UM POMBO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA | 1 DEZEMBRO | IPDJ | 21H30

UM POMBO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA

Roy Andersson
Suécia/ Alemanha/ Noruega/ França, 2014, 101’, M/14

FICHA TÉCNICA
Título Original: En duva satt på en gren och funderade på tillvaron
Realização e Argumento: Roy Andersson
Montagem: Alexandra Strauss
Forografia: István Borbás e Gergely Pálos
Música: Hani Jazzar e Gorm Sundberg
Interpretação: Holger Andersson, Nils Westblom e Viktor Gyllenberg
Origem: Suécia/Alemanha/Noruega/França
Duração: 101'

Festivais e Prémios
Festival de Veneza - Leão de Ouro




CRÍTICA
Da Suécia chega um humor frio, formalista, surreal, cruel, de uma absoluta singularidade. Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2014.
Dois homens vivem de comerciar artigos carnavalescos. Não têm muita variedade na mala de cartão que transportam consigo, só dentes de vampiro, sacos de gargalhadas e máscaras de látex (o ‘Tio-de-um Dente-Só’) — e o ar bisonho que trazem no rosto, de uma quase desesperante melancolia, também não é muito favorável ao negócio. Mas eles insistem, eles querem ajudar as pessoas a divertir-se, proclamam. Sem sucesso algum. Mas, entretanto, conduzem-nos por uma infinidade de espaços e situações, umas banais, outras excêntricas, e revelam-nos um mundo onde o mais horrível é a sombria adjacência entre a trivialidade e o grotesco, a solidão e a multidão, a vanidade da vida e a infalibilidade da morte. Tal como os seus personagens, o sueco Roy Andersson não nos faz rir, em gargalhada, mas faz-nos sorrir, às vezes um riso casquinado, como quem quer afastar uma assombração, um farrapo de medo, às vezes só rimos por dentro. É que aquele mundo absurdo que ele constrói até ao mais ínfimo detalhe, não existe em lado algum, mas é o nosso mundo, reconhecemo-lo, tal como reconhecemos o nosso rosto numa galeria de espelhos deformantes. 
Para lá do riso — ou concomitante com ele, já que a profundidade de campo é uma das alavancas deste humor — o espectador tem a grata liberdade de poder ter um olhar largo sobre o ecrã. Andersson constrói cada plano como um quadro, com uma invariável justeza de composição. Falo de volumes, de linhas, de pontos de fuga, de uma geometria que se exibe, como uma glória formal que nos embevece. Então, num certo lugar, está o que podemos considerar o centro da ação. Mas há sempre um pormenor do cenário que nos apela, pessoas lá ao fundo que nos desviam, uma porta que abre para outro espaço onde está alguém ou acontece alguma coisa, uma janela que deixa ver não sabemos bem o quê — e o nosso olhar erra por ali. E essa errância é um prazer, porque vamos descobrindo coisas — como nos quadros detalhistas de Dalí. Não é estulto invocar aqui o pintor surrealista catalão, já que a deformação do mundo que Roy Andersson trabalha bem se pode avizinhar da que o génio de Figueres operava. Com uma essencial diferença: o cinema de Andersson é, figurativamente, de um realismo obsessivo. A respiração surreal é uma coisa que vem de dentro, do nonsense de alguns diálogos, da repetição verbal de lugares-comuns, da incongruência de uma situação. Depois, é extraordinário como, em pleno reino do sarcasmo, o cineasta consegue provocar emoções. É o caso do surpreendente canto no bar, em 1943, quando se trocam shots por beijos, já que os marinheiros dinheiro não têm ou a estranhíssima sequência da máquina com enormes cornetas onde se metem escravos negros — e que depois é posta sobre chamas, a rodar, com eles lá dentro. Em verdade vos digo, há um frémito que perpassa e dura. 
De Roy Andersson já estreara, em Portugal, em 2011, “Tu Que Vives” com mitigada receção. Agora, esse filme e “Canções do Segundo Andar” (Prémio do Júri em Cannes, 2000), o primeiro da trilogia que ora se encerra, entram em exibição ao mesmo tempo que “Um Pombo Pousou Num Ramo a Refletir na Existência”. Excelente oportunidade para o público tomar contacto com o universo de um dos mais originais criadores cinematográficos do nosso tempo. Ainda por cima, não esquecer, é para rir!

