ‘obrigadinho’. Coisas que voltaram depois da euforia democrática que tivemos com a Revolução de Abril que estão agora cada vez mais presentes. Voltámos a cair cedo nesta nossa saga portuguesa: a pedinchice, a cunha, os padrinhos.
Demorou até conseguir concentrar no filme todos esses elementos? Muito. A adaptação levou-me muitos meses de trabalho. Entretanto, fui descobrindo outras coisas sobre o espírito moderno de Eça que eu não conhecia: que ele tinha uma admiração fabulosa por Courbet, por exemplo. Apreciar um pintor que deu dignidade a pobres e a camponeses não era o gosto normal de um aristocrata bon vivant como Eça. 

Ao ver o filme pensei muito naquela ideia de “Le Rouge et le Noir” em que Stendhal dizia que um romance é um espelho que transportamos ao longo do caminho, ou seja, o reflexo da realidade que ele capta. Disse que gosta de anacronismos e acho que há um espelho assim no filme: é no momento anterior ao encontro entre Carlos e Maria Eduarda em que vemos uma rapariga a ler... “A Capital”
Que é um livro póstumo de Eça, só publicado 25 anos após a sua morte.
A menina a ler “A Capital” no Hotel Central (que eu filmei no Grémio Literário) é outro artifício. É como dizer: “Olhem que isto é falso! O cinema é falso.” Não morre ninguém aqui, ninguém dorme com ninguém aqui... Isto é um artifício mas as emoções, o tédio, o riso são verdade, tão verdade como a cabeleira loura de 180 mil cabelos que usa a atriz Maria FIor (que é morena) no papel da Maria Eduarda. Sempre houve isto nos meus filmes: uma tendência para retirar o tapete dos pés do espectador em determinado momento. Porém, há outras liberdades que o filme toma ligadas à realidade histórica. “La Traviatta” foi levada à cena no São Carlos na época em que Eça escreveu o livro. E é a ópera perfeita para enquadrar a condição da Maria Eduarda no fim da história. A Brasileira também não existia quando o Eça escreveu “Os Maias”, só existia a Casa Havaneza. Mas eu adoro este tipo de anacronismos e A Brasileira aparece nos telões do filme, aproximando o Chiado do que ele é hoje.
Os telões são o esplendor do falso a toda a prova e a prolongação de um gesto estético que já estava no seu primeiro filme, “Conversa Acabada”. Em simultâneo esse esplendor encontra em “Os Maias” um eco na mistura de som: no Rossio ouve-se gente a dizer pregões da época. Gostava que me falasse destes dois aspetos.
Pus pessoas a gritar, como os vendedores gritavam nessa época. Fico contente por eles terem sido ouvidos! A reconstituição de época de um filme destes é impossível de ser feita em Portugal, nunca teríamos dinheiro que pagasse uma recriação do Rossio e do Chiado do fim do século XIX. Podem, contudo, fazer-se pequenos apontamentos e esse, sonoro, é um deles. Já os telões são a apoteose do artifício. Tenho telões de 11metros de altura por 40 de comprido. Foram impressos em gráficas de outdoors. Filmámos num hangar vazio em Azeitão que foi pensado para ser uma espécie de FIL do distrito de Setúbal. Este filme não tem exteriores. E os exteriores simulados que vemos das janelas são telões feitos a partir de óleos pintados por João Queiroz. Ele teve o cuidado de pintar aqueles óleos maravilhosos com uma tal qualidade que não se notam as ampliações. Alguns quadros foram ampliados oito vezes, outros vinte. O João Queiroz, que é para mim o maior pintor português vivo, costuma pintar paisagens. Fiquei surpreendido quando ele aceitou pintar casas e ruas inteiras para este filme. Também fizemos uma pesquisa detalhada dos interiores: o consultório do Carlos no Rossio, por exemplo, foi filmado em Ponte de Lima, numa casa que ainda está decorada como no século XIX. Mas a roupa — e aqui vem outra modificação — não é a roupa do século XIX, que era horrível. Os vestidos das senhoras tinham golas altas, eu tenho decotes. Os fatos dos homens eram insuportavelmente ridículos. Os anacronismos estão em toda a parte, também aqui. Aliás, a Sílvia Grabowski, que fez o guarda-roupa, trabalhou muito com o João Queiroz. Tive a sorte de ter neste filme um grupo de pessoas que souberam criar em conjunto.
Nos seus últimos filmes tem trabalhado com um grupo de atores mais ou menos constante. Mas há neste filme um reencontro, com João Perry, que faz um extraordinário Afonso e com quem não filmava desde “Um Adeus Português”. E duas caras novas: Maria Flor a fazer de Maria Eduarda e Pedro Inês, que é um João da Ega assombroso. Os primeiros ‘contagiaram’ os últimos?
Eu diria que tenho uma família de atores aberta a novos elementos.
O Eça ajudou-me a uni-los. É o Eça que os contagia. A Maria Flor é brasileira, chegou ao filme pela nossa coprodução com o Brasil, mas é curioso: o Eça sugere no livro que a Maria Eduarda pode falar com sotaque brasileiro pela vida comum com Castro Gomes. Ela fez um trabalho incrível. Inventou um sotaque entre o francês, o português e o português do Brasil. O Hugo Amaro e o Pedro Lacerda fazem um Dâmaso Salcede e um Tomás Alencar extraordinários. O Pedro Inês é um caso engraçado, é um performer que vive há 12 anos na Holanda. Voltou para Portugal, onde tem um grupo rock e agora dedica-se ao teatro. Eu raramente fiz castings nos meus filmes, mas fiz neste. Entrevistei atores maravilhosos, mas de repente aparece-me este doido que sabia o texto todo e era o Ega! Foi uma dádiva. Ele estudara o Eça de trás para a frente. E tem a aura dos grandes cómicos, qualquer coisa de Oliver Hardy. A interpretação do Graciano Dias começa no tédio e acaba no drama, até o Carlos perder a compostura e ficar um farrapo, ao passo que o Pedro Inês dá-nos um João da Ega que entra logo a matar, que perturba tudo à sua volta cada vez que entra e sai dos planos. Um e outro fizeram um trabalho notável.
Disse acima que João da Ega é a metade do alter-ego do Eça. Porquê?
Porque o Eça é o Carlos da Maia e é o João da Ega, nem mais. O seu alter-ego está dividido em dois tal como foi dupla a sua vida privada em tantos episódios. Isto é muito raro nos romances daquela época. Eça atirou o romantismo dez anos para a frente rebentou-o. Para passar para o Courbet, provavelmente. Nos romances da época, o incestuoso dava um tiro na cabeça e a rapariga ia para o convento, ponto final. Aqui não, os amigos vão passear o tédio numa viagem pelo mundo, a Maria Eduarda casa-se com um qualquer, tem filhos e continua a sua vida. O único que morre é o velho Afono, com o João Perry a oferecer- me uma interpretação excecional.
E o Alencar e sem querer opor Eça a Camilo é o passado romântico, o negrume de Camilo?
É, mas o Eça recupera-o. Há aquela parte final em que ele recita “A Democracia” e os amigos abraçam-no. Mas no jantar do Hotel Central, que é uma das sequências que mais prazer me deu filmar na vida, Alencar é arrasado. O comportamento altera-se com a entrada dos pratos, do Poulet aux champignons ao Petit pois à la Cohen, até chegar à javardice absoluta. Se aquele jantar começa por falar de um fado em que fadistas e faias têm comportamentos selvagens, como na história da Severa que o filme apanha perto do fim, pior se comportam os nossos amigos civilizados no fim do jantar. O Eça falava disso, que “Os Maias” são a história de um fado português. Uma história sem fim que depois o Eça conclui com aquela ideia de ‘arraso’: os portugueses não correm nem pelo poder, nem pelo amor, nem pela glória. Mas já para um jantarinho... correm que nem doidos. 

