A ASSASSINA | 31 MAIO | 21H30 | IPDJ

A ASSASSINA
Hou Hsiao-Hsien
TW/CN/HK/FR, 2015, 105’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Hou Hsiao-Hsien
Argumento: Acheng, Chu Tien-Wen, Hsieh Hai-Meng 
Director De Fotografia.: Mark Lee Ping-Bing
Montagem: Liao Ching-Song
Música: Lim Giong
Interpretação: Chang Chen, Shu Qi, Zhou Yun, Tsumabuki Satoshi
Origem: Taiwan/China/Hong Kong/França
Ano: 2015
Duração: 105’ 

FESTIVAIS e prémios
Festival de Cannes - Melhor Realizador, Melhor Banda Sonora
Golden Horse Fjlm Festival (Taiwan) — Melhor Realizador, Melhor Filme, Melhor Fotografia, Melhor Banda Sonora, Melhor Guarda Roupa e Caracterização



CRÍTICAS
Esta assassina passa mais tempo a observar do que a assassinar. E há muito tempo que não víamos tão imaculada concepção plástica: o ecrã a explodir em cores, os vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da natureza.
Sete anos sem longas-metragens de Hou Hsiao-Hsien - desde A Viagem do Balão Vermelho, de 2008, em si mesmo um filme cheio de peculiaridades - conferem a A Assassina uma aura de “regresso”, e como regresso o filme foi saudado no Festival de Cannes 2015, onde este foi um dos filmes de maior destaque e de onde Hou saiu com o prémio de melhor realizador. Mas se é o “regresso de um cineasta”, de um grande cineasta, poucas coisas nele, se algumas, se podem qualificar enquanto “regresso”: tal como no filme de 2008, que foi rodado em Paris, Hou continua em viagem, sendo de notar que desde o seu primeiro filme rodado fora de Taiwan (As Flores de Xangai, em 1998) se vêm acumulando os filmes de Hou feitos em territórios estrangeiros. Viagem que neste caso o leva à China continental, à indústria da República Popular, cada vez mais um polo aglutinador das cinematografias chinesas e em cada vez mais frequentes colaborações com cineastas de Taiwan (como Hou) e de Hong Kong. Viagem, ainda, porque A Assassina mergulha em géneros (o wuxia) e épocas históricas (o século IX) estranhos ao essencial da obra de Hou, que nunca trabalhou a partir de uma lógica de género e se tem vários filmes históricos eles tendem a concentrar-se no século xx, sobretudo retratando as primeiras décadas de Taiwan depois do fim da Guerra Civil chinesa. 

Portanto, tudo é novo, tudo é território desconhecido, para Hou e para o espectador. Nem a “história de Taiwan” nem um daqueles melodramas contemporâneos, familiares (como Um Tempo Para Viver, um Tempo Para Morrer, 1985) ou intimistas (como o segmento “actual” de Três Tempos, de 2005, o último momento em que Hou filmou um “aqui e agora” de Taiwan). Em vez disso, a antiguidade chinesa, entre a história e a mitologia, e as suas representações artísticas - Hou referiu que uma das suas principais inspirações em A Assassina tinha sido a pintura clássica chinesa, e a este aspecto já voltaremos. E portanto, nem a sombra de Ozu nem a de Antonioni, influências (sobretudo o japonês) visíveis em diversos momentos da obra de Hou - se quisermos fazer o jogo das associações cinéfilas diríamos que A Assassina lembra mais o Yokihi com que Mizoguchi, na fase final da carreira, filmou a antiguidade chinesa a partir de uma heroína feminina, com a dimensão sacrificial da personagem e coexistir com a observação dos rituais do poder e um sentido estético de uma precisão milimétrica.É o aspecto que mais imediatamente salta os olhos: a imaculada concepção plástica de A Assassina, a maneira como faz o ecrã explodir em cores, pôr os vermelhos a dialogar com os dourados, e logo a seguir ligá-los aos verdes da natureza. Mas há muito tempo que não víamos cores assim, tão fortes e definidas sem que isso seja ostensivo, com uma lógica de tableau vivant, de quadro vivo, perfeitamente dominada e administrada, até no que convoca em termos de uma fixidez – importante enquanto sugestão da dinâmica das estruturas do poder na China da época, e importante enquanto matéria, assumidamente “museológica” se quisermos, que se oferece ao olhar da protagonista, essa “assassina” que passa mais tempo a observar do que a “assassinar” (é, de resto, toda a questão narrativa do fìlme: Nie Yinniang é uma assassina exímia que tem apenas o terrível defeito de se comover com as suas supostas vítimas, a ponto de se tomar incapaz de executar o trabalho).  A aproximação de Hou à História, nesse sentido, tem o que seu quê de rosselliniano tal como o mostra um filme como a Tomada do Poder por Luís XIV , especialmente: ela é ao mesmo tempo muito neutra, e muito descritiva ( a quantidade de pequenos rituais, como a preparação de um banho, por exemplo, com que Hou preenche cenas inteiras), e construída a partir de uma objectividade que tomas as tradições representativas (a pintura, como disse Hou) como fonte de reconstituição mais credível. Por outro lado, a relação com um olhar preciso - o da protagonista - vai introduzindo cambiantes nesta espécie de neutralidade: é reparar na quantidade de véus e cortinas que a partir de certa altura se vão colocando entre a câmara e a matéria filmada, sinalizando a posição furtiva da assassina mas ao mesmo individualizando, e de certa forma idealizando até ao risco de evanescência, o olhar sobre todo aquele rigor de composição.

