DIA 3 MAIO – IPDJ – 21H30

O ROSTO DA INOCÊNCIA
Michael Winterbottom
Reino Unido,  2014, 101', M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original: Face of an Angel
Realização: Michael Winterbottom
Argumento: Paul Viragh, baseado no livro de Barbie Latza Nadeau   
Montagem: Marc Richardson
Fotografia: Hubert Taczanowski    
Música: Harry Escott         
Interpretação: Cara Delevingne, Kate Beckinsale, Daniel Brühl
Origem: Reino Unido
Ano: 2014
Duração: 101’

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival Internacional de Cinema de Toronto – Selecção Oficial
Festival de Cinema de Londres – Selecção Oficial



NOTA DE INTENÇÕES
Embora este filme seja em grande medida inspirado nas circunstâncias reais em que se ocorreu o homicídio ainda não resolvido da estudante britânica Meredith Kercher em Perugia, em Novembro de 2007, O ROSTO DA INOCÊNCIA não é de modo algum uma história de crime ou uma reconstrução de factos. Não se centra na culpa ou na recriminação, mas sim na tentativa de compreender aquilo que este crime chocante e violento gerou.
É uma história sobre histórias. As histórias das famílias, histórias de pessoas que perderam alguém que amavam, ou porque morreram ou porque ficaram marcadas. As histórias dos media e a complexa multiplicidade das narrativas sobre a qual assenta uma tragédia como esta: histórias de julgamento, de empatia, de hipóteses, histórias que afirmam ser verdadeiras. Histórias de pessoas como nós: pessoas que se habituaram a ver o crime violento ser tratado como uma novela: nas notícias, na literatura, no cinema, no teatro e na música.
Mas, acima de tudo, é um filme sobre alguém que tenta contar aquela que é sempre a última a ser contada: a história da vítima.
Michael Winterbottom


FILMOGRAFIA 
BUTTERFLY KISS (Competição Oficial, Berlim 1995),
JUDE (Quinzena dos Realizadores 1996 e vencedor do Prémio Michael Powell no Festival de Edimburgo),
BEM-VINDO A SARAJEVO (Seleção Oficial, Cannes 1998)
LAÇOS FATAIS (Festival de Berlim 1998)
WONDERLAND (Seleção Oficial, Cannes 1999 e Prémio BIFA para Melhor Filme Britânico)
THE CLAIM (Festival de Cinema de Berlim)
24 HOUR PARTY PEOPLE (Seleção Oficial, Cannes, 2002)
NESTE MUNDO (Urso de Ouro, Berlim 2003)
CÓDIGO 46 (Festival de Veneza 2003)
9 SONGS – 9 CANÇÕES (Melhor Fotografia, Festival de San Sebastián 2004),
A COCK AND BULL STORY (Festival de Toronto 2005)
A CAMINHO DE GUANTÁNAMO (Urso de Prata, Melhor Realizador no Festival de Berlim 2006),
UM CORAÇÃO PODEROSO (Seleção Oficial, Cannes 2007), GÉNOVA (Melhor Realizador, San Sebastián 2008)
THE SHOCK DOCTRINE (Festival de Sundance 2009)
O ASSASSINO EM MIM (em Competição, Berlim 2010)
A VIAGEM (Festival de Toronto 2010, vencedor do BAFTA para Melhor Ator para Steve Coogan, nomeado para o BAFTA Television Award por Melhor Comédia, Vencedor do Prémio para Melhor Novo Programa de 2012, nomeação para os Prémios da Comédia para Rob Brydon)
TRISHNA (Toronto, 2011)
EVERYDAY (vencedor do prémio FIPRESCI para Melhor Filme, Festival de Estocolmo 2012)
O IMPÉRIO DO AMOR (Festival de Sundance 2013 e foi selecionado para a Berlinale)
A VIAGEM A ITÁLIA (Festival de Sundance, 2014)
O ROSTO DA INOCÊNCIA (Festival de Toronto, 2014 -Selecção Oficial e Festival de Cinema de Londres – Selecção Oficial)


NOTAS DA CRÍTICA
"Trata-se de um olhar de relance, esquivo e fantasmagórico, sobre o homicídio da estudante britânica Meredith Kercher em Itália, em 2007, um crime pelo qual, e do qual, os dois colegas estudantes Amanda Knox e Raffaele Sollecito têm sido condenados e ilibados ad infinitum desde então. Mas este é também um filme realizado por Michael Winterbottom (THE LOOK OF LOVE, 24 HOUR PARTY PEOPLE). Por isso, em vez de focar directamente o homicídio, Winterbottom e o argumentista Paul Viragh (SEX & DRUGS & ROCK & ROLL) apresentam-nos um realizador, Thomas (Daniel Brühl), que viaja até à cidade toscana de Siena para fazer uma pesquisa para um filme sobre o caso.Thomas defronta-se com um dispositivo mediático predatório e acaba à beira do esgotamento. Como qualquer esgotamento de um homem de meia-idade, este envolve um encontro (embora casto) com uma bela jovem, uma empregada de mesa inglesa, interpretada com um intenso charme por Cara Delevingne: a sua personagem simboliza a juventude assassinada por esta história, mas revela também o passado familiar algo fracturado de Thomas. As ligações estabelecidas em O ROSTO DA INOCÊNCIA são por vezes subtis. As cenas passadas nas ruas de Londres, quando Thomas se encontra com os produtores e potenciais financiadores, contrastam com o ambiente escuro e fantasmagórico que Winterbottom irá depois esconjurar em Siena. Mas todo o ambiente retratado, de desconhecimento, de confusão, de meias-verdades, encaixa perfeitamente no contexto de uma história real trágica que inspirou todo o tipo de histerias e de opiniões infundadas."
Time Out London