Jorge Leitão Ramos, Expresso, 27/6/15



ENTREVISTA COM ROY ANDERSSON
Como é que os filmes da TRILOGIA DOS VIVOS estão ligados, e como é que são diferentes uns dos outros?
É minha convicção que qualquer filme possa – e deva – ser visto a qualquer altura nos seus próprios termos. Dentro de cada filme individual, cada cena pode na verdade ser vista separadamente. UM POMBO POUSOU NUM RAMO tem 39 cenas, e a minha ambição é que cada uma delas permita ao público ter uma experiência artística. Como um todo, a TRILOGIA DOS VIVOS tenta desafiar os espetadores a examinar a sua própria vida, perguntando-lhes “O que estamos a fazer? Para onde vamos?” Procura levar à reflexão e à contemplação, olhando para a nossa existência com uma grande dose de tragicomédia, de “Lebenslust” - o desejo de viver, e um respeito fundamental pela existência humana.
A TRILOGIA DOS VIVOS mostra que a humanidade está potencialmente a caminho do apocalipse, mas também que o resultado final está nas nossas mãos. CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR pulsa com o Milenialismo, a partir da cena com o vendedor que deita fora os crucifixos, simbolizando o abandono da compaixão e da empatia, à cena das casas em movimento, evocando o pânico das crises financeiras cíclicas, em si pequenos apocalipses. Os temas da culpa coletiva e da vulnerabilidade eram centrais a esse filme. TU, QUE VIVES representava a ousadia de ir em direção a sonhos, uma transição que me abriu todo um reino de novas possibilidades. Antes, as minhas personagens comentavam os seus sonhos. Agora, com UM POMBO POUSOU NUM RAMO, as cenas são simplesmente oníricas, sem mais explicações. UM POMBO POUSOU NUM RAMO também provoca mais do que os outros dois filmes, e o tom é maioritariamente de “Lebenslust”, mesmo que as personagens sejam tristes e lutem muito.
De que medida a passagem do 35mm para o digital afetou esse processo?
À medida que envelhecemos torna-se muitas vezes difícil mudar de métodos de trabalho, mas desta vez não foi esse o caso. Sinto-me muito positivo quanto a esta mudança, ter rodado o filme digitalmente. Sinto-me feliz por ter encontrado o caminho neste novo método, com o apoio dos meus colaboradores notáveis, evidentemente. Na prática, significou que posso ancorar-me mais facilmente em planos de conjunto. Anteriormente estava mais preocupado e mais ansioso com manter a imagem focada ao fundo. Sou fã do foco profundo e da profundidade de campo, e uma câmara digital permitiu-me obter uma definição geral que me parece espantosa.
As estéticas abstrata e artística de UM POMBO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA são reminiscentes do meu trabalho anterior. As imagens são ligeiramente mais brilhantes e mais nítidas devido ao uso da câmara digital. Para além disso, procurei incluir cenas mais dinâmicas, para que o novo filme não fosse tanto uma série de quadros, e para lhe dar um ritmo mais distintivo. No cômputo geral, é o melhor de que eu e a minha equipa somos capazes. Levámo-lo ao limite.
O seu cinema tem sido inspirado pela pintura, de artistas da Renascença a Edward Hopper passando pela Neue Sachlichkeit ou Nova Objetividade. Quais foram os artistas mais importantes para UM POMBO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA?
Diria Otto Diz e Georg Scholz – os dois pintores alemães cujas inovações artísticas foram inspiradas pelas suas experiências na I Guerra Mundial. Devastada pela guerra, a sua visão do mundo ressoa de um modo do qual me sinto muito próximo, sem que eu tenha jamais ido à guerra. Ao crescer, o realismo era a única coisa que me interessava.
Tudo o resto era apenas estranho – burguês, na verdade – mas à medida que o tempo passa sinto-me cada vez mais fascinado pela arte abstrata, a começar pelo simbolismo, pelo expressionismo e pela Neue Sachlichkeit. É muito mais interessante do que a representação puramente naturalista. Hoje quase acho uma representação naturalista aborrecida, enquanto a interpretação pessoal de uma expressão abstrata é extraordinária, com van Gogh como o mestre. Ele consegue pintar três corvos a voar sobre um campo de milho – e enquanto espetador acreditamos nunca ter visto nada assim. É uma espécie de “super-realismo”, uma ambição que também tenho para UM POMBO POUSOU NUM RAMO, onde a abstração é condensada, purificada, e simplificada. As cenas devem emergir como se fossem limpas, como memórias e sonhos. Sim, não é uma tarefa fácil: “c’est difficile d’être facile” - é difícil ser fácil, mas tento.
Bruegel o Velho é outra inspiração. Entre as suas obra-primas da Renascença encontra-se uma paisagem requintada chamada Caçadores na neve. De uma colina coberta de neve que dá para uma cidadezinha flamenga, vemos os aldeões a patinar sobre um lago gelado num vale. Em primeiro plano, três caçadores e os seus cães regressam de uma caçada. Sobre eles, empoleirados nos ramos nus de uma árvore, quatro pássaros observam curiosos as ações das pessoas lá em baixo. Bruegel especializava-se em paisagens detalhadas povoadas por camponeses e adotava frequentemente o ponto de vista do pássaro para contar uma história de sociedade e da existência humana. A sua obra também inclui alegorias fantásticas dos vícios e das loucuras do homem, usando uma sátira sem falhas para exprimir as trágicas contradições do ser. Em Caçadores na neve, os pássaros parecem estar a pensar: “O que estão os humanos a fazer lá em baixo? Porque estão eles tão atarefados?” 