Ah, e o episódio do tipo que se esquece do chapéu, que espantosa cena de gag deu ela ao fi!me...
Isso é brilhante, é Eça puro: um tipo à procura do chapéu que insiste em perturbar o momento mais dramático da história. É sublime.
Lembro-me de falar consigo sobre o poder da farsa quando fez “O Fatalista” a partir de Diderot. A farsa também e aplicável a “Os Maias”?
Há um comentário de irrisão que é aplicável e que se descobre nas várias camadas do livro. O Eça é feito de pessoas complexas cheias de contradições. Temos o direito e sempre o avesso, perpetuamente. Também tenho aprendido isso, com o envelhecimento: tenho cada vez menos certezas. E este livro abriu-me outra porta, isto é: permitiu-me corromper o ‘estilo Botelho’. Corromper coisas que o Manoel de Oliveira me ensinou: que só há um ponto de vista para cada plano, por exemplo. Há outra corrupção aqui, que é a do Eça sobre mim, como se ele me dissesse agora: ‘Calma rapaz, não tenhas tantas certezas sobre as coisas, deixa entrar o vento entre o campo e o contracampo.’ Isto é novo nos meus filmes e na maneira como dirijo os atores. Perdi o medo que tinha deles. E depois acontecem-me coisas que não sei explicar, como aquele plano que me deu a Maria João Pinho, quando a Condessa de Gouvarinho chega às lágrimas dentro na carruagem, no momento certo.
Há algumas cenas de cama no filme. Lembro-me da decisão de mise en scène em que o Conde de Gouvarinho põe a mão na testa ao mesmo tempo que o Carlos apalpa a Condessa noutra divisão da casa. E há a noite fatal, aquela em que Carlos dorme com a Maria Eduarda já sabendo que ela é sua irmã mas esta cena é filmada de forma radicalmente diferente, aqui não pode haver irrisão.
Não pode e esse é o momento em que eu violo o Eça. No livro, só há uma referência, violenta, entre o encontro sexual dos dois irmãos. Há um só encontro. Depois vem a angústia. Eu mantenho esse encontro em suspenso. No filme, podem ter sido vários. Quis que o desejo continuasse para Iá do tabu. A cena é filmada de forma diferente, sim: com cinefolio a tapar os projetores, mas com pequenos buracos para que a luz apenas ilumine pedaços, partes dos corpos. Aquela é uma cena de política e de vísceras, não pode ser voyeurista, não pode excitar ninguém, é uma cena de carne, de rasgões, de violação — porque Carlos da Maia já sabe o que nós sabemos também. Nessa sequência carnal, física, animalesca, suicida-se uma classe. E mata-se um avô. Um avô do Iluminismo e do Progressismo que outrora fora um revolucionário e que acaba os seus dias com o “Cândido” de Voltaire na mão, regressando à infância. Esta é a ideia do fim de Portugal, figurada no velho Afonso da Maia, que morre preso à raiz e à terra, na Quinta de Santa Olávia. Com ele não morre só um avô, só uma pessoa. Morre Portugal.
Francisco Ferreira, Expresso, 6 Setembro 2014