O LIVRO DE BARBIE LATZA NADEAU
Michael Winterbottom ficou chocado com as primeiras notícias dos acontecimentos do dia 1 de Novembro de 2007, quando o corpo da estudante britânica de 21 anos, Meredith Kercher, foi encontrado pela polícia italiana.
Contudo, em poucos dias, o rosto de Meredith foi sendo substituído por outro, nas notícias que vinham de Perugia. Rapidamente, as atenções desviaram-se da vítima para uma das pessoas acusadas do crime: Amanda Knox, uma jovem americana de 20 anos. O rosto de Knox passou então a dominar as manchetes nos dois anos que se seguiram.
Ao ver o desenrolar desta trágica novela nos media, Winterbottom questionava-se por que motivo teria o público ficado agarrado a esta história. Enquanto realizador, a sua atenção sempre se virara para histórias com algum sentido de contemporaneidade e de urgência, com especial destaque para o seu docudrama aclamado de 2006, A CAMINHO DE GUANTÁNAMO, sobre a captura de três muçulmanos britânicos – The Tipton Three – sob as leis anti-terroristas americanas. Curioso por saber mais sobre o caso de Meredith Kercher, Winterbottom pegou num dos primeiros de uma série de livros escritos sobre o assunto: ANGEL FACE de Barbie Latza Nadeau, publicado em 2010.
“O ponto de partida, para mim, foi exactamente esse: porque é que casos como este captam a imaginação do público?”, diz Winterbottom, “E o caso de Meredith Kercher era um exemplo extremo disso mesmo. Penso que há mais de dez livros escritos sobre o tema e, obviamente, toneladas de artigos de jornal e de peças jornalísticas de TV; já se fizeram telefilmes, documentários... É uma versão extrema, mas de certa forma é mesmo só uma versão extrema do que acontece em geral, ou seja, as pessoas passam imenso tempo a ver ou a ler notícias sobre crimes. Sobre crimes violentos, em particular, e sobre crimes sexuais violentos ainda mais. Por isso, penso que talvez o livro de Barbie, e com a Barbie como personagem, fosse uma forma de fazer um filme que, em parte, fosse uma reflexão sobre o motivo pelo qual despendemos todos tanto tempo a ler sobre crimes.”
Winterbottom e a sua assistente de produção, Melissa Parmenter, adquiriram imediatamente os direitos do livro de Nadeau, e o primeiro porto de escala do realizador foi Roma, onde se encontrou com a autora, uma escritora americana instalada em Itália. Isto foi no Inverno de 2011, na altura em que Knox e Sollecito interpuseram recurso.
“Eu diria,” nota Winterbottom, “que o ponto de partida para o filme foi na verdade o mundo que encontrei ali – o mundo que rodeava a investigação e o julgamento, especialmente o dos jornalistas que estavam a fazer a cobertura da história.”
“Quis mostrar que os jornalistas, que por vezes quase se esganam para ter o exclusivo de uma notícia, quase se tornaram numa família ao longo desta história. Isso é muito raro no meio jornalístico em geral. Também somos humanos. Unimo-nos para cobrir uma história que era realmente difícil de cobrir e zelámos uns pelos outros, mesmo estando sempre, basicamente, a competir uns com os outros.”
“Quando conheci o Michael,” recorda Nadeau, “este mostrou-se muito interessado em honrar as vítimas, em garantir que a história de Meredith Kercher não se perdia em nenhum detalhe do filme. Os detalhes do caso acabaram por ser um trampolim para o Michael, uma inspiração para contar uma história mais abrangente, usando aqueles detalhes terríficos como cenário no qual as personagens principais poderiam reflectir sobre a tragédia, em vez de usar a tragédia para contar a história.”
Nadeau, por seu turno, reconhece que esta história teve com um efeito bola de neve rápido e fulgurante. “Num caso vulgar de homicídio, o homicida, a vítima, a arma e os suspeitos são os únicos elementos envolvidos. Mas neste caso, em particular, envolveu-se a família de cada interveniente, os próprios jornalistas tornaram-se parte da história, toda a gente, de alguma forma, se tornou parte da história. E foi assim que a situação escapou ao nosso controlo.”