Também quero referir um pintor naturalista chamado Ilya Repin, que realizou um quadro notável sobre os Cossacos. Levou-lhe onze anos; é uma obra enorme baseada em esboços e rascunhos. Ao fim de 11 anos sentia-se satisfeito com o quadro. Hoje faz parte do património mundial. Claro que soa pretensioso aspirar ao património mundial mas, ao mesmo tempo, enquanto artista, temos de nos empenhar e de levar a nossa expressão ao limite. Infelizmente, isso é hoje muito difícil face aos aspetos financeiros do cinema e à atitude e ao recrutamento dos cineastas. Os homens de negócios tomaram conta da expressão do cinema.
Entristece-o que os cineastas contemporâneos não se inspirem mais na pintura?
Acho isso muito deprimente. É provavelmente por isso que o cinema hoje em dia é tão diluído e tão pouco interessante.
O imaginário é muito parco. E isso, por sua vez, deve-se à economia; não há tempo nem dinheiro para se ser mais rigoroso. Ainda assim, acho muito triste que tão poucos cineastas estejam hoje dispostos a cuidar dos elementos visuais de fazer filmes, mesmo que sejam caros e levem muito tempo. Precisei de quatro anos a tempo inteiro para completar este filme.
Conseguiu fazê-lo sem o dinheiro da publicidade?
Sim, ao contrário dos dois filmes anteriores na TRILOGIA DOS VIVOS, financiámos UM POMBO POUSOU NUM RAMO sem filmar publicidade durante as rodagens. Mesmo que o dinheiro extra pudesse ter dado jeito aqui ou ali, senti-me muito satisfeito por poder concentrar-me inteiramente no filme.
Quando CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR estreou em 2000, descreveu o seu estilo como uma espécie de “trivialismo”. Continua a ser uma definição válida?
Sim, penso que UM POMBO POUSOU NUM RAMO é um exemplo ainda mais nítido do que considero “trivialismo”.
Refiro-me ao trivial amplificado para uma experiência mais apelativa. E isso também vale para a pintura no geral, toda a história da arte está cheia de trivialidades porque elas são parte das nossas vidas, são as premissas das nossas vidas.
Adoro isso, e de futuro gostaria de me tornar ainda mais trivial do que fui neste filme. Mais ainda do que nas cenas com o rei sueco Carlos XII a caminho do campo de batalha em Poltava, onde aparece inesperadamente numa situação muito trivial, sentindo-se com sede e mais tarde a precisar de usar a casa de banho.
A alegada homossexualidade de Carlos XII é aqui sublinhada a fim de fazer este conquistador idiossincrático e muito masculino parecer mais humano?
Na Suécia ele é geralmente considerado um verdadeiro macho, e por isso um símbolo forte para muitas organizações de direita. Mas agora também sinto um grande respeito pela beleza da cena, sobretudo quando o rei se sente subitamente tão ligado ao jovem empregado de bar. Estou muito contente com a cena. No fundo, qualquer que seja a posição que se tem na sociedade, as pessoas são sensíveis e vulneráveis. Ilustrar isso é aquilo que basicamente quero conseguir com o meu trabalho.
Acredita que o mundo tem cada vez menos compaixão e empatia?