Composição: já mais do que uma vez dissemos que é um dos valores mais em crise no cinema contemporâneo. Uma das coisas admiráveis de A Assassina é esse reencontro com um cinema que faz da composição plástica um valor central, e não numa perspectiva decorativa mas realmente significativa, puxando as possibilidades (de definição, sobretudo) da imagem digital a um ponto que raramente se tem visto. Mais, parece mesmo um filme feito a pensar primordialmente num ecrã de grandes dimensões (o da sala de cinema), tal a complexidade das composições e a importância dos detalhes e das proporções (aquele plano no início pré-genérico, ainda o filme é a preto e branco, em que as figuras humanas são apenas pequenas “manchas” num enquadramento dominado pelas copas das grandes árvores e por uma imponente estrutura arquitectónica). É algo que também se tem tomado raro. 

Mas aqui chegados, que é do wuxia e das artes marciais? Não é que A Assassina seja um filme em trompe l’oeil e passe o tempo a esconder-se do que anuncia ser - todo o universo está lá, todos os ingredientes estão lá. Mas Hou não faz um filme de género, faz uma interpretação do género. Há alguns duelos, impecavelmente coreografados, mas são poucos, e são rápidos. Mas o coração do filme não é a acção, é a relutância em passar à acção, em abdicar dos “sentimentos humanos”, como na introdução diz a mentora da assassina à assassina, apontando-lhe um defeito. O filme atrasa, hesita, adia: é a característica mais singular do seu trabalho sobre o tempo, esse constante adiamento da “acção”, sempre trocada pela “contemplação”. Embora trabalhe o século IX, a preocupação de A Assassina com a compaixão e com a disposição para a compaixão, com a recusa de uma impiedade pragmática trocada pelo seu exacto oposto, não deixa de parecer um comentário a este século XXI em que, da China ao Ocidente, se impõem os valores do individualismo e da lei do mais forte, na economia como na vida social. Há uma nobreza e um abandono na personagem principal que, isso sim, resiste e continua sempre a resistir à mácula. Não é, portanto, com uma elipse que se passa dos últimos planos na corte do alvo da assassina aos planos em que ela cai definitivamente em desgraça junto da mentora: apenas a expressão de algo que não aconteceu, em nome da compaixão. E por isso A Assassina pode terminar a trazer-nos ao espírito, se perdoarem a referência “ocidental”, a dissipação do final de uma peça com A Tempestade de Shakespeare.
Luís Miguel Oliveira, Público




A Assassina, do taiwanês Hou Hsiao-hsien, é uma autêntica maravilha visual (e sonora), uma espécie de oferta aos sentidos e à imaginação que não acontece frequentemente na vida de um espectador. A décima quinta longa metragem do mestre HHH abre com duas sequências a preto e branco. O papel que desempenham é ao mesmo tempo dramático — apresentando a heroína, uma aristocrata do século IX educada na arte de combater e de matar — e plástico — sublinhando, no formato antigo de uma imagem quase quadrada (o 1:1.33), a proximidade com a pintura chinesa clássica, na qual a tinta, o pincel e o branco do papel fazem nascer um mundo simultaneamente naturalista e metafísico. O filme continua depois a cores, mas sem se distanciar desta referência decisiva. 

Situado num contexto histórico marcado por uma grande desordem, numa época de inumeráveis rebeliões dos potentados locais contra o poder central do imperador, A Assassina é um filme de artes marciais. Mas é um filme de artes marciais que não se parece com nenhum outro. E que, não se parecendo com nenhum outro, expõe, no entanto, verdade do género por inteiro. 
O seu motivo principal é o dilema da mestra guerreira Yinniang, dilacerada entre o dever de levar a cabo a sua missão assassina e a tentação de ceder aos sentimentos que a ligam ao seu sobrinho, hoje governador irredentista e que foi designado o seu alvo a abater. 
O cineasta trabalha de maneira inventiva e rica de significações e interrogações a matéria dos seus planos, alternando os enquadramentos largos com enquadramentos extremamente largos (que modificam a percepção dos primeiros). Satura as imagens de elementos heterogéneos, mas que se combinam de maneira sugestiva — tecidos, vegetais, rostos e trajes, peças de mobiliário — para engendrar, literalmente, uma nova matéria visual, que não pode existir senão no cinema. Multiplica os movimentos de câmara lentos como carícias, que acompanham movimentos circulares, que diríamos dançantes, ou descrevendo ambientes que reconfiguram o próprio sentido das acções. Organiza passagens harmoniosas, ou, ao contrário, em ruptura, mas sempre com uma enorme força, entre o interior e o exterior e entre o dia e a noite. 
E, sobretudo, radicaliza ao extremo o motivo rítmico do cinema de artes marciais, inspirando-se aqui mais nos clássicos de espadachins japoneses do que no cinema de género de Hong Kong. Deste modo, as aventuras guerreiras, os idílios, as conspirações e as manobras tornam-se simultaneamente uma verdadeira pesquisa sobre o próprio género, pesquisa levada a cabo com os meios da mise en scène, a procura do código secreto de um cinema inteiro, aberto para o horizonte utópico comum do espectáculo e da beleza, da tradição e da modernidade. 
Jean-Michel Frodon, Slate.fr / Medeia Magazine 