TRAILER



RIO CORGO | 26 ABRIL | IPDJ | 21H30

RIO GORGO
Maya Kosa e Sérgio da Costa
Portugal, 2015, 95’

PRESENÇA DOS REALIZADORES


FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Maya Kosa & Sérgio da Costa 
Fotografia Sérgio da Costa 
Som: Ricardo Leal, Bruno Moreira, Adrian Santos 
Montagem: Telmo Churro, Sérgio da Costa e Maya Kosa 
Origem: Portugal/Suiça
Ano: 2015
Duração: 95’ 

FESTIVAIS E PRÉMIOS

Doclisboa’15: Prémio Liscont para Melhor Filme da Competição Portuguesa
66º Festival de Cinema de Berlim – Forum [Alemanha, 2016]




[...] O Senhor Silva já vai poder ver em grande a sua morte. E confirmar o que já sabia: como, nessa caminhada até à neve, foi embalado pela empatia e afecto de Sérgio Costa e Maya Kosa, realizadores de Rio Corgo, filme que se organiza para ser balada de acompanhamento da caminhada final de uma personagem.
O que é muito poderoso neste filme [...] é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração.
Jorge Mourinha, Público

ENTREVISTA
Sérgio Costa e Maya Kosa embalam afectuosamente a sua personagem a caminho da morte. E ela, o sr. Silva, escreve os seus diálogos e morre. Vai poder ver-se agora a morrer no grande ecrã. Nós também, no Doclisboa, onde Rio Corgo compete.
O senhor Silva já vai poder ver em grande a sua morte. E confirmar o que já sabia: como, nessa caminhada até à neve, foi embalado pela empatia e afecto de Sérgio Costa e Maya Kosa, realizadores de Rio Corgo, filme que se organiza para ser balada de acompanhamento da caminhada final de uma personagem.
O que é muito poderoso neste filme – o mais destemido e inclassificável da Competição Nacional do Doclisboa (o festival que começou na quinta-feira) – é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração. Ao falar com Sérgio e com Maya sente-se que para eles continua a ser misterioso o que lhes aconteceu, o que fizeram e como fizeram, a partir do momento em que lhes apareceu numa aldeia do Douro o senhor Silva, também conhecido, e tolerado, como O Espanhol. Sentia uma morte em si.
Já foi tudo, pastor, barbeiro, jardineiro, palhaço, mágico, hoje diz já não ser nada. Da vocação de vagabundo, sobra-lhe a energia para uma última viagem. E para deixar o seu legado a uma adolescente – isto é, os seus fantasmas, os seus mortos (a mulher, Carolina) e as visões que resultam dos seus distúrbios psíquicos. Ajudado pela balada que Sérgio e Maya lhe tocam, Silva sai do seu corpo, faz-se personagem, escreve os seus diálogos e morre. Ele vai ver tudo isso no filme.
Que é o quê? Responde Sérgio: “A questão de dizer se é ficção ou documentário é sobretudo uma coisa prática quando estamos a filmar: usamos essas palavras para denominar escolhas de trabalho, jargão técnico. Mas nunca pensamos nas consequências de estarmos a fazer uma coisa ou outra quando estamos a construir o filme e a dar-lhe forma final”. Ela acrescenta: “Ficção, documentário, isso é nas conversas com a produtora, com a televisão... Foi uma luta, para ter dinheiro para o projecto, ter de explicar o que estávamos a fazer – só depois de termos acabado conseguimos explicar melhor o caminho e ainda assim não está bem explicado. Para nós não há distinção, a nossa aproximação é muito natural.”




Este não é um filme “sobre”, é um filme “com”. Entre outros, feito com uma pessoa, o senhor Silva, que talvez seja já uma personagem.
Sérgio da Costa (SC) — Não usaria a palavra “com”, diria que é uma adaptação de vida dele. Não é “sobre”, de facto, mas usámos uma matéria que vem dele, a biografia, o seu dia-a-dia, e tentámos transformá-la num filme, como uma adaptação — de uma pessoa.
Maya Kosa (MK) — Foi um processo longo, com mudanças. Inicialmente tínhamos recolhido muita informação sobre o sr. Silva e depois escrevemos um guião, como numa ficção tradicional.
Como é que aquela pessoa vos apareceu? Porque é da ordem da aparição: parece pertencer e simultaneamente não pertencer àquela paisagem, àquele mundo.
MK — Estivemos a fazer um filme na aldeia de onde vem o Sérgio, Pedralva, perto de Anadia. Ele foi mesmo uma aparição para nós. Vivia numa aldeia ao lado. Começámos a partilhar o seu quotidiano, e ele pareceu logo aberto para uma aventura em conjunto. O problema é que muda de aldeia de tempos a tempos. Decidimos segui-lo. É como um saltimbanco, a dedicação dele é divertir as pessoas, o objectivo da vida são os truques, as canções, como uma missão.
Meses depois encontrámos uma pessoa diferente, tinha mudado completamente. Já não era a pessoa alegre, era o contrário, estava muito em baixo, sem força física. Por uma razão concreta: iniciara um tratamento no hospital, no departamento de psiquiatria, começou a receber injecções de psicotrópicos que matavam a sua folia. Já tínhamos a ideia de desenvolver um projecto com o “outro” Silva, tínhamos de trabalhar agora com a transformação. Durante uma repérage tornou-se óbvio que tínhamos de filmar a personagem na natureza, isso era algo, por um lado, completamente pictórico e por outro ligado à sua vida de vagabundo — andou a pé por Portugal quando era pequeno. Mas a primeira coisa que filmámos foi ele na neve morto, e isso foi determinante para o resto, para o argumento. Ele dizia: “sinto uma morte em mim”. E nós transformámos isso numa morte mais imaginária, mais espiritual.
A partir de certa altura sente-se, é palpável, que há uma caminhada. Como se aquela figura se preparasse para deixar um território e chegar a outro.
MK — Sim, o plano final foi inspirado pelas fotos do [escritor suíço] Robert Walser [1978-1956] morto na neve [encontrado morto no dia de Natal de 1956, depois de ter desaparecido de um hospital psiquiátrico]. Queríamos alguém que tivesse fugido para morrer na natureza. Talvez isso seja brutal, mas é essa a caminhada do filme. As crises que acontecem, não temos explicação para elas, a não ser que se integram nessa caminhada.
Para fazer como fizeram, aquela figura teve de se implicar com a sua intimidade. Porque está a participar na ritualização de uma morte, que é a sua. Houve algum momento em que tivessem dado conta de aquele corpo deixar de ser apenas o do sr. Silva para passar a ser uma ficção? E que uma outra criatura apareceu no filme?
SC — Sim, houve um momento de mudança mas foi progressiva, tal como as conversas, os encontros. Tudo isso levou ao aparecimento de uma personagem, porque nós próprios começámos a recriar uma personagem diferente. É o nosso pequeno Frankenstein, uma figura construída por várias fontes, ele e o nosso imaginário.