A compaixão faz parte de todos nós a dada altura. É a minha grande pena, e a pena de todos nós, que esse elemento seja muitas vezes reprimido em nome do comercialismo. Estou a pensar em Emmanuel Levinas a discutir o rosto do ser humano e o respeito por uma outra existência, um outro presente, que é recompensador. Numa cena do meu filme, um velho lamenta o seu comportamento mesquinho e pouco generoso ao longo da sua vida: “É por isso que fui tão infeliz”, diz a um empregado de mesa.
Mas as palavras não são suficientes para criar a compreensão completa e a comunicação total – um facto que explica de certo modo a ausência de palavras na TRILOGIA DOS VIVOS. Penso que o retrato visual do ser humano, tanto na pintura como no cinema, nos diz mais do que as palavras. Não sou capaz de o explicar de outro modo. Também é por isso que gosto de Beckett – À ESPERA DE GODOT, por exemplo. É tão trivial, tão lacónico, com estas pessoas a não se compreenderem mutuamente. Mas é tão verdadeiro. As minhas cenas são supostas mostrar os momentos de incompreensão e os erros feitos por gente que se encontra mas que nunca se liga verdadeiramente ao outro, porque estão sempre demasiado apressados a perseguir aquilo que lhes parece ser importante.
Parece ter uma afeição especial pelos vendedores – os protagonistas dos seus filmes vendem crucifixos, frigoríficos e, como em UM POMBO POUSOU NUM RAMO, artigos de diversão. É uma espécie de auto-retrato seu?
De certo modo vem da minha infância, dos meus familiares que vendiam. Mas ser vendedor é tão universal; no fundo a vida acaba por ser muito isso. Pode-se defender que vender e promover é o verdadeiro fundamento de uma sociedade civilizada. Vou convencer este financiador ou esta televisão que isto é interessante e importante. Eu próprio sou um vendedor, somos todos. Somos supostos promover-nos a nós próprios, chegar aos outros com as nossas coisas e as nossas ideias.
Como lhe surgiu a ideia dos dois vendedores viverem num abrigo?
O hotel surge diretamente da minha experiência em Gotemburgo. O sítio onde cresci é hoje um abrigo, e infelizmente o meu irmão, que foi viciado em drogas durante muito tempo, acabou por ir lá parar. Por isso conheço os destinos nesse ambiente. De modo mais abrangente, esses companheiros são diretamente modelados na literatura: D. Quixote e Sancho Pança; RATOS E HOMENS de John Steinbeck; e não esquecer, na história do cinema, BUCHA E ESTICA, que também serviram de inspiração a Beckett. Os tipos do filme são uma versão de BUCHA E ESTICA. Um deles é um pouco concencido, enquanto o outro não é muito capaz; é um pouco mais triste e chora facilmente. Sou muito inspirado por estas duplas masculinas da história cultural.
E na sua relação desigual, os dois vendedores também representam um universo mais alargado, o opressor contra o oprimido.
Sim, isso está a tornar-se cada vez mais evidente. Hoje falei com o meu diretor de fotografia, István Borbás, sobre este problema prevalecente de uma sociedade com cada vez menos solidariedade. Hoje em dia as pessoas são supostas pensar apenas em si próprias, trabalhar para o seu próprio lucro caindo em cima dos outros. Nem ouso pensar nas terríveis consequências deste comportamento. É um desastre, uma alienação que vai fazer os jovens perder a fé por completo.
Odeio a humilhação, odeio ver os outros a serem humilhados e odeio ser eu próprio humilhado. De certo modo todos os meus filmes são sobre a humilhação. Venho de uma familia de classe operária e vi como os meus familiares se humilhavam perante os seus superiores, um respeito exagerado pela autoridade que os torna incapazes de falar, que lhes deixa apenas um sentimento de culpa. Senti isso toda a minha vida e decidi lutar contra isso.
E conseguiu ganhar essa luta?
Sim, no sentido em que não sou como os meus avós, não tenho o mínimo medo das classes dominantes. Mas viverei toda a minha vida com essa humilhação, e com o ódio da autoridade. Essa é também a razão principal das minhas caricaturas recorrentes de monarcas. É um modo de blasfemar contra a história da classe trabalhadora.
Em UM POMBO POUSOU NUM RAMO existe também uma cena rigorosamente encenada onde um crime terrível é colocado num contexto histórico fictício. É quase uma provocação na sua combinação de crueldade e beleza. Refiro-me à cena de extermínio perto do fim do filme. Colonialistas britânicos forçam escravos para dentro de um cilindro de cobre, e música bela e lenta nasce a partir dos últimos gritos das vítimas.
Enquanto artista é importante, mesmo necessário, abalar os preconceitos, mexer com as pessoas, acrescentar coisas à culpa que se sente no mundo. Ainda somos supostos sentir vergonha. Tenho esta cena na cabeça há 50 anos, e existe nela uma grande série de referências históricas. Estou muito feliz por ter conseguido filmá-la sem ser obsequioso ou sentimental. Há em UM POMBO POUSOU NUM RAMO A REFLECTIR NA EXISTÊNCIA uma série de cenas do mesmo tipo. No mínimo tentei criar uma tensão grande entre o banal e o essencial, o cómico e o trágico, mas mesmo as cenas trágicas contêm energia e humor. Vejo UM POMBO POUSOU NUM RAMO como cómico do princípio ao fim, emocional, enaltecedor. Mas de vez em quando o público também vai ver momentos de terror. A gama do humor ao horror vai ser muito grande.
A TRILOGIA DOS VIVOS chegou agora ao seu fim. Será este também o último filme de Roy Andersson?
Não, na verdade já estou a trabalhar num novo filme. Vai ser ainda mais louco, com mais encanto e apelo. UM POMBO POUSOU NUM RAMO também é assim, mas o próximo vai levar essa loucura ainda mais longe. Mas nunca vou abandonar o provável e o possível. O meu cinema tem de estar ancorado num certo lado prático, uma espécie de realismo estilizado.

Vai continuar a usar o seu estilo – planos de conjunto e câmara imóvel, planos longos?
Sim, este modo de trabalhar permite-me situar as personagens no universo que as rodeia em vez de as isolar. Não consigo sequer ver filmes que têm consistentemente planos curtos para acelerar a história. Estou empenhado neste tipo de valores visuais, criando espaço para uma composição mais aberta e mais democrática. Há um sociólogo francês que cito por vezes, Loïc Wacquant, estudante de Bourdieu.
Quando ele voltou a França depois de algum tempo como professor convidado nos EUA, descreveu o que encontrou lá como um fenómeno americano: “a hostilidade para com o pensamento límpido”. Considero que a composição do meu trabalho favorece esse pensamento límpido. Tudo está visível e bem iluminado. Juntamente com os meus colaboradores tento contestar a “hostilidade para com o pensamento límpido”.
Jon Asp

CÃES ERRANTES | 24 NOVEMBRO | ESSUALG | 21H30


CÃES ERRANTES
Tsai Ming-Liang
Taiwan/França, 2014, 138’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título original: Jiao You
Realização: Tsai Ming-liang
Argumento: Peng Fei Song, Ming-liang Tsai, Cheng-Yu Tung
Montagem: Chen-Ching Lei
Fotografia: Pen-jung Liao, Ching-Hsin Lu, Woon-Chong Shong
Interpretação: Chen Shiang-chyi, Wu Jin-kai, Lu Yi-Ching, Lee Kang Sheng
Origem:Taiwan/França
Ano: 2013
Duração: 138’