EXTENSÃO INDIELISBOA | 23 E 24 MAIO | 19H E 21H30 | TMF


23 Maio | 19:00 | TMF
Indiejúnior Para Toda a Família

- A ÁRVORE, Lucie Sunkova, França/República Checa, 2015, 15’
- DONA FÚNFIA – VOLTA A PORTUGAL EM BICICLETA, Margarida Madeira, Portugal, 2015, 6′
- TUDO SOBRE A NOSSA MÃE, Dina Velikovskaya, Rússia, 2015, 7’
- JONAS E O MAR, Marlies Van Der Wel, Holanda, 2015, 12′
- AGARRA!, Vários Realizadores, França, 2015, 5′
- GEOMETRIA VARIÁVEL, Marie-Brune de Chassey, Bélgica, 2015, 4′ 
- PÂNICO NA ALDEIA: O RUÍDO CINZENTO, Stéphane Aubier e Vincent Patar, França/ Bélgica, 2016, 4′

23 Maio | 21:30 | TMF
KATE PLAYS CHRISTINE, Robert Greene, EUA, 2016, 110'

Prémio Especial do Júri

Robert Greene, sobretudo conhecido entre nós como montador de Alex Ross Perry ou Charles Poekel (ambos em competição no ano passado), filma aqui um poderoso documentário sobre Christine Chubbuck, uma apresentadora televisiva norte-americana que, nos anos 70, cometeu suicídio em directo num noticiário. Se estes eventos já inspiraram no passado a ficção de Sydney Lumet (Network, 1976), agora Greene segue Kate Lyn Sheil, actriz que foi escolhida para fazer de Christine numa dramatização inspirada nos trágicos acontecimentos, uma viagem até onde tudo se passou.

24 Maio | 19:00 | TMF
SHORT STAY , Ted Fendt, EUA, 2016, 61'

Prémio FIPRESCI

Mike vive nos subúrbios de Nova Jérsia, entre a casa da mãe e a pizzaria onde trabalha. Numa vida deixada ao acaso, sem grandes interesses além da sua rotina, tudo parece estagnado. Quando um dia encontra um amigo este propõe-lhe ficar com o seu emprego em Filadélfia, como guia turístico. Mike aceita mas sem grande entusiasmo. Uma nova cidade, maior, espera-o, com uma nova vida à espreita. Ted Fendt filma em 35 mm esta short stay, como um retrato naturalista de um anti-herói mumblecore, num tempo que parece recuar aos ambientes urbanos dos anos 70.


24 Maio | 21:30 | TMF
TREBLINKA, Sérgio Tréfaut, Portugal, 2016, 61'

Prémio da Melhor Longa Metragem Portuguesa

“Eu sinto que todos os comboios vão dar a Auschwitz, Dachau e Treblinka”. Uma viagem pela memória que funde passado com presente. Esta é a proposta do mais recente filme de Sérgio Tréfaut, um habitué do IndieLisboa desde que no seu primeiro ano, em 2004, Lisboetas arrebatou o prémio de Melhor Filme Português. Percorrendo os caminhos férreos que ligam hoje Polónia, Rússia e Ucrânia, Tréfaut encontra pistas de um passado que resiste ao slogan do pós-guerra: “Nunca mais”. Não, “Tudo está a acontecer outra vez”. Os comboios ainda vão dar a…

MUITO AMADAS | 17 MAIO | 21H30 | IPDJ


MUITO AMADAS

Nabil Ayouch
França/Marrocos, 2015, 108’, M/16

FICHA TÉCNICA
Título Original / Internacional: Much Loved
Realização - Nabil Ayouch
Argumento - Nabil Ayouch
Director de Fotografia - Virginie Surdej
Montagem - Damien Keyeux
Interpretação - Loubna Abidar, Halima Karaouane, Asmaa Lazrak, Sara El Mhamdi Elaaloui, Abdellah Didane Ano - 2015
Origem - França/Marrocos
Duração - 108´

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015– Quinzena dos Realizadores
Lisbon & Estoril Film Festival 2015 – Seleção Oficial



