UMA NOVA AMIGA | 28 OUT | 21H30 | IPDJ

 


UMA NOVA AMIGA
François Ozon
França, 2014, 108’, M/16


FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: François Ozon
Adaptado livremente de The New Girlfriend de Ruth Rendell
Montagem: Laure Gardette
Fotografia: Pascal Marti
Música Original: Philippe Rombi
Interpretação: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphäel Personnaz, Isild Le Besco, Aurore Clément
Jean-Claude Bolle Reddat
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 108’


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de San Sebastián 2014 – Prémio Sebastiane
Festival de Londres 2014 – Selecção Oficial, Em Competição
Prémios César 2015 – Nomeações para Melhor Actor e Melhor Guarda-Roupa 



TRAILER
 

CRÍTICA

Um dos mais originais criadores do actual cinema francês, François Ozon, está de volta com "Uma Nova Amiga", retrato de um invulgar triângulo amoroso inspirado num conto de Ruth Rendell.
Como definir, afinal, as linhas de força do cinema de François Ozon? Como ligar — se que é tal é possível — títulos tão fascinantes, e também tão diferentes, como "Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes" (2000), adaptação de uma peça de Rainer Werner Fassbinder, "8 Mulheres" (2002), um musical, ou "O Tempo que Resta" (2005), uma reflexão sobre a aproximação da morte?
Talvez possamos responder através do novo lançamento com assinatura de Ozon, "Uma Nova Amiga", brilhante exercício narrativo inspirado num conto de Ruth Rendell ("The New Girlfriend"), definido a partir de um triângulo invulgar: duas amigas, Claire (Anaïs Demoustier) e Laura (Isilde Le Besco), e o marido de Laura, David (Romain Duris); quando Laura morre, Claire descobre que David "compensa" a falta da mulher, assumindo-se ele próprio como personagem feminina...
Que está em jogo, então? Seja qual for o registo dramático, "ligeiro" ou "grave", Ozon tende a colocar em cena personagens que transcendem os modelos de comportamento que, por razões públicas ou privadas, são levadas a assumir. Seria, por isso, um erro encarar a transfiguração de David como o assumir de uma posição "militante" — se ele desliza para a personagem de uma mulher (a que Claire dará o nome de Virginia), é tão só para ser fiel à verdade mais íntima dos seus desejos e do amor que neles se transporta.
Ozon consegue, assim, a proeza, ao mesmo tempo iconográfica e poética, de discutir o próprio conceito de personagem, nessa medida mobilizando os actores para um invulgar jogo de evidências e máscaras. No caso de "Uma Nova Amiga", importa destacar a subtil composição de Romain Duris, afinal superando e, de alguma maneira, ironizando a própria dicotomia sexual.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/
 


ENTREVISTA COM FRANÇOIS OZON
De onde veio a ideia para UMA NOVA AMIGA?
O filme é livremente inspirado num conto de Ruth Rendell, “The New Girlfriend”, uma história de quinze páginas no espírito da série televisiva “Hitchcock apresenta”: uma mulher descobre que o marido da sua amiga traveste-se às escondidas. Ele torna-se a sua nova amiga, mas assim que ele lhe declara a sua paixão e tenta fazer amor com ela, ela mata-o. Eu tinha lido este conto na altura de Une Robe d’Été, há cerca de vinte anos,e tinha escrito uma adaptação muito fiel para uma curta-metragem, mas não tinha encontrado financiamento, nem o elenco ideal, por isso tinha abandonado este projecto.
Pensava naquela história que me assombrava com frequência, e dei-me conta de que os grandes filmes sobre o travestismo que eu gostava eram aqueles onde a personagem se travestia à partida não por um desejo pessoal mas por uma contingência exterior: músicos perseguidos pela máfia obrigados a disfarçarem-se de mulheres em Quanto Mais Quente Melhor, um actor no desemprego que se torna actriz para um papel em Tootsie - Quando Ele Era Elaou uma outra actriz em dificuldades financeiras em
Victor/Victoria... Estas circunstâncias exteriores permitem aos espectadores identificarem-se com as personagens e desfrutar do travestismo sem culpa ou desconforto. Billy Wilder era para mim a referência perfeita para tratar tal tema. Excepto que, no caso desta história, a personagem tinha já dentro dela este desejo, antes mesmo de passarà prática.
De onde vem a ideia do luto para permitir ao espectador identificar-se mesmo assim com David/ Virginia?
Esta ideia do luto, que não existia no conto, permite ao espectador e à Claire compreender o comportamento do David antes de aceitá-lo. Daí a importância do flash back com a cena na qual o David consegue acalmar e alimentar o seu bebé graças ao cheiro da blusa da mulher morta.
Tive esta ideia graças a uma conversa com Chantal Poupaud, que realizou Crossdresser, um documentário sobre as pessoas transgénero (apaixonante o ritual concreto da transformação: depilar-se, maquilhar-se, esconder a barba...). Ela conhece muito bem este meio, e por isso pedi-lhe para me falar sobre os travestis que ela conhecia e ela falou-me de um deles, a esposa estava muito doente, sabia que ia morrer e tinha optado por desaparecer da vida do seu marido. Para fazê-la viver, ele tinha decidido vestir-se com as roupas dela regularmente. Esta ideia fascinou-me e preocupou-me de imediato.
Tinha encontrado finalmente a chave para poder adaptar e escrever a minha história.
[...]
No início do filme, com alguns recursos visuais muito fortes, acompanha vinte anos de vida...
Isto era importante para a identificação das personagens. No argumento, tinha escrito uma voz off explicativa mas, durante a rodagem, tentei contar e visualizar o máximo de coisas através dos movimentos de câmara e da montagem, a voz off já não era necessária. Considerando as etapas da vida – a infância, a amizade, o casamento,o nascimento de uma criança, a doença, a morte – o risco era cair no kitsch, era preciso encontrar a distância certa para criar emoção.
UMA NOVA AMIGA situa-se num espaço pouco definido geograficamente.