PRÉMIOS
Festival de Veneza 2013 - Grande Prémio Especial do Júri


CRÍTICAS

Entre o realismo e o onirismo
Nome central na história do cinema de Taiwan, Tsai Ming-liang arrebatou, com "Cães Errantes", um Grande Prémio especial do júri no Festival de Veneza de 2013 — uma estreia para redescobrirmos uma obra que vive da procura de novas linguagens.
E se o cinema fosse, no essencial, uma arte de conhecer os outros, para lá de todas as diferenças, ou melhor, através de todas as diferenças? Por vezes, há filmes capazes de nos devolver a essa sensação primordial: através deles, das suas histórias e personagens, descobrimos mundos que estão para além das evidências do nosso mundo. "Cães Errantes", de Tsai Ming-liang, é um desses filmes: o retrato íntimo de um pai, com os seus dois filhos, tentando sobreviver nas margens da sociedade de Taiwan, mais concretamente em zonas degradadas da cidade de Taipei.
Vale a pena lembrar que Tsai Ming-liang é um nome fulcral na história da produção de Taiwan ao longo do último quarto de século, autor de títulos como "O Rio" (1997), "Adeus, Dragon Inn" (2003) ou "O Sabor da Melancia" (2005). E se é verdade que há no seu trabalho uma atenção constante aos que lutam por vencer as barreiras da pobreza, não é menos verdade que a sua obra está longe de poder reduzir-se a um convencional testemunho "social".
"Cães Errantes" pode ser uma excelente porta de entrada neste universo paradoxal, por assim dizer, entre o realismo mais cru e um onirismo sempre à beira do pesadelo. Filmando quase sempre através de planos de longuíssima (e fascinante) duração, Tsai Ming-liang apresenta-se, afinal, como um mestre do tempo e suas durações, num exercício em que a observação do real se torna inseparável de um verdadeiro tour de force dos actores.
No limite, aquilo que Tsai Ming-liang propõe é a participação cognitiva e sensorial numa experiência em que o cinema, reproduzindo o mundo, nos devolve também as suas zonas de opacidade e irracionalidade. Ou ainda: faz-nos falta um cinema que nos recorde que a arte de contar histórias através de imagens e sons não tem que obedecer a padrões "espectaculares" universais — "Cães Errantes" é um objecto que nos convoca, assim, para a singular energia de novas linguagens.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


O plano inicial é logo emblemático, mesmo para quem não conheça o cinema de Tsai Ming-liang, malaio de etnia chinesa, cineasta em Taiwan: num quarto de paredes negras tracejadas a espessas rugas brancas, duas crianças dormem, numa enxerga no chão, enquanto uma mulher se penteia, vagarosa. Na banda sonora, sente-se o respirar compassado dos miúdos e o ruido abafado do pente nos cabelos. Da mulher não sabemos logo se será jovem ou madura, é uma das interrogações para a qual temos vagar, entre muitas outras que a duração do plano — quatro minutos em plano fixo — nos consente. Para a maior parte delas não teremos resposta, nem logo nem depois, nunca, mas ficamos a olhar, hipnotizados, porque a pujança de cada plano é compulsivamente absorvente. “Cães Errantes” é todo assim, em planos-sequência, às vezes a câmara planta-se inamovível, como se uma força telúrica a tivesse pregado ao chão, às vezes move-se, em morosas panorâmicas, perseguindo algo que nem sempre é definível. É que se, aqui e ali, o olhar do filme segue figuras humanas, também pode, mais além, roçar uma parede e indagar as suas fendas, as suas feridas. Figuras humanas, digo bem — não faz sentido chamar-lhes personagens, falta-lhes ossatura de identidade e de psicologia para poderem ter esse estatuto ficcional. Estão nas margens da sociedade e queremos tanto que passem de figuras a gente que fazemos, todo o tempo, um esforço para que transitem. E pomo-nos a arquitetar coisas. O que está no ecrã é de tal maneira organizado e estruturado que não nos passa pela cabeça confundir o que vemos com qualquer aleatoriedade. Cada imagem é forte — às vezes quase nos confins da provocação, como os pianos dos homens-cartaz, ao vento e à chuva, assentados numa encruzilhada de tráfego urbano, serão escravos, assombrações, insurrectos raivosos, à espera, à espreita, diante de todos? Olhamos, lá estão eles, cá estamos nós — há sentimentos difusos que circulam. Mas nunca saberemos, nunca teremos a certeza das significações e, mais, suspeitamos que ninguém as tem. Oscilamos entre a fascinação (meu Deus, como este filme é belo!) e a exasperação (meu Deus, como este filme é opaco!). “Cães Errantes” é como um quadro abstrato que interpela zona de conforto do espectador. 
Aqui há uns anos, em entrevista aqui no Expresso, Clara Ferreira Alves perguntou a Álvaro Cunhal se gostava de Picasso. Cunhal respondeu-lhe com sabedoria: “Gostar não é o melhor ponto de partida para apreciar uma obra de arte.” Lembrei-me disto a propósito deste filme de que não gosto, mas que admiro como trajeto entre o cinema tal como o conheço e outro lugar para o qual não quero ir. Porque, quando se abjura a narrativa com a premência que Tsai Ming-liang pratica, o que temos diante dos olhos pode ainda ser cinema? Ou algo que melhor se poderia definir, no domínio das artes plásticas, como instalação audiovisual? Responda quem tiver as definições e as fronteiras que balizam uma coisa e outra. 
Jorge Leitão Ramos, Expresso

TAL PAI, TAL FILHO | 17 NOV | ESSUALG | 21H30


TAL PAI, TAL FILHO
Hirokazu Koreeda, Japão, 2013, 120’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Soshite chichi ni naru/Like Father, Like Son
Realização e Argumento: Hirokazu Koreeda
Fotografia: Mikiya Takimoto
Montagem: Hirokazu Koreeda
Música: Takeshi Matsubara, Junichi Matsumoto e Takashi Mori
Interpretação: Masaharu Fukuyama, Machiko Ono, Yôko Maki
Origem: Japão
Ano: 2013
Duração: 120’