MK — Durante a rodagem, que durou dois meses e meio com paragem a meio para escrever e entrevistá-lo de novo e introduzir a personagem da rapariga [a adolescente Ana], que não existia, nem estávamos conscientes do que iria ser o dia seguinte. Foi um processo intuitivo. Estávamos com medo de ver o que iríamos encontrar na rodagem, até porque a certa altura as crises dele começaram a estruturar a narrativa.
Há momentos em que ele parece estar a olhar para si próprio, como se fosse exterior ao seu corpo.
MK — Esse era o sentimento dele, não estava bem, havia dias em que era mais presente, outros em que era difícil trabalhar com ele. Era sempre uma luta, tínhamos sempre de falar muito. Não sei qual a consciência dele. A sequência com a mulher morta, que lhe aparece, e que é interpretada pela nossa
assistente de realização, corresponde a visões verdadeiras, dele, que recriámos.
Houve algum momento em que ele perguntou: para quê isto?
MK — Foi de uma dedicação incrível. Sempre disse que o fazia para nós. Sempre teve a coisa da representação, era uma forma de se divertir connosco. Escrevemos diálogos, perguntámos o que ele diria, ele encontrava sempre fórmulas melhores do que as nossas. Às vezes uma piada transformava-se numa cena. Um dia perguntei-lhe como é que ele lavava a roupa, ele respondeu, irritado, “Como lavo a roupa? Com os pés”. E eu disse-lhe: “Então o sr. Silva vai fazer isso no filme”.
É um filme centrado numa personagem, mas o título desloca-se para a geografia. A mapear um território onde tudo, o mundo, pode acontecer — como no Twin Peaks" de David Lynch.
SC — Sim, durante muito tempo O Mágico foi o título de trabalho. Mas sempre achámos que era errado incidir o foco na personagem. Não queríamos fechar o espectador. Por isso Rio Corgo — que até é ao lado de onde filmámos. Tem a ver com o que disse: abrir para colocar todo o mundo ali.
MK — As crises dele tinham sempre a ver com a água, na banheira, no rio. Era sempre um elemento forte.
Que relação se estabelece entre essa figura e os habitantes da aldeia? O filme parece organizar-se para o proteger. Há uma certa altura em que Rio Corgo se torna balada para o acompanhar na caminhada final — músicos dentro de um carro a tocarem e a cantarem para ele.
SC — Pode parecer estranho, mas é difícil uma resposta clara. Cada vez que vejo a caminhada final, com aqueles músicos a tocarem, sinto uma verdade: toca-me a liberdade daquela figura quando está a caminhar.
MK — Todas as pessoas que aparecem no filme pertencem à mesma família. E trata-se da única família que aceita a presença do sr. Silva. Ele chegou a esta aldeia, encontrou uma casa, mas toda a gente tem preconceitos em relação a ele, porque ele bebe, porque se veste daquela maneira. Quando nós chegámos à aldeia as pessoas olharam-nos da mesma maneira — ainda por cima falávamos com sotaque esquisito [Sérgio e Maya vivem em Genebra, Suíça, onde se formaram em cinema pela Escola Superior de Arte e Design, em 2010, ano em que tiveram Miguel Gomes como professor; são filhos de imigrantes portugueses, ele, e polacos, ela]. Mas essa família abriu-se a nós: a Ana, rapariga que aparece no filme, a avó, o pai, que toca concertina, e a mãe, que aparece numa das cenas do hospital. Ficaram do nosso lado, e aproveitámos quem estava disposto para trabalhar connosco.
As canções estavam connosco e com o filme desde o primeiro momento em que o conhecemos, porque ele sempre teve uma ligação forte com a música. A sequência de que fala, a do carro, foi um acaso: fomos filmar a uma cascata, estavam ali uns rapazes a tocar guitarra e dissemos-lhes que os íamos filmar.
E é aí que o filme parece tomar posição em relação à personagem — e com isso vocês posionam-se afectivamente.
SC — Sim, é uma coisa afectiva. Esta música tocada no carro é uma sequência que nasce da nossa empatia. De maneira muito intuitiva resolvemos utilizar essa canção para ele caminhar. Durante toda a rodagem estivemos numa zona de empatia e de fascinação.
Se alguém vos perguntar o que é Rio Corgo, o que dirão?
MK — É uma pergunta que nos vai perseguir...
SC — Arranjei hoje uma resposta: é um filme sobre a vagabundagem e a imaginação como espaços de liberdade. É a única que consigo: imaginação do senhor Silva e a nossa também.
MK —  É um filme construído como uma sucessão de eventos prosaicos que estão na antecâmara da morte.
A partir de certo momento torna-se clara a sucessão de actos e gestos com força ritualística.
MK —  É também uma história de transmissão e de iniciação. A rapariga recebe dele uma herança. Ele sente que desaparece e começa a contar a história dele, da infância, da mulher que morreu, das visões, e ela é a pessoa que o vai substituir quando morrer.
SC —  Ele não tinha muito interesse em saber o que estávamos a fazer. Tentámos explicar, e o que era o seu papel, ele queria era estar na acção, fazer as coisas, não teorizar sobre isso.
MK —   Durante a rodagem queríamos mostrar-lhe o que tínhamos filmado, mas ele não olhava, dizia que queria ver em grande.
Vasco Câmara, Público