Alguns dos meus filmes são ancorados numa realidade muito precisa e documentada. Outros criam o seu próprio mundo, como 8 Mulheres, Dentro de Casa ou Uma Nova Amiga. A minha ideia era encontrar a dimensão universal e intemporal dos contos de fadas, género presente desde o início do filme com o cadáver de Laura no seu caixão, e no fim quando Virginia acorda tal como La belle au bois dormant.
Como foi feita a escolha de Romain Duris?
Eu vi vários actores, com os quais fiz testes de maquilhagem e de perucas, para ver quais os que se pareciam mais com uma mulher, se isso funcionava. Era um meio de testar o seu desejo de feminilidade.
O Romain destacou-se, não por ser “a mulher mais bonita”, mas porque provinha dele uma grande alegria em travestir-se. Era evidente uma encarnação, um prazer fetichista de vestir os vestidos, sem ironia ou distância.Já tinha reparado na sua forma graciosa e lúdica de cantar a canção de Lola, de Jacques Demy, em 17 Fois Cécile Cassard, de Christophe Honoré. O seu desejo pelo papel de David/Virginia era de tal forma forte que a escolha tornou-se evidente para mim.
E a escolha de Anaïs Demoustier?
A Claire é uma personagem complicada a partir da qual todos nós seguimos o seu ponto de vista, mas que é acima de tudo espectadora da metamorfose de David/ Virginia. Ela tem poucas falas, é sobretudo a partir do seu rosto que seguimos a sua evolução: os seus desejos, os medos e as suas mentiras a Gilles, mas também a si própria.
Vi muitas actrizes para este papel, mas cheguei rapidamente à conclusão de que a Anaïs era a mais interessante para filmar na posição de observadora. Passa-se sempre qualquer coisa no seu rosto, nos seus olhos, e nos ensaios com o Romain, ela afirmou-se definitivamente.
Para o filme, pedi-lhe para mudar a sua cor de cabelo. Para mim, ela tem um verdadeiro tom ruivo, eu tinha
que colocar em evidência as suas sardas de ruivae glorificá-las.
Por exemplo, com Pascal Marti, o director de fotografia, trabalhámos muito com cores outonais. O ruivo inscrevia-se portanto completamente nesta lógica cromática.
E a escolha de Raphaël Personna?
Eu tinha-o encontrado para o papel de Virginia. A priori, fisicamente, podemos imaginá-lo mais facilmente como mulher do que o Romain, mas no final não funcionava.
Quando lhe telefonei para lhe dizer que não o tinha escolhido para o papel de Virginia mas que por outro lado queria propor-lhe o papel de Gilles, ele respondeu-me logo: “Genial, eu prefiro o Gilles, não me sentia à vontade no outro papel!”
[...]
A única vez que eles fazem amor, a Claire rejeita o David: “Tu és um homem...”
Esta frase faz, literalmente, quase sorrir. A Claire está perdida, ela sabe bem que não se está a deitar com uma mulher, mas tinha quase esquecido isso, e aquele momento sexual trá-la de volta à realidade, um pouco como no conto. Excepto que a personagem da Ruth Rendell mata quando se dá conta dos pelos de homem que a repugnam. Aqui, é como se a Claire matasse a Virginia ao rejeitá-la, mas de uma forma simbólica e acidental. E a sua rejeição é apenas uma etapa do seu percurso. De seguida, ela fá-la-á reviver, ao aceitá-la tal como é, e ao reconhecer que se tornou ela própria mulher graças a Virginia. De uma certa forma, a Claire ressuscita a Virginia – aquilo que não conseguiu fazer com Laura