CRÍTICAS
Tudo começou com um encontro entre um cineasta e prostitutas de Marraquexe. Os relatos provocaram a repulsa de Nabil Ayouch. E a ternura. Muito Amadas, a partir de hoje nas salas, está proibido em Marrocos.
Said é o único homem que as ama. Temos dificuldade em o classificar por isso: não tem uma “função precisa” a não ser gostar das raparigas. Como personagem de um filme, e porque temos necessidade de fixar uma personagem a uma razão na narrativa, de dar-lhe um papel, Said deixa-nos desamparados. Como o justificar?
“Sim, temos dificuldade em caracterizá-lo. É uma alma boa que atravessa o filme e não tem uma função. É certo que é chauffer, que conduz as raparigas, mas não é um chulo. Pelo contrário, protege-as, compra-lhes medicamentos quando elas estão doentes. Porque é que ele faz isso? Porque gosta delas. É alguém na reserva, sempre, e gosto disso, gosto do facto de ser um tipo de personagem que não existe no mundo ocidental. Estamos numa espécie de antropologia invertida: um homem ao serviço”.
Said é chauffer delas, elas são prostitutas, a cidade é Marraquexe e quem fala é o realizador de Muito Amadas, o marroquino Nabil Ayouch. Said, as prostitutas e o carro são uma parte de Muito Amadas. As duas ou três sequências em que Noha (Loubna Abidar) e as suas companheiras são conduzidas por Said não estão certamente no centro das razões que levaram à interdição deste filme em Marrocos. Mas estar com essas personagens dentro do carro é ser tocado pelo essencial. Como acontece em alguns filmes, é nessa intimidade que parece apenas contingente que se evidencia o que de forma duradoura forjou as relações. É ser tocado pela melancolia do olhar delas, por exemplo: a cidade não lhes pertence, Marraquexe está fora do seu alcance.