O MEDO À ESPREITA | 25 ABRIL | ANTIGO GOVERNO CIVIL | 15H

O MEDO À ESPREITA
Marta Pessoa, Portugal, 2015, 86’

Presença da realizadora

Em Portugal, ao longo de quase meio século, a PIDE/DGS foi a máquina atemorizadora que alimentou o poder do Estado Novo.
A par dos quadros de inspectores e agentes efectrivos, a polícia política recorria aos serviços dos “informadores”. Cidadão comum tornado delator, que de diluía com o intuito de vigiar para denunciar, o informador tornou-se numa figura ominipresente.
Entre denúncias e denunciados, O Medo à Espreita constrói uma memória do medo e de um País onde viver era viver vigiado.

Prémios e Festivais
IndieLisboa 2015 - Prémio Amnistia Internacional



Seguido de Tertúlia com a realizadora Marta Pessoa, o Prof. João Guerreiro e o Prof. Vilhena Mesquita, com moderação de Ramiro Santos. No âmbito das Comemorações do 42º aniversário do 25 de Abril, da Câmara Municipal de Faro.
Org. CCF, CMF, MMF e Civis

VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES | 19 ABRIL | 21H30 | TMF





VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES
Manoel de Oliveira
Portugal, 1982, 68’, M/12


FICHA TÉCNICA 

Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira
Diálogos: Agustina Bessa-Luís
Fotografia: Elso Rique
Montagem: Manoel de Oliveira e Ana Luísa Guimarães
Som: Joaquim Pinto
Com: Manoel de Oliveira, Maria Isabel Oliveira, Urbano Tavares Rodrigues, Teresa Madruga, Diogo Dória
Origem: Portugal
Ano: 1982
Duração: 68’