SONO DE INVERNO || 17 FEVEREIRO || 21H30 || IPDJ

SONO DE INVERNO
Nuri Bilge Ceylan
Turquia/França/Alemanha, 2014, 196’, M/14

FICHA TÉCNICA
Título Original: Kis uykusu
Realização - Nuri Bilge Ceylan
Argumento - Nuri Bilge Ceylan e Ebru Ceylan
Montagem - Nuri Bilge Ceylan e Bora Göksingöl
Fotografia - Gökhan Tiryaki
Interpretação:  Haluk Bilginer,  Melisa Sözen, Demet Akbag
Ano: 2014
Origem:  
Turquia/França/Alemanha
Duração: 196´


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cinema de Cannes – Palma de Ouro
Festival de Cinema de Cannes – Prémio FIPRESCI






CRÍTICA
A Palma de Ouro de Cannes é um filme magnífico sobre gente que procura reencontrar o equilíbrio num mundo gelado.
A palavra que melhor define aquilo de que o espectador se deve munir ao entrar para Sono de Inverno é “paciência”. O que é suficiente para assustar o mais incauto, mas não deve ser tomado como negativo: o espectador precisa de paciência porque o filme de Nuri Bilge Ceylan é como os medicamentos de acção lenta, que levam tempo até produzirem o efeito desejado. 
No caso de Sono de Inverno, é preciso tempo para nos envolvermos nos pequenos dramas quotidianos num canto remoto da Turquia e começarmos a desatar os nós passivos-agressivos que o novo filme do realizador turco, premiado com a Palma de Ouro em Cannes 2014 e inspirado livremente em contos de Anton Tchekov, nos apresenta.
É preciso tempo para perceber a dimensão do que se passa neste Hotel Othello, escavado nas montanhas da Anatólia, durante um inverno rigoroso com poucos turistas. O tempo é a chave de Sono de Inverno como já o fora do anterior Era uma Vez na Anatólia (2011, também inspirado por Tchekov) – o tempo que decorreu antes de entrarmos na sua história, o tempo que se encarregou de destruir os sonhos das suas personagens, que se deixaram aprisionar como em âmbar e se debatem em desespero sem saber como lhe escapar. À superfície, o filme é a história de um casamento a dar as últimas, entre um actor reformado que gere o hotel e as propriedades familiares e a sua esposa mais jovem que se entretém com obras de caridade. Mas é também sobre o mal-estar da irmã do actor, que se ressente do papel secundário a que o destino a condenou; sobre um dos inquilinos do actor, cujo orgulho o impede de aceitar a generosidade sem segundas intenções; e sobre o actor que continua a ver o mundo como um palco e acredita genuinamente que basta parecer para esconder o que se é. E é, também, sobre o abismo que progressivamente se alarga entre ricos e pobres, crentes e ateus, citadinos e rurais, intelectuais e trabalhadores. Sobre a Turquia moderna na encruzilhada polarizadora a que Recep Tayyip Erdogan a levou, mas que é também um espelho da polarização social que alastra um pouco por todo o mundo. 
Parece muito? Parece certamente ambicioso. Talvez em demasia – afinal, Nuri Bilge Ceylan faz hoje parte de uma certa elite do cinema de autor global, que dramatiza as crises existenciais dos nossos dias de modo algo sisudo, e que parece pregar aos convertidos de uma posição de conforto. Mas isso não leva em conta o rigor quase maníaco com que Ceylan estrutura metodicamente tudo o que aqui se passa, com a precisão de relojoeiro com que dispõe as peças, com a atenção que empresta a cada um dos seus actores, com o modo como torna o cenário, fotografado por Gökhan Tiryaki com uma beleza de cortar a respiração, em personagem a tempo inteiro da sua história. A paciência com que entramos em Sono de Inverno será sobejamente recompensada pelo fim de mais de três horas de projecção que passam a voar – porque as passámos com gente de carne e osso que, se calhar, até reconhecemos do mundo à nossa volta.
Jorge Mourinha, publico.pt/