 “Essas cenas contam de facto a relação das personagens com uma cidade. Não é que não  lhe pertençam; é mais não terem acesso à cidade. São raparigas que, pelo facto de não serem aceites no espaço público, de não poderem circular livremente, são obrigadas a serem protegidas. É essa a função do táxi, um espaço fechado que as conduz de um lugar a outro porque elas não podem sair de casa e esperar dez minutos na rua que um táxi passe. É-lhes impossível o confronto com a cidade. Sim, o carro é uma espécie de protecção-prisão.” Essas sequências contam o que tem sido mais veemente nos filmes de Nabil Ayouch. Se recordarmos ou descobrirmos Ali Zaoua, prince de la rue (2000) e Les Chevaux de Dieu (2012), o que se sedimenta para além da vontade de um cineasta em responder às questões que num momento são actuais ou urgentes na sua sociedade – rapazes da rua que vivem num bairro da lata, no primeiro caso, bombistas suicidas no segundo – é a dramática relação entre as personagens e o espaço que os exclui. Como Nabil Ayouch se coloca do lado das suas personagens, a cidade (a Casablanca de Les Chevaux de Dieu, por exemplo, que os bombistas descobrem de carro, como as prostitutas de Muito Amadas) é presença ameaçadora, alienígena. Surge deformada em Ali Zaoua, prince de la rue mas sempre se pode dizer que isso, e toda a démarche onírica a que o realizador se atreve nesse filme traumático, acontece em nome de um pacto: estar do lado das personagens, os rapazes saturados de cola.
Os miúdos da rua, os terroristas, as prostitutas: eis declinações de uma demanda de “paraíso”, uma ilha que os acolha.  Muito Amadas ganha peso se for visto nesse contexto. A viagem final das prostitutas com o seu Said (Abdellah Didane) absorverá uma dimensão mais claustrofóbica e desesperada que o filme sozinho talvez não seja capaz de criar  porque pode  criar uma ilusão de trégua, coisa que, os filmes anteriores do realizador mostraram, não é possível. Mais ainda: embora os três possam ser “lidos” como integrando uma “trilogia social”, o olhar de cineasta define-se de forma mais nítida quando as recorrências são outras que não a mera caução de documento de uma realidade e dos seus tópicos. A ternura é uma das coisas que continua aqui.
O espelho partiu-se
Quando rodavava Ali Zaoua, prince de la rue, Nabil ouvia, como prenúncio censório, “que em Marrocos não havia crianças a viver da rua”. Les Chevaux de Dieu, baseado em acontecimentos verídicos sobre a trajectória da deriva para o fundamentalismo de um grupo de amigos de um bairro da lata de Casablanca, foi também rodado com o sentimento de que poderia haver problemas. Não houve. Por isso o realizador não estava preparado para o que aconteceria a seguir à exibição do filme na Quinzena dos Realizadores de Cannes, em Maio de 2015. “Foi uma surpresa a violência das palavras, não esperava que chegasse a essas proporções. Pensei que haveria resistências, e debate duro, mas nunca isso.”
Três ou quatro clips do filme começaram a incendiar as redes sociais em Maio de 2015. O Ministério da Comunicação de Marrocos interditou o filme, mesmo sem o ter visto, por “grave ultraje aos valores morais e à mulher marroquina, e flagrante atentado contra a imagem de Marrocos”. Quando a equipa regressou ao país, Nabil teve de proteger as actrizes em local secreto, para diminuir o impacto e a agressividade das ameaças, o que não impediu Loubna Abidar, num dia em que se aventurou no supermercado sem estar escondida por uma burka, de ser agredida  a actriz saiu do país, refugiou-se em França. O facto do realizador ser filho de mãe judia serviu também de arma de arremesso.
Essa violência não é o filme, mas o filme falava dela. Tem menos a ver com o que é explícito nas sequências de sexo ou nos diálogos  “Peço a Deus que me dê um saudita simpático e com uma pila pequena e imenso dinheiro para eu passar uma boa noite”. “O filme toca numa zona sensível, e isso magoa, que é o facto de prostituição ocupar um lugar importante na sociedade marroquina” – e as prostitutas serem determinantes em muitos casos numa economia familiar. “E ainda o facto de essas mulheres não serem apenas vítimas, serem guerrilheiras, resistentes, combatentes. A ideia de mulheres fortes que vendem o corpo em troca de dinheiro...isso não agrada. Quando se estende um espelho a uma sociedade, ela pode escolher olhar, de forma madura, ou pode quebrar o espelho. Aqui escolheram partir o espelho. O lado positivo é que, graças à interdição, houve debate. Há gente que defende o filme e gente que defende que gostando ou detestando não se pode interditar um filme sem o ter visto”.
Teatro da ternura
Tudo começara com um encontro entre o cineasta e quatro prostitutas de Marraquexe.
“Contaram-me a história delas. Não foi num dia, foi durante dois dias, non stop. Tocou-me tanto que quis voltar a vê-las. Voltei duas vezes, e depois quis começar um trabalho quase antropológico de escuta. Encontrei-me com 200 ou 300 raparigas ao longo de um ano e meio, e foi nesse tempo que se construiu um olhar sobre elas. Porque aquilo que me diziam punha-me num estado terrível.”
Inicialmente, esse trabalho de escuta estaria destinado a um documentário. “Porque as palavras delas eram importantes, suficientemente importantes para habitar um filme. Mas a coisa evoluiu porque me dei conta de que eu tinha um olhar sobre elas. E que esse olhar era, afinal, bastante terno, e eu que queria exprimir essa ternura. Daí nasceu a ideia de mise-en-scène. Não podia ser um documentário, há essa ideia de um teatro da ternura, em que essa ternura se exprime.”
Nabil decidiu-se então por uma ficção. Mas determinado a trabalhar com não profissionais. “Quis colocar o meu tempo e energia a avançar como um explorador, a descobrir pedaços de verdade escondidos pela experiência da vida das raparigas que encontrei,  das lembranças que elas poderiam ter dos bairros em que cresceram em contacto com mulheres prostituas. Não se dirige da mesma maneira uma actriz profissional e uma não profissional. E sabia que se dirigisse uma actriz profissional isso iria revelar sempre limites: uma actriz que vive no mundo árabe não pode fazer tudo, sob pena de ter de partir e ir viver para fora.” E foi então que apareceu Loubna Abidar...
“Inicialmente ela mentiu-me”, conta o realizador. “Disse-me que não tinha feito nenhum filme –tinha feito três ou quatro pequenos papéis, mas eu não estava ao corrente disso. Contou-me duas horas de mentiras e eu acreditei. No dia seguinte apareceu-me a chorar, a dizer que me tinha mentido porque queria muito participar no filme. E aí começou um caminho que durou um ano com ela. Esteve sempre presente ao meu lado, em volta do filme, dava-me conselhos  ela cresceu num bairro muito popular de Marraquexe, conhece bem o meio da prostituição, deu-me conselhos, informação, foi uma espécie de consultora não oficial do filme. E estava convencida a ir até ao fim como intérprete. Tinha essa convicção, e foi ela que me convenceu disso.”
Com o grupo, Nabil encetou um “trabalho quase teatral, stanislawskiano, um trabalho sobre a memória, sobre as palavras, sobre os gestos, sobre os corpos, sobre a coesão do grupo” – de forma a que também desaparecesse a diferença entre as experiências de vida das intérpretes. “Fi-las habitar juntas semanas antes da rodagem, para partilharem a vida comunitária.”
Esse método revela-se decisivo para a intimidade das cenas de grupo e para a naturalidade do abandono e exposição e humilhação das protagonistas nas sequências das orgias sauditas. É na segunda dessas sequências que o olhar do realizador não se contém, e, através da intervenção musical, expõe todo o seu desgosto.
“A partir do momento em que se escolhe uma música, faz-se também uma escolha em termos de intenção. É claro que a ideia de um score para sobrepor ao que se vê nas imagens permite instalar essa sensação de peso. E quis de facto isso, porque o que aquelas raparigas me contaram deu-me vontade de vomitar por vezes. Sim, a palavra é repulsa, pela perda de dignidade, quando o dinheiro se torna o valor único.”
O título Muito Amadas é significativo: toda a gente no filme fala de amor e de amar, mas são os corpos que começam a falar, a sobrepor a essas vozes o que lhes acontece, sangrando,  “Ou a rejeitar o que lhes acontece”, conclui Nabil.
Vasco Câmara, publico 