Ao longo do seu trabalho, muitas vezes nos falou Manoel de Oliveira dos fantasmas que a “máquina” do cinema (assim chamava ele, com uma graça particular, à câmara) tinha a capacidade de fixar. Não creio que esta questão dos fantasmas, certamente ampliada agora pelo desaparecimento do cineasta e pela maravilhosa descoberta do seu filme póstumo, tenha sido tão densa e tão complexa na obra de Oliveira como é em “Visita ou Memórias e Confissões”. Idealizado e rodado para ser mostrado só após a morte do seu autor, “Visita...” não deixa por isso, para todos nós, de ser o último filme de Oliveira (um último presente, já lhe chamei), quis o destino que fosse de 2015 — embora tenha sido rodado entre o final de 1981 e parte de 1982, a seguir a “Francisca”. É bem verdade, e por falar de fantasmas, que os filmes renascem cada vez que são vistos. E que a perenidade dos mesmos não depende de calendários. Se prova fosse necessária, aqui está ela.
As primeiras perguntas das tantas que me colocou “Visita ou Memórias e Confissões” (e haverá no filme tempo e espaço para que os três elementos do título se apresentem e se entrelacem, ao ponto de já não os conseguiremos isolar) foram estas: como é que se consegue fazer um filme, chamemos-lhe assim. (embora “Visita...” não o seja), ‘autobiográfico’, ou melhor, de ‘natureza autobiográfica’, mas em simultâneo tão afastado, pela sua estrutura e pelos seus efeitos, de qualquer egocentrismo? Como é que “um filme de Manoel de Oliveira sobre Manoel de Oliveira a propósito de uma casa (...), um filme meu sobre mim próprio”, assim o apresenta o cineasta naquele genérico falado, é afinal capaz de meditar tanto sobre o fingimento do cinema e do ato de filmar em si, numa reflexão teórica que atravessa toda esta obra? Se tal género de filme, agora tão em voga, sobretudo desde o advento do digital, se tornou prática comum dos dias que correm, era-o muito menos ou quase não o era em 1981. Como em “Visita ou Memórias e Confissões”, decerto nunca o foi. 
Aqui não há surpresas, que Oliveira sempre esteve à frente do seu tempo. Até no filme que ao tempo deu e que só este determinou poder ser mostrado. A origem de “Visita ou Memórias e Confissões”, contada melhor do que ninguém pelo próprio Oliveira no filme, já foi revelada e está associada à perda da frondosa casa da Rua da Vilarinha, no Porto (que o cineasta se viu forçado a vender para saldar dívidas), de onde só saímos ou através de filmes dentro do filme (aos quais não podemos chamar de home movies), ou de um momento em que Oliveira encena a sua própria detenção pela PIDE, no início dos anos 60, por ter dito algo, numa apresentação de “Acto da Primavera”, que não agradou aos ouvidos do regime. Trazido para os calabouços de Lisboa para interrogatório, ali conheceu Urbano Tavares Rodrigues, companheiro do mesmo pesadelo e que, tal como Oliveira, aceitou o pacto da encenação. “A minha mulher e eu vivemos quarenta anos naquela casa”, disse o cineasta no livro de entrevistas a Jacques Parsi e Antoine de Baecque. “É toda uma vida. Com os meus filhos, com os meus netos: tudo isto constitui uma história.” Mas é esta a história de “Visita ou Memórias e Confissões”? Não só — e é isto que o torna apaixonante. Há, é verdade momentos em que sentimos que a câmara parece filmar cada parede, cada objeto, cada fotografia, quase como se Oliveira os quisesse fixar uma última vez e para sempre. Mas a tradução dos sentimentos e das ideias, a transmissão das emoções, não são nunca as do registo saudosista. São antes ideias e problemas de cinema materializados que vão ganhando consistência à medida que os episódios se desvelam, desde aquele magnífico primeiro plano em que uma cancela se abre misteriosamente à nossa frente, num plano acompanhado a Beethoven, conduzindo-nos a uma magnólia e sua única flor, antes de chegarmos à porta da casa. 
De seguida, virão mais portas sobre portas, reais e imaginárias, de uma vida, da vida de uma família e da presença desta no cinema, trompe l‘oeil sobre trompe l'‘oeil, sem que todos estes compartimentos que nunca separam o cinema da vida fiquem alguma vez estanques. As vozes de um casal (ditas por Teresa Madruga e Diogo Dória), sempre em fora de campo, e cuja origem nunca saberemos, tão pouco o que os traz ali. São um par furtivo, anjos ou almas penadas, que sentimos terem vindo por bem, e que nos deixarão no fim, quando finalmente os vemos, envoltos na penumbra. “Tens a certeza de que é esta casa?”, pergunta-lhe ele antes de ela, com receio, se aventurar a entrar. A origem dessas personagens, geradas num texto magnífico de Agustina, não é menos misteriosa nem menos ficcional. Se o texto foi escrito, não sabemos, antes, durante ou depois da rodagem, pouco importa. “Subiu alto o nosso porteiro”, diz uma das vozes referindo-se à palmeira do jardim, num momento em que a câmara foca os ramos da palmeira que já tocam numa janela do primeiro andar. Isso é: foi o texto que encontrou a mise en scène, ou o contrário? Tanto melhor se nunca o soubemos. Sabemos sim que é um texto escrito com total conhecimento do que ali está em causa e da arquitetura daquela casa, que já se tornou assombrada. 
Outros mistérios surgem quando aquele casal de vozes, que imaginamos atrás da câmara subjetiva, e que entretanto percorrem todas as divisões da casa, do quarto de casal à copa, é interrompido por outro fantasma que o casal não identifica, e que tem corpo presente: o do próprio Oliveira. Que sem deixar de falar de si e dos seus nos dirá que a realidade do cinema é a ficção e ‘que só através dela lhe poderemos aceder. Que sem deixar de falar de si e dos seus, ora se interpreta a si próprio, narrando na primeira pessoa um texto sem fingir que o está a ler algures, fora de campo, ora denuncia os dispositivos da sua própria encenação, na secretária, ou enquanto nos fala do álbum de família, frequentemente acompanhado de diferentes imagens de Mona Lisa. Dos “fantasmas da realidade”, falou Oliveira mais do que uma vez: por exemplo, quando se dirigiu àquilo que comummente nos habituámos a chamar documentário. Coisa que “Visita ou Memórias e Confissões”, de resto, não é. Lá mais para a frente, e sem sair do cinema, também chegará o momento em que Oliveira vai destrinçar estas coisas, quando nos fala da atração pelas suas personagens femininas, ou seja, pela ficção, em contraponto (ou em complemento) à existência da sua mulher e companheira de sempre, Maria Isabel, que é “a realidade, sem subterfúgios”.
Cannes programou, suponho que sequer antes de ver, “Visita ou Memórias e Confissões” na secção Classiques [...] Contudo, talvez o festival se tenha apressado de ‘categoria’. É que, de classique, esta “Visita...” nada tem. Aliás, o filme de Manoel de Oliveira ‘deste ano de 2015’ corre até o sério risco de ser o mais ousado, o mais criativo, o mais moderno dos que o festival exibirá este ano. O mais comovente, também, pois é prova de fé no absoluto e na essência dos seres e das coisas. Estava à espera do seu tempo. E o seu tempo é o de hoje.
Francisco Ferreira, Expresso, 16/05/2015