PASOLINI, de Abel Ferrara | 10 Fevereiro | IPDJ | 21h30



PASOLINI
Abel Ferrara, França, 2013, 86’, M/18


FICHA TÉCNICA
Título Original: Pasolini
Realização: Abel Ferrara 
Argumento: Maurizio Braucci e Abel Ferrara uma ideia de Nicola Tranquillino e Abel Ferrara 
Montagem: Fabio Nunziata
Fotografia: Stefano Falivene
Interpretação: Willem Dafoe, Riccardo Scamarcio, Ninetto Davoli, Maria de Medeiros
Ano: 2013
Origem: França
Duração : 86´




CRÍTICA
Figura essencial na história do moderno cinema italiano, Pier Paolo Pasolini (1922-1975) surge, agora, como personagem central de um filme assinado pelo americano Abel Ferrara — um retrato notável, centrado numa magnífica interpretação de Willem Dafoe.
Escusado será dizer que nunca seria simples revisitar, em filme, a vida de uma personalidade tão fascinante, e também tão cheia de contrastes, como Pier Paolo Pasolini.
O autor de filmes como "O Evangelho Segundo São Mateus" (1964), "Decameron" (1971) ou "Salò ou os 120 Dias de Sodoma" (1975) foi, afinal, um criador tão ousado no plano temático como inventivo no domínio das linguagens — e, convém não esquecer, como cineasta, mas também enquanto escritor.
Ao abordar a figura de Pasolini, o americano Abel Ferrara resiste a qualquer caracterização banalmente biográfica, muito menos determinista. Aliás, o seu "Pasolini" começa por se distinguir pelo arco temporal que escolhe — trata-se de revisitar apenas o derradeiro dia de vida do cineasta (2 de Novembro de 1975), quando foi assassinado numa praia de Ostia, nos arredores de Roma.



Não estamos, assim, perante uma "evocação" tradicional. Por um lado, o filme mostra-nos um Pasolini empenhado no lançamento daquele que seria o seu derradeiro filme ("Salò"), ao mesmo tempo que se mantém uma voz activa na discussão da situação política em Itália; por outro lado, através da contaminação de diversos elementos (em particular a escrita de um argumento que deixaria inacabado), deparamos com um criador reflectido no espelho dos seus fantasmas, afinal discutindo sempre os sentidos da sua intervenção pública.
Para a vibração emocional dos resultados, é obviamente essencial a composição de Willem Dafoe. Ferrara dirige-o muito para além de qualquer lógica "ilustrativa", pedindo-lhe antes a definição de uma personagem envolvida num turbilhão de desejos e ideias que, em última instância, nos conduzem à discussão do próprio lugar social do artista. Nesta perspectiva, para além da sua visão dialéctica de Pasolini, o filme "Pasolini" pode ser também uma sugestiva porta de entrada no seu universo literário e cinematográfico.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