PRÉMIOS
Festival de Cannes – Prémio do Júri
London Film Festival  2013 – Nomeação para Melhor Filme





CRÍTICAS

O segredo de Koreeda está na sua capacidade de transformar os “temas” em simples ressonâncias, que nunca prevalecem sobre um primeiro plano constituído por acções, descrições, gestos, momentos de contemplação. 
Vai-se tornando repetitivo dizê-lo mas cada novo filme o confirma: não deve haver hoje em todo o mundo mais algum cineasta que, como Hirokazu Koreeda, sistematicamente baseie o seu cinema num olhar sobre a infância e, o que é outro passo ligeiramente diferente, num olhar a partir da infância. E sobretudo que o faça tão bem, com tanta graça e delicadeza, no olhar sobre os miúdos mas também na encenação do espaço doméstico e familiar, fazendo as banalidades quotidianas – refeições, jogos de consola, trabalhos de casa – viverem com uma força de “verdadeira vida”, independentemente das circunstâncias mais ou menos dramáticas da narrativa.

Aqui o “drama” já aconteceu quando o filme começa: seis anos antes, na maternidade, dois garotos nascidos na mesma noite foram trocados e entregues às famílias erradas. Uma família abastada, onde o pai é funcionário destacado numa grande empresa, que habita num arranha-céus com uma ampla vista sobre Tóquio; e uma família de condição mais modesta e hábitos menos refinados, moradora no que parece ser um subúrbio de Tóquio. A condição social das famílias não é nada irrelevante, porque a “hereditariedade” (no sentido estrito biológico mas também num sentido social) é uma questão no centro do filme, e também em certos detalhes (como se confere na cena com o discurso da enfermeira responsável pela troca dos bébés). Através da personagem do “pai abastado”, que logo nos primeiros ouvíramos a enunciar reservas ao carácter do filho (“não se importa de perder, não parece meu filho”), lança-se a questão da biologia contra a educação – ao saber que, de facto, o miúdo que educou durante seis anos não é verdadeiramente seu filho, esse pai julga ter encontrado a explicação: é a biologia, o sangue, que é determinante. Propõe assim, perante a renitência hesitante da mulher e do outro casal (mas não dos miúdos, que encaram tudo como uma espécie de jogo), alguma trocas temporárias com vista à troca definitiva das crianças.
Este é o motor narrativo e temático do filme. Como tudo se conclui não vale a pena mencionar aqui, sendo que o final nada tem de surpreendente, é apenas um triunfo do bom senso. Como bom senso é uma das principais qualidades de Koreeda: se Tal Pai Tal Filho é um olhar, umas vezes ínvio outras mais directo, sobre a família japonesa, sobre as divisões sociais no Japão, sobre a preponderância dos homens sobre as mulheres na condução dos destinos familiares, no fundo temas que atravessam há décadas o cinema japonês (Ozu, por exemplo), o segredo de Koreeda está na sua capacidade de, com razoável sucesso (talvez aprendido com Ozu, a quem ele deve alguma coisa), transformar os “temas” em simples ressonâncias, que nunca prevalecem sobre um primeiro plano constituído por acções, descrições, gestos, momentos de contemplação. O casting é perfeito, o dos adultos como o dos miúdos, e tão boas são as cenas de conjunto (as refeições, por exemplo) com a família ou as famílias inteira(s) como as cenas menos apinhadas, só com os garotos e os pais. E nos miúdos sempre esta coisa espantosa (e difícilima de conseguir, por certo) que é através do olhar denotarem uma infinita condescendência, uma espécie de “sabedoria” mais adulta que a dos adultos, pacientemente se submetendo às “experiências” dos pais à espera do momento em que os pais, finalmente, ganhem juízo.
Luís Miguel Oliveira, Público