apoio:

POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO | 12 ABRIL | 21H30 | IPDJ

POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO
Hugo Vieira da Silva
Angola/Portugal, 2015, 120’, M/14


FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento - Hugo Vieira da Silva
Baseado no romance - de Joseph Conrad
Som - Pierre Tucat
Director de Fotografia - Fernando Lockett
Direcção de Arte - Isabel Branco
Montagem - Paulo Mil Homens
Interpretação - Nuno Lopes, Ivo Alexandre, David Caracol, Inês Helena, António Mpinda, Cleonise Malulo, Domingos Sita, Miguel Delfina (Pagé)
Ano - 2015
Origem - Angola, Portugal
Duração - 120´


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Secção Fórum




NOTA DE INTENÇÕES

O desejo de fazer um filme em Angola era antigo. Enquanto jovem a minha ideia de África, esfumava-se entre vagas imagens do que nunca vi e esparsas memórias familiares, coloridas pela omnipresença das mitologias coloniais que abundam em Portugal. Desde muito cedo que alimento a suspeita de que essa vaga memória esconde questões fundamentais, facto que se foi tornando cada vez mais claro desde que vivo fora de Portugal. África ainda é um fantasma que assombra a minha geração, aquela cujo nascimento coincide com a independência dos países africanos colonizados. 
Foi neste contexto que acidentalmente me cruzei com a short-story de Joseph Conrad. Encontrei no seu conto An Outpost of Progress(1897) uma poderosa peça sobre o colonialismo, sobre a questão da alteridade e sobre a relação ambígua entre o colonizador e o colonizado. Quis reinventar esta história traduzindo-a para o contexto colonial Português - que tem uma ligação muito antiga com esta região -, para explorar uma narrativa possível da presença Portuguesa no Congo, deixando também antever uma possível sintomatologia do colonialismo Português do final do século XIX. 
O conto de Conrad apresenta-se como um fortíssimo caleidescópio que refracta a complexidade da relação colonial, relativizando os olhares e as posições das personagens. Não há bons nem maus, há apenas relações de poder, transferências, inter-dependências e processos miméticos a ocorrer. 
A questão fundamental da minha versão Portuguesa tornou-se, então, o tema da ilusão da comunhão das culturas e as suas impossibilidades de tradução. Um paradoxal diálogo-de-surdos que se repete ao longo de séculos entre Angolanos e Portugueses. 

Quis também pensar os antigos comerciantes Portugueses do século XIX, como vagamente civilizadores, vagamente em linha com as correntes internacionais da época, mas carregando o peso de 400 anos de colonização, infectados pelas poderosas mitologias coloniais de um país antigo e visto habitualmente como «pobre»: Os portugueses periféricos, muito pouco cosmopolitas, simultaneamente arcaicos e ao mesmo tempo modernos. 
Quis olhar para estes portugueses como corpos masculinos, austeros, desejantes, angustiados, a arrastar o lastro das suas resiliências, mas também extraordinariamente adaptativos e flexíveis, distraídos palimpsestos desses 400 anos de história. Num dia clamando serem colonialistas, no outro afirmando não o serem, numa espécie de esquizofrenia que só pode ter raízes num processo profundo de repressão e de negação. Os antecedentes dos nossos corpos, eventualmente do meu corpo também, já que me fascina essa extraordinária hipótese de uma «história da fisicalidade, dos corpos e dos gestos» imaginada por Aby Warburg. 
Hugo Vieira da Silva

 

 