Um acontecimento cinematográfico que vem de Marrocos, recusando qualquer visão do país em tom de "postal-ilustrado".
Terminada a temporada dos Oscars, importa reconhecer que, antes e depois, o mercado cinematográfico português continua marcado por uma salutar diversidade. E a observação não envolve qualquer reticência perante o actual cinema americano — de facto, sou dos que pensam que os prémios da Academia de Hollywood envolveram algumas admiráveis propostas temáticas e estilísticas.
Importa também conservar os olhos e ouvidos abertos a experiências porventura menos espectaculares, em todo o caso marcadas por referências culturais bem diferentes. É o caso do filme Muito Amadas, assinado por Nabil Ayouch, cineasta francês de ascendência marroquina, sobre um grupo de prostitutas em Marraquexe, nos dias de hoje.
Banido pelo governo marroquino [...], Muito Amadas possui uma evidente dimensão de panfleto social. A existência das protagonistas, interpretadas por quatro excelentes actrizes — com destaque para Loubna Abidar, nomeada para o César de melhor intérprete feminina —, emerge num contexto em que o machismo mais violento se cruza com a degradação de muitos laços sociais e familiares e, em particular, com situações de fragilidade financeira ou mesmo de pobreza.
Em todo o caso, a contagiante energia do trabalho de Ayouch não decorre de um discurso estritamente social, antes do modo como tal discurso encarna num metódico labor cinematográfico. Estamos, assim, perante mais um exemplo de uma tendência realista que, hoje em dia, podemos encontrar nos mais variados contextos — desde as propostas dramáticas do americano J. C. Chandor (como o admirável Um Ano Muito Violento) até à renovação da tradição russa por Sergei Loznitsa (No Nevoeiro), passando por algumas experiências portuguesas, por exemplo de João Canijo (Sangue do Meu Sangue). 
Os contrastes dos títulos que podemos citar são reveladores de uma dimensão essencial. Não se trata, de facto, de defender um conceito universal, muito menos unívoco, de realismo. Trata-se, isso sim, de reconhecer que o desejo cinematográfico de dar conta da vida vivida envolve os mais diversos realismos, numa pluralidade capaz de nos fornecer pistas interessantíssimas para superarmos clichés de (des)conhecimento.
Tal fenómeno envolve uma atitude de resistência — que, sendo estética, é eminentemente política — a todos os formatos, nomeadamente de raiz televisiva, que tendem a reduzir a “realidade” a padrões simplistas ou estupidificantes. Observe-se, entre nós, a permanência dos horrores da “reality TV”, todos os dias multiplicados perante o silêncio ensurdecedor dos discursos políticos.
No caso de Muito Amadas, está também em jogo a recusa dos estereótipos turísticos que, no contexto europeu, tendem a descrever o norte de África de modo pitoresco, tendencialmente anedótico. Tanto bastaria para conferir ao trabalho de Ayouch o valor mais básico, mas também mais essencial, de qualquer realismo: não desistir de ver e pensar a complexidade do real.
João Lopes, Diário de Notícias

FOXFIRE - RAPOSAS DE FOGO | 10 MAIO | 21H30 | IPDJ



 

FOXFIRE - RAPOSAS DE FOGO
Laurent Cantet
França/Canadá, 2012, M/14,143’

FESTIVAIS
Festival de San Sebastian - Melhor Actriz
Festival de Toronto - Seleção oficial

FICHA TÉCNICA
Título Original: Foxfire
Realização: Laurent Cantet
Argumento: Robin Campillo e Laurent Cantet
Baseado no livro Raposas de Fogo de Joyce Carol Oates
Montagem: Robin Campillo, Sophie Reine, Stéphanie Léger, Clémence Samson
Director de Fotografia: Pierre Milon
Música original: Timber Timbre
Interpretação: Raven Adamson, Katie Coseni, Madeleine Bisson, Claire Mazerolle, Paige Moyles, Rachael Nyhuus, Lindsay Rolland-Mills, Alexandria Ferguson
Origem: França/Canadá
Ano: 2012