Um ano depois de ter estreado em Portugal o magnifico “O Meu Maior Desejo”, temos a sorte de assistir à estreia de mais um filme do conceituado cineasta japonês, Hirokazu Koreeda. “Tal Pai, Tal Filho”, vencedor do Prémio do Júri, na 66ª edição do Festival de Cannes. Este é mais um belo retrato sobre a família, sobre o olhar da infância, um tema que o realizador sempre explorou nos seus filmes anteriores. O tema é sempre o mesmo, mas a história é sempre outra e em cada filme ficamos estupefactos com a forma simplista que ele usa para contar várias histórias, que tocam sempre no mesmo assunto. A família. A infância.
Koreeda, que assina também o argumento, conta-nos a história de duas famílias, uma abastada e outra de um meio social mais baixo, que descobrem que os seus filhos foram trocados na maternidade. A primeira é composta por Midori, a mãe, Ryota, o pai, um homem determinado, trabalhador, bem-sucedido, autoritário, que impõe uma educação rígida e planeada ao seu filho Keita, de seis anos. A segunda é composta por Ryusei, o filho, Yukari, a mãe, e Yudai, o pai, que é um lojista que gosta de trabalhar pouco, muito divertido e adora brincar com crianças. As duas famílias vão ter que unir esforços para lidarem com o difícil dilema de terem de escolher entre a força do sangue ou do amor.
A questão que se coloca de imediato ao espectador é se seriamos capazes de trocar um filho adoptivo (por quem temos fortes laços afectivos), por um filho biológico (por quem temos laços de sangue). É deveras um pesadelo para os pais. Durante anos vivemos e investimos numa criança e de repente sabemos que aquele afinal não é o nosso filho biológico. O biológico, é um estranho, mas aquilo que nos une é precisamente o mesmo sangue, nada mais. O que é que conta mais, a educação e o amor ou o sangue, o biológico? Koreeda acaba por responder a isto tudo no fim. Para se ser pai de alguém não é necessário ter-se o mesmo sangue. É o amor, o afecto, a atenção, a educação e o investimento que damos ao filho que faz um bom pai.
Ao contrário do que acontece em “O Meu Maior Desejo”, aqui não é tanto pelo olhar das crianças, mas sim o dos adultos que importa. Neste caso o maior enfoque reside na figura paternal, o Pai, portanto. A personagem Ryota vê-se obrigado a questionar o seu papel de pai e a ver os objectivos que tinha planeado para o seu filho, que afinal não é dele, a serem destruídos. Através de concelhos de amigos, de colegas de trabalho e até do próprio pai, Ryota tenta perceber qual será a opção mais correcta a adotar, sem ferir as duas crianças.
O cineasta torna a pegar num tema complexo e faz uma reflexão pessoal sobre a paternidade através de uma família japonesa contemporânea de uma forma natural e poética, sempre com uma realização quase documental. O realizador preocupa-se também em enfatizar a questão social destas duas famílias, mostrando a grande divisão entre os ricos e os pobres na sociedade japonesa.
As duas horas de filme são talvez um pouco excessivas, no entanto, é uma duração compreensível que permite que as personagens respirem, para que o espectador veja o quotidiano delas, através de pequenas ações e gestos. A minimalista banda sonora de piano, a excelente fotografia e boas interpretações por parte do elenco, fazem deste filme, condoído de sentimentos, um dos melhores do ano. Koreeda continua minimalista e único em bulir todos estes conceitos sobre a família nos seus filmes. O belo poema sobre o amor paternal, “Tal Pai, Tal Filho”, foi, na minha opinião, a melhor forma de terminarmos este ano de 2013.
Tiago Resende, cinema7arte

O PRESIDENTE | 10 NOVEMBRO | ESCOLA SUPERIOR DE SAÚDE | 21H30



O PRESIDENTE
Mohsen Makhmalbaf
França/Georgia/Alemanha/Reino Unido, 2014, 115', M/14

FICHA TÉCNICA
 Título original: The President
Realização: Mohsen Makhmalbaf
Argumento: Mohsen Makhmalbaf, Marziyeh Meshkiny
Fotografia: Konstantine-Mindia Esadze
Montagem: Hana Makhmalbaf, Marziyeh Meshkiny
Interpretação: Misha  Gomiashvili; Dachi  Orvelashvili; Guja  Burduli; Ia  Sukhitashvili; Zura  Begalishvili; Lasha  Ramishvili
Origem: França/Georgia/Alemanha/Reino Unido
Ano: 2014
Duração: 115’





FESTIVAIS E PRÉMIOS
Chicago International Film Festival, 2014 - Vencedor " Golden Hugo " – Melhor Filme
15th TOKYO FILMeX International Film Festival - Vencedor Prémio Audiência – Melhor Filme
14th Beirut International Film Festival - Vencedor "Société Générale Award" Melhor Filme
 Venice International Film Festival - Filme de Abertura | Nomeado – Melhor Filme
International Film Festival Of India (Goa), - Filme de Abertura
Tbilisi International Film Festival, Georgia - Filme de Abertura
Tertio Millennio Film Festival - Filme de Abertura

Outras Presenças
Busan International Film Festival, 2014
London Film Festival, 2014
Warsaw International Film Festival, 2014
Carthage International Film Festival, 2014