 

AMANHÃ | 22 OUTUBRO (SÁBADO) | IPDJ | 21H30



AMANHÃ
Cyril Dion e Mélanie Laurent

França, 2015, 118’, M/12


FICHA TÉCNICA
Título Original: Demain
Realização: Cyril Dion e Mélanie Laurent
Argumento: Cyril Dion
Montagem: Sandie Bompar
Fotografia: Alexandre Léglise
Música Original: Fredrika Stahl
Origem: França
Ano: 2015
Duração: 118´


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Prémios César — Melhor Documentário
  

 
CRÍTICA

Um documentário com experiências e ideias para travar o rumo de um futuro negro para a Humanidade.
O Armagedão está no horizonte do flm deste século? Os diversos vetores que interagem para decidir o futuro imediato da Terra e o nosso enquanto espécie nela dominante convergem para uma tempestade perfeita? Esfalfam-se os cientistas para prever ou prevenir, sendo verdade que ninguém sabe ao certo o que resultará da confluência do aquecimento global, da sobrepopulação, do esgotamento do petróleo, da escassez de água potável e de um modelo económico em que o crescimento constante é condição necessária para que não haja um colapso global. “Amanhã” é um filme que fala destas coisas. Não estamos, contudo, em presença de mais um documentário ecofundamentalista ou áugure da catástrofe -  matéria de que estamos todos demasiado cansados e, valha a verdade, muito descrentes. Ainda me lembro das tenebrosas previsões do MIT no início dos anos 70 que prometiam, para os dias de agora, um mundo sem energias fósseis economicamente viáveis. Também me lembro, no meu derradeiro ano de licenciatura no Técnico, de frequentar uma cadeira opcional (Propagação de Ondas Eletromagnéticas em Plasmas, creio que assim se chamava) de que, mais de quatro décadas depois, guardo uma memória difusa. Todavia, recordo com precisão algo que o professor disse numa aula: que a fusão nuclear ia ser a fonte de energia global num próximo futuro e que resolveria, de vez, todos os problemas energéticos da Humanidade, pela simples razão de a sua ‘matéria-prima’ ser a água -  e esta constituir a maior parte da superfície do nosso planeta. Nem o catastrofismo do MIT nem a boa nova que aquele professor me anunciou se verificaram. Sabemos, contudo, que é uma questão de tempo. Será para 2100 o Armagedão?
“Amanhã” diz-nos que sim, mas não é sobre essa previsão que se demora. Antes, os seus realizadores (os franceses Cyril Dion e Mélanie Laurent) foram, mundo fora, em busca de gente e de experiências em curso que agem com vista a contrariar o presságio. Da Índia aos Estados Unidos, de Inglaterra a França, encontraram não poucos exemplos de novas ideias em prática. E que funcionam. O filme não diz que é possível estender esses exemplos ao conjunto das nações, ou sequer que algumas ideias nele aventadas e nunca experimentadas sejam operativas para mudar o curso do mundo. É, todavia, estimulante saber que, na Índia, há um político local que foi capaz de ultrapassar a milenar divisão social em castas; ou que, na velha Albion, há comunidades que começaram a criar moeda própria como modo de estimular a economia regional; ou que, em San Francisco, o programa Zero Desperdícios já tem 80% de êxito, estando os 100% num horizonte previsível, com ações maciças de reutilização, compostagem e reciclagem de resíduos e uma consequente dinamização económica, criação de emprego, aproveitamento de recursos; ou que há programas de sucesso de energia eólica em Copenhaga; ou o milagre de uma pequena exploração agrícola na Normandia que, utilizando a permacultura, consegue índices de produtividade muito superiores à exploração intensiva que hoje é norma; ou que é possível uma fábrica funcionar com grande rentabilidade e um severo respeito pelo meio ambiente. E será útil acrescentar ao sistema político representativo, um senado de cidadãos designados... por sorteio entre a população? Talvez o mundo se não salve assim, mas é bom saber que há quem esteja em movimento. “Amanhã” impele-nos a não ficar quietos. E isso é bom.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
 