ENTREVISTA A HUGO VIEIRA DA SILVA

Posto Avançado do Progresso é um filme sobre o colonialismo, sobre os aventureiros expedicionários em África no séc. XIX ou sobre a missão civilizacional europeia?
O filme é sobretudo sobre o colonialismo Português, que parcialmente reflecte a ideologia civilizacional Europeia da época, mas que tem particularidades muito próprias até porque no século XIX a presença Portuguesa em África contava já com cerca de 400 anos de existência. No final século XIX começaram a ser importados para Portugal e para o seu espaço colonial os novos modelos anglo-saxónicos relativos ao “progresso” e à “civilização”, que no princípio eram um pouco estranhos ao tradicional modo de presença colonial Portuguesa em África. As duas personagens principais deste filme, João de Mattos e Sant’anna, representam essa geração de Portugueses para quem, à luz dessa nova mentalidade, a África central se torna paulatinamente um lugar de “incompreensão” e que por isso mesmo se encontram numa encruzilhada identitária. 
A minha versão é também sobre como a memória das relações ancestrais entre Portugueses e Congoleses foi reprimida por esta nova geração. Ora os recalcamentos (aliás bastante comuns na história Portuguesa), favorecem a emergência de fantasmas. Neste filme são então os fantasmas desse passado esquecido que emergem da floresta-tropical do Congo para assombrarem os Portugueses. E os fantasmas dizem respeito a essa história partilhada: À escravatura, à inquisição (que também existiu nos trópicos), à idiossincrasia cultural congolesa e aos seus ícones... Enfim, um longo manto amnésico que se perpetua até hoje.
Um dos aspectos mais interessantes do filme  é ele ser um filme de câmara, um huis-clos que acontece em África, continente sobre o qual temos sempre uma ideia de grandes espaços abertos, florestas intermináveis, ignorância dos limites territoriais. Quer comentar?

Trabalhei na África central na zona tropical e sub-tropical, ao longo do curso do Rio Congo, lugar de florestas impenetráveis e labirínticas, habitadas pelos povos Kongo tanto a sul como a norte, na sua complexidade e variedade étnica, espaço que no final do século XIX foi retalhado pelas chamadas fronteiras de “régua e esquadro” do colonialismo moderno. A África pré- “Conferência de Berlim” (1884) abunda em reinos e potentados. Por exemplo, no início do século XIX, um sertanejo português para comerciar com reis e chefes localizados no hinterland, partindo habitualmente da costa e até chegar ao seu destino, teria de passar por dezenas de fronteiras e pagar vários tributos a chefes locais. Esta forma de comércio durou 400 anos e era a garantia da manutenção das estruturas de poder local. A partir do final século XIX, com a chegada em força das novas potências coloniais europeias e com a ocupação territorial efectiva, é imposta uma espécie de “terraplanagem” física, social e cultural que faz desaparecer essa África. Surge então nos países ocidentais a ideia de África como um espaço vazio, sem limites, história ou memória, o “não-lugar”. Esta noção é por exemplo romantizada por Conrad no Heart of Darkness / Coração das Trevas, que, apesar de denunciar o colonialismo descreve o Congo como uma espécie de espaço mítico, selvagem, insalubre e terrível. Por outro lado, no Conrad mais arguto e seminal (na minha opinião o do An Outpost of Progress / Posto Avançado do Progresso) a floresta é então um pequeno palco onde os mal-entendidos e a ambiguidade da relação colonial se encenam num jogo de esconde-esconde, de permanentes equívocos quase burlescos e onde as personagens Africanas ganham finalmente subjectividade. Quis acentuar essa dimensão teatral. 
Interessou-me muito a forma como explora o pensamento mágico, as cosmologias desta região do Congo. E um aspecto muito bem tratado, a meu ver, é a impossibilidade do entendimento deste pensamento por parte dos dois comerciantes portugueses. No caso deles, a irracionalidade só lhes chega pela loucura. Está de acordo?
Sim, concordo. A este respeito há um livro fascinante de um antropólogo Americano, Johannes Fabian, chamado Out of our Minds — Reason and Madness in the Exploration of Central Africa, onde, desconstruindo de forma sistemática os relatos de viagem e diários dos exploradores, cientistas ou comerciantes europeus que deambulavam pela África tropical no final século XIX, se prova que esses documentos são muitas vezes idealizados ou imprecisos e que na maior parte do tempo estes Europeus estariam num estado permanente de êxtase provocado pela doença, altas dosagens de quinino, álcool, opiáceos e outras drogas. A hipótese, que acho muito pertinente, é de que teria sido apenas nessa “zona” extática que os exploradores europeus transcenderam as suas limitações psicológicas e sociais, conseguindo alguma imersão nas culturas locais, o que teria proporcionado eventuais diálogos ou esporádicas relações um pouco mais “horizontais” do que o sistema colonial poderia supor. Diria que a loucura das minhas personagens é tanto gerada pela impossibilidade de compreensão do outro como pela emergência do reprimido, mas gostava de pensá-la como uma possibilidade de imersão cultural, provavelmente só possível quando os corpos se esquecem de quem são...
Porque decidiu atribuir nomes da nobreza europeia aos africanos  e vesti-los com fatos da corte?
 Na minha versão livre do An Outpost of Progress, ao contrário do original o presente intersecciona-se com o passado, anulando o tempo cronológico. Num mesmo plano, no tempo presente do filme, (finais do século XIX), ecoam fantasmaticamente personagens esquecidas desses 400 anos de relações. Havia desde quinhentos, um reino Congolês com uma estrutura social copiada ao detalhe do reino Português., como se no meio da selva tropical, no século XVI, se edificasse uma cópia de Portugal com reis e nobres negros de nomes e identidade portuguesas.
Entrevistado por António Pinto Ribeiro


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