ENTREVISTA AO REALIZADOR
Será que podemos dizer que o seu Pasolini é uma personagem à procura de algum tipo de redenção?
Não sei. Para mim, e também para o Willem Dafoe, tratava-se de tentar perceber o que estava a acontecer na cabeça de Pasolini. Em boa verdade, gostava de saber como é que Pasolini definiria a palavra “redenção”. Pode dizer-se que ele foi o centro de toda uma paisagem criativa em que sempre soube encontrar o equilíbrio entre o trabalho e a família, garantindo a si próprio o tempo que precisava para escrever, para fazer filmes. Mais do que isso: o tempo para escapar a tudo isso e procurar aquilo que sentia necessidade de procurar. Em particular procurando as “razões” (entre aspas) do seu prazer — podia não ser o prazer dos outros, mas era o seu. E é preciso não esquecermos que ele viveu a tragédia da Itália: a ascensão do fascismo, a invasão dos nazis e depois, num certo sentido, a invasão dos americanos e dos exércitos aliados — foram, afinal, momentos que conduziram à libertação de Itália. Seguiu-se a tomada do poder pelos democrata-cristãos, uma “era dourada” (de novo entre aspas) de progresso e daquilo que para ele era o maior flagelo, ou seja, o consumismo. Creio que, de certa maneira, como intelectual, como homem de acção, ele se sentia responsável por tudo isso — como tinha sido possível o país ter chegado ao que chegou?
Através dele, acabamos por rever também a história de Itália.
É uma realidade que ele não pode nem quer evitar. Quando se vive dessa maneira, no fim de tudo isso há qualquer coisa de destino, de “karma” — acabou morto numa praia... Pasolini sabia a vida que vivia. Na sua derradeira entrevista, foi ele próprio que o disse: “Tenho de pagar pelas consequências das minhas acções e vou até ao inferno, se for preciso”. Voltando à palavra “redenção”... Como é que podemos definir redenção?
Talvez no sentido de não desistirmos de acreditar que o Bem é possível contra o Mal. Para além de todas as diferenças de história e contexto, a questão também surge a propósito da personagem de Devereaux (Gérard Depardieu), em Welcome to New York, quando diz “sei que não vou mudar”.
E, no caso dele, sem qualquer hipótese de redenção. Devereaux é alguém que não vai, obviamente, sentar-se e dizer: “O problema talvez seja eu...”
Centrando-se no derradeiro dia de vida de Pasolini, o seu filme evoca Salò ou os 120 Dias de Sodoma, um objecto cinematográfico que lhe valeu muitos ataques; houve quem considerasse que a “transposição” da obra do Marquês de Sade para o fascismo italiano não fazia sentido.
Eram acusações deslocadas e absurdas. Ele viveu durante o fascismo, o irmão era um “partisan” que foi assassinado... Pasolini deixou uma obra visionária, de uma clareza admirável e, ao mesmo tempo, com um invulgar poder de abstracção. Aliás,Salò é quase um documentário. O que é que as pessoas pensam que os fascistas fizeram? Assassinaram seis milhões de pessoas!
Quase se pode dizer que vemos Pasolini mais como escritor do que como cineasta. Qual foi a importância dos seus escritos na elaboração do filme?
Foi essencial, em particular a leitura dos derradeiros trabalhos. Num certo sentido, foi mesmo importante que fossem trabalhos inacabados, confrontando-nos com interrogações dramáticas — por exemplo, até onde poderia ter ido um livro como Petróleo? E o argumento que ele não concluiu?

Nessa perspectiva, Pasolini não se apresenta como um filme biográfico.
Afinal de contas, que sabemos sobre ele? É o tipo de pessoa que nem sequer os melhores amigos sabiam como ele era. E sabiam que não sabiam — é esse o belíssimo mistério de Pier Paolo.
E quanto a si, aceita definir-se como um cineasta independente?
É preciso ser independente, no sentido em que é importante pôr em cada filme a nossa individualidade, a nossa visão — a minha maneira é... a minha maneira, não há ninguém como eu.
Há algum cineasta ou cineastas que siga, em particular?
Não sigo ninguém, estou ocupado a fazer os meus filmes. Houve uma altura da minha vida em que via filmes e mais filmes, como um viciado. Esse período acabou: ando a fazer filmes, não a vê-los. Não vejo televisão, embora acompanhe a minha equipa de futebol, os New York Jets. E leio. E toco guitarra.
Entretanto, Welcome to New York continua inédito nos EUA.
É uma batalha que estamos a travar, porque não estou disposto a abdicar do direito à montagem final. E ninguém vai tocar na “porcaria” do meu filme!
João Lopes, sound--vision.blogspot.pt/