CRÍTICAS
Mohsen Makhmalbaf é uma das mais persistentes vozes da luta contra a ditadura iraniana. Ele próprio foi preso e torturado pela polícia política na sua juventude, com sequelas graves sobretudo nos pés, só recuperando a marcha após várias operações. Já no exílio manteve-se empenhado na luta contra os excessos do regime e na denúncia das constantes violações dos direitos humanos no país, não só através do seu cinema como também da sua extensa obra literária. O contexto pessoal ajuda a entender melhor este O Presidente, filme de 2014 que só agora se estreia em Portugal. Até porque a perspicácia do ativista está numa visão mais global, inteligente e eficaz que não se fica por breves impressões do curto prazo. Se podemos identificar Makhmalbaf com um dos estropiados que no final regressam a casa, a sua verdadeira voz será aquela que se levanta contra a vingança desmiolada e primária, afirmando que violência gera violência. Uma perspetiva difícil, mas necessária, reforçada pela autoridade de quem sofreu a ditadura na pele.
Contudo não nos deixemos confundir. O Presidente não é uma alegoria direta à ditadura iraniana, mas antes uma metáfora sobre os regimes ditatoriais em geral, particularmente os do Médio Oriente. Mas não só. Facilmente se encontram possíveis inspirações noutras ditaduras: a própria fuga do Presidente tanto faz lembrar Kadafi na Líbia, como a surreal escapada de Ceausescu através da Roménia. Por outro lado, apesar de ser um filme denúncia, não é um filme que envolva um perigo semelhante aos realizados por Jafar Panahi ou Mohammad Rasoulofd no próprio Irão. E as ameaças à vida de Makhmalbaf parecem menos intensas com o recente entendimento entre o Irão e os Estados Unidos.
[...] está construído num registo de fábula, em que convivem imagens poderosas com outras redundantes. Logo de início, a introdução das personagens é forte, no pré-genérico, revelando um ditador que resiste aos caprichos do neto (numa conversa trivial - não lhe deixa comer um gelado), enquanto assina a condenação à morte de prisioneiros políticos (incluindo um rapaz de 16 anos). E avança de seguida, com forte capacidade semiótica, para uma demonstração de poder: faz ligar e desligar as luzes da cidade (uma brincadeira com o neto), até ao dia em que as luzes não se voltam a acender.
O que torna a caracterização da personagem superior é a descrença no mal absoluto. Este horrendo ditador é humanizado através da relação terna que estabelece com o neto. Um avô empenhado, capaz de dar a vida
pela criança. O homem cruel amacia-se ao longo da fuga e à medida que se confunde com o povo. Uma viagem dura e complexa, em que os fatores externos influenciam o interior, que chega ao seu cume quando, numa imagem cristã, o presidente lava as feridas dos pés de um ex-prisioneiro político. É aqui que, talvez ingenuamente, Makhmalbaf revela acreditar na redenção. Como a personagem diz: "Deixem a democracia encarregar-se dele". Até porque, ao exemplo das Primaveras Árabes, o mundo da pós-revolução que encontramos com a fuga do presidente repete os caminhos de violência do anterior: é um mundo cruel e indigno, com execuções espontâneas, à mercê do banditismo, em que não há respeito pela vida humana. Só travando o ciclo de violência é que se pode aspirar a construção de um país. Que a vida imite o cinema.
Manuel Halpern, visao.sapo.pt


O novo filme do iraniano Mohsen Makhmalbaf é dedicado aos sírios mas começou a ser escrito há nove anos. É sobre a ilusão do poder, sobre o “agora” e o “futuro”, sobre o bem e o mal que somos.
O Presidente que já não o é percorre o país que julgava seu disfarçado de músico de rua, com o neto e herdeiro a fingir-se menina. O Presidente leva às costas um preso político e finge que também ele passou pelos calabouços. O preso que vai às suas costas não pode pousar os pés no chão, a tortura foi muita mas pior teria sido se o tivessem descoberto: ao contrário de todos os camaradas, escapou à execução por ter assassinado o filho e a nora do Presidente, os pais do neto que agora finge ser Maria, a das aulas de dança, de quem nunca deixará de ter saudades, e que já não pode chamar ao Presidente o que sempre foi ensinado a chamar-lhe.
“O que é tortura?”, pergunta o menino. O Presidente quer largar o preso que carrega às costas e matar o homem que lhe matou o filho com as mãos, mas não pode fazê-lo. Pode, mas não o faz. Já não é o Presidente, já cantou, bebeu e fumou com todos aqueles homens que mandou para a prisão sem nunca hesitar, por mais novos que fossem, por mais inocentes, decentes ou honrados compatriotas que fossem. O Presidente já é um deles, mesmo que não o saiba.
O Presidente é o último filme do realizador iraniano Mohsen Makhmalbaf, há muito tempo a viver no exílio. Aos 58 anos, já foi tudo e o seu contrário. Tinha 15 quando criou o seu próprio grupo de guerrilha para derrubar o Xá Reza Pahlavi. Preso aos 17 anos por tentar esfaquear um soldado, saiu da cadeia cinco anos depois, durante a Revolução Islâmica de 1979, quando o Xá fugiu do Irão.
O novo regime dos ayatollahs tentou – e, até certo ponto, conseguiu – criar um cinema ideológico, islamista, e Makhmalbaf chegou a ser um símbolo desse cinema. Depois afastou-se, de novo na oposição, e tornou-se a prova do fracasso da tentativa dos islamistas para matar o cinema, o cinema que é mesmo cinema, aquele que reflecte o Irão e faz do Irão o que o Irão é. De “realizador do regime” passou a dissidente e foi porta-voz no exílio de Mir Hussein
Mousavi, candidato da oposição derrotado nas eleições fraudulentas de 2009, que deram a reeleição a Mahmoud Ahmadinejad e provocaram o chamado Movimento Verde, um dos precursores das revoltas árabes.

O Presidente é fruto destes últimos anos, turbulentos. “Começámos a trabalhar no guião há nove anos. Depois aconteceu o movimento em 2009 e reescrevemos tudo. A seguir vieram as Primaveras Árabes, e voltámos à escrita. Tentámos que funcione como uma metáfora do agora e do futuro, dos sistemas da ditadura e da revolução, que são sempre iguais. Presidente ou rei, xá ouayatollah, revolução, golpe de Estado. O Presidente podia ser Saddam Hussein, [o ayatollah Ali] Khamenei [Guia Supremo iraniano], Muammar Khadaffi, Estaline… Este não é um filme iraniano, é universal.”Medo do povo
Makhmalbaf viaja muito e calhou ao Ípsilon entrevistá-lo por telefone quando já passava da 1h no hotel russo onde estava hospedado, perto da fronteira com a China, nove horas de diferença. Estava acordado mas ensonado, cansado mas disponível. Respondeu a tudo e demorou-se nas respostas. O recepcionista é que não ajudou, sem grande vontade de atender a chamada.
Sofia Lorena, publico.pt