ENTREVISTA AO REALIZADOR
O título original deste filme de Laurent Cantet, “Foxfire”, é o nome de batismo de um gang de raparigas que vão criar uma espécie de sociedade secreta. O objetivo delas? Sobreviverem, independentes, vingando-se das humilhações que lhes são impostas por uma sociedade machista. Estamos em 1955, numa pequena cidade suburbana americana a norte de Nova Iorque, tal como Joyce Carol Oates a descreveu, mesquinha, bolorenta, na sua novela homónima. Para a escritora, o seu grupo de adolescentes é uma irmandade de sangue, “a true outlaw gang” que também seduziu Laurent Cantet e o levou ao continente americano.
Esta é a sua sétima longa-metragem, filmada no outro lado do Atlântico [a rodagem foi no Canadá], em inglês. O que é que o levou a “Raposas de Fogo”?
É-me difícil identificar o momento exato em que vejo a luz ao fundo do túnel. Quando começo a trabalhar, começo por testar a minha vontade. Durante esse trabalho solitário decido então se me vou lançar ou não num novo filme.
Quanto tempo dura esse trabalho?
No caso de “Raparigas de Fogo”? Durou três anos e meio. É verdade que, neste caso, estava perante um livro que adoro e que me seduziu muito. Encontrei os temas que abordo habitualmente: o espírito de grupo, a luta, a resistência. Tudo o que me faz fazer cinema.
Acha que o modelo deste filme continua o que fez em “A Turma”?
Sem dúvida, eu tive vontade de continuar a experiência, de me confrontar outra vez com adolescentes nesse período da vida tão importante em que nos formamos, em que nos procuramos ao mesmo tempo que experimentamos fazer coisas novas. Eu posso imaginar as atrizes de “A Turma” no lugar das personagens de “Raposas de Fogo”.
É difícil evitar a nostalgia quando se faz um filme de época?
É difícil e, mais do que isso, é recomendável porque o passado que se reproduz no cinema é sempre um tempo fabricado e postiço. Temos sempre de partir do princípio de que um filme de época tem de estabelecer uma ponte com o presente. O respeito excessivo pela época em que um filme decorre pode estragá-lo.
Quis filmar esta história como se ela fosse de hoje?
Sim, e a um nível político essa é uma questão importante porque, infelizmente, os problemas com que aquelas raparigas se confrontam nos anos 50 são ainda problemas de hoje. As raparigas de “Foxfire” são irmãs longínquas das Pussy Riot. Quando elas grafitam a montra e escrevem que o dinheiro é igual a merda e igual a morte, isto podia estar a passar-se hoje em Moscovo, em Madrid ou em Atenas. Dito isto, os décors de “Raposas de Fogo” são indiscutivelmente americanos e anos 50. E exigiram-nos muito trabalho.
Porquê?
Porque são décors construídos para 360 graus, isto é: nós trabalhamos com duas câmaras que filmam as cenas integralmente, em permanente campo/contra-campo. Por exemplo, numa cena de exteriores, não podemos mostrar só um lado da rua.
“Raparigas de Fogo” é já a segunda adaptação ao cinema de “Foxfire: Confessions of a GirI Gang”. Viu a primeira? [realizada por Annette Haywood-Carter, com Angelina Jolie]
Não. Mas sinto que é um filme muito afastado do meu, apercebi-me disso pelo trailer, pelas imagens que vi. O que me interessa no livro é a maturidade que aparece naquelas raparigas, não a pequena aventura ligeira que, tanto quanto posso supor, o outro filme aborda.
Joyce Carol Oates gostou do seu filme?
Não sei. Enviámos-lhe um DVD. Ficámos à espera da sua reação. Não tivemos resposta.
Esta é a sua terceira adaptação de um romance...
Sim, mas não tenho uma fórmula, não penso em livros para fazer filmes. E estes são muito distintos. “Para o Sul” é uma adaptação muito livre do texto “La Chair du Maître”, de Dany Laferrière. Autorizei-me a acrescentar elementos e a interpretar coisas da minha própria estada no Haiti. Em “A Turma” houve uma fusão imediata ente mim, o meu coargumentista Robin Campillo e o autor do livro que também faz de professor no filme, François Bégaudeau. François tinha sido, de facto, professor, sabia o que era a vida numa sala de aula, tornou-se um suplemento de realidade precioso.
E no caso de “Foxfire”? Fui bastante mais fiel ao livro do que julgava, também porque este é mais romanesco. Tive uma empatia muito grande pelas personagens e quis reencontrá-las no cinema, descrevendo a linearidade do seu percurso.
A escolha do elenco de um filme é sempre um passo crucial e ainda mais neste caso porque o que está em causa em “Raparigas de Fogo” é a escolha, não de um ou dois atores centrais, mas de um grupo. Como é que decorreu esta fase?
E sempre muito complicado descrever um processo de casting. No meu caso, acabo sempre por deixar-me levar por uma simpatia pelas pessoas que descubro, é mais forte do que eu. Deixo-me seduzir. Deve haver uma energia, ou um sorriso, que bastam para me convencer mas o processo é muito intuitivo. Dito isto, eu vi tantas, mas tantas raparigas para os papéis que eu acho que poderia ter feito dez filmes diferentes com dez grupos de atrizes diferentes. A escolha final foi, por isso mesmo, quase arbitrária. Mas a sua pergunta toca num ponto essencial: era preciso que o grupo funcionasse. Tivemos que sopesar a personalidade de cada atriz selecionada, encontrar toda uma química entre elas que as repetições nos ensaios criou. Esta fase de troca entre o casting, o argumento e a descoberta das personagens levou-nos seis meses de trabalho.
Só uma das atrizes é profissional?
Sim, Tamara Hope.
Porquê?
Achei que a sua personagem, Marianne, necessitava de outro ritmo, de outra experiência, porque ela também vem de outro meio, encarna uma posição social estável. Todas as outras aparecem no ecrã pela primeira vez. Mas tenho de precisar isto: ao contrário dos atores amadores de “A Turma”, que foram selecionados no ateliê de uma fase de pré-produção do filme, todas as atrizes de “Raparigas de Fogo” já queriam, ou pelo menos sonhavam, tornar-se atrizes. Encontrámos a maioria delas em secções de teatro de liceus no Canadá, na zona de Toronto.
Ficou com muitas horas de rodagem para montar? É que temos a sensação de que a câmara estava sempre ligada.
Muitas. Este é o resultado de um método de trabalho só possível com o digital e que começou para mim com “A Turma”. Em vez de pedir a um ator que diga uma frase para mudar depois a posição da câmara prefiro ter duas câmaras a filmar em simultâneo, oferecendo aos atores a possibilidade de criarem a energia da cena, sem paragens. Filmamos pois a cena do início ao fim. Se esta tem 10 páginas, fazemos as dez páginas sem interrupções. Acontece-me mesmo falar durante as takes, dar pequenas indicações que depois são apagadas no som, “recomeça daqui, disseste isto mal”, coisas deste género...
Até que os atores se esqueçam das câmaras?
Exatamente. Os atores embalam-se na ação.
O seu filme anterior chamou-se em francês “Entre les Murs”, embora o seu título internacional tenha sido “The Class” [tal como o português: “A Turma”]. Acha que “Foxfire” assim será chamado em todo o lado? E o que gosta em particuIar deste título?
Para já, soa-me bem, mas percebo a sua pergunta: é que ninguém sabe exatamente, nem os anglo-saxónicos, o que “Foxfire” quer dizer ao certo. É uma palavra ambígua. Disseram-me que pode ser o fogo-fátuo, mas a palavra tem mais do que um significado. É uma palavra que precisa de ser completada.
Recentemente, também os franceses Michel Gondry ou Arnaud Desplechin sentiram a necessidade de ir filmar no continente americano. Tem alguma explicação para isto?
No meu caso, foi o romanesco do livro de Joyce Carol Oates que me levou. Acho que o cinema é uma maneira de explorar mundos que não conhecemos. Partir para outro país é uma motivação extra que nos convida a encontrar pessoas de quem vamos gostar, senti isso claramente na curta que fiz em Cuba para o filme coletivo “7 Dias em Havana”.
Francisco Ferreira, Expresso, 9/1/2016