ENTREVISTA COM CYRIL DION E MÉLANIE LAURENT
Como é que se encontraram? Como é que nasceu o projecto para este filme?
CYRIL DION: Remonta a 2011. Na altura, eu dirigia o movimento Colibris, que tinha co-fundado com o Pierre Rabhi e com alguns amigos. Organizámos uma operação intitulada “Todos Candidatos” com o objectivo de mobilizar o máximo de pessoas para a campanha presidencial em 2012.
MÉLANIE LAURENT: Encontrei o Pierre Rabhi num jantar com a Danielle Mitterand. Ele falou-me da campanha, dei-lhe o meu número, e o Cyril telefonou-me alguns dias mais tarde para participar nela. Eu levei o meu irmão, a minha mãe, os meus amigos, o meu namorado, a minha afilhada...
CD: Rapidamente, a Mélanie quis que eu lhe mostrasse iniciativas que “mudam o mundo”... Eu levei-a à quinta do Bec Hellouin na Normandia, com a Pierrine e o Charles Hervé-Gruyer (que filmámos em  Amanhã). No caminho, demo-nos conta de que tínhamos muitos interesses em comum. Falei-lhe do projecto para um filme que nunca tinha chegado a concretizar. Uma coisa levou à outra, e eu pensei que precisávamos mesmo de fazer este filme juntos. Ela disse logo que sim e dedicou-se totalmente.
O filme parte de um estudo científico publicado em 2012 na revista  Nature. Este estudo, bastante devastador, anuncia um colapso generalizado dos nossos ecossistemas, e portanto do fim das condições de vida estáveis na Terra...
CD: Eu comecei a escrever este filme em Dezembro de 2010. Na altura, já pensava que anunciar as catástrofes não seria suficiente. Era necessário propor uma visão para o futuro. Cada pessoa tem a necessidade de se projectar, um pouco como quando as pessoas sonham com as suas novas casas e fazem planos de arquitectura.
Ora, os planos de arquitectura para a sociedade de amanhã não existiam. A minha intenção principal era transpor estes planos para um filme... Mas estava envolvido em demasiadas actividades diferentes para me dedicar seriamente a isso. Em Junho de 2012, tive um esgotamento. Um mês mais tarde, descobri o famoso estudo de Anthony Barnosky e Elizabeth Hadly. Nunca um estudo tinha tido tal efeito em mim. O meu próprio colapso encontrava-se com o colapso programado da sociedade. Disse para mim próprio que era altura de fazer aquilo que importava mais para mim e de meter este filme a andar. Demiti-me do meu cargo na Colibris e comecei a dedicar-lhe a maior parte do meu tempo.
ML: Li o estudo enquanto estava fora da cidade, fiquei em choque, passei o dia a chorar e amaldiçoei o Cyril por me ter mergulhado em tal desespero. Até à descoberta desse estudo, tratava-se “apenas” de fazer um filme positivo. De repente, tornou-se um filme necessário e isso foi um motor formidável. Na minha vida
como actriz, tinha já várias trabalhos agendados, anulei alguns deles para poder me dedicar realmente.
Agricultura, energia, o filme aborda os temas clássicos da ecologia. Depois, de repente, conduz-nos para uma história mais global e fala-nos de economia, de educação, de política...
CD: Nós queríamos mostrar que tudo está ligado. Que não é possível tratar os problemas separadamente. A agricultura ocidental, por exemplo, está totalmente dependente do petróleo. Mudar de modelo agrícola, é também mudar de modelo energético. Mas a transição energética é cara, por isso é necessário abordá-la de um ângulo económico. Infelizmente, hoje em dia a economia é criadora de desigualdades e largamente
responsável pela destruição do planeta, é preciso regulá-la democraticamente. Mas, para que uma democracia funcione, ela deve apoiar-se em cidadãos esclarecidos, que educámos para serem livres e responsáveis...
Amanhã é um filme entusiasta, ecológico e humanista?
ML: Não é um documentário ecológico, é um olhar sobre a sociedade tal como ela poderá ser amanhã... Chegámos bruscamente a uma época em que as pessoas já quase não se falam, não se encontram, estamos sempre a julgar os outros, deixou de haver empatia. Subitamente, o filme mostra-nos pessoas que agem em conjunto, que discutem questões em torno de framboesas. Estas iniciativas criam pequenas comunidades que estão muito longe do  cliché das pessoas ecológicas enfiadas na sua cave. Era importante ter personagens com as quais nos identificássemos, e com as quais as pessoas se possam identificar.
CD: Nós queremos dar aos espectadores vontade de viverem naquele mundo, de ser como estes novos heróis que não são milionários, nem estrelas, mas são corajosos, belos, humanos...
Pessoas normais que criam hortas, abrem superescolas... Depois de verem o Charles e a Perrine na sua luxuosa quinta em permacultura, mesmo o nosso produtor, que não tem um espírito propriamente camponês, teve vontade de ir cultivar legumes! O mesmo para o nosso distribuidor! Era esse o desafio.
ML: As pessoas não têm vontade de ser confrontadas com coisas assustadoras. No entanto, temos que enfrentá-las