CRÍTICA
Laurent Cantet realizou A Turma em 2008. O filme, que retratava o dia-a-dia de uma escola conturbada, foi Palma de Ouro em Cannes, recebeu grandes elogios e foi exibido como experiência pedagógica em muitas escolas. Foxfire foi o sucessor de A Turma. Estreou em festivais em 2012 e nas salas de muitos países europeus no ano seguinte, mas só agora chegou a Portugal. [...]
Foxfire pouco tem a ver com A Turma. No máximo, os protagonistas são, em ambos os casos, adolescentes à deriva na sociedade que os acolhe (ou “acolhe”). Mas tudo o resto é diferente: a língua, os horizontes geográficos ou o momento temporal. Estamos nos anos 50, numa pequena cidade americana e o filme é inteiramente falado em inglês. Acompanhamos um gang feminino numa sociedade machista. Lembramo-nos de Spring Breakers, mas o retrato aqui é mais sério. E do mais recente Bando de Raparigas, mas Foxfire é bastante mais incisivo e menos sensaborão.
Da pequena e mais básica noção de justiça, estas jovens partem para algo mais, guiadas por Legs, numa surpreendente interpretação da desconhecida Raven Adamson. Há uma aspiração de construir uma sociedade inspirada em ideias comunistas em pleno período da paranóia McCarthista. E é aqui que o idealismo se acaba por debater com algumas contradições. Por um lado, há uma lealdade e uma aspiração de liberdade. Por outro, há imposição, injustiça racial, falta de solidariedade e fecho ao exterior.
É nesse idealismo algo niilista que o filme tem, talvez, uma das suas maiores forças. E, nas origens dessa construção, há uma personagem muito peculiar, a de um padre convertido ao comunismo, que é pena não ter um papel mais forte. [...]
Seja como for, apesar de não ser um filme imaculado e nem sempre concretizar com primor os seus intentos, saliente-se o mais interessante. Tal como em A Turma, Cantet não dá respostas e abre caminho às nossas reflexões. Se no filme anterior eram de natureza pedagógica, agora são sobre religião, comunismo ou os mistérios da alma, com que o ciclo do filme se encerra, ao som de um belo tema dos Timbre Timbre. Com que encerra ou com se abre de novo. Sem quaisquer demagogias ou espírito panfletário.
João Torgal, arte-factos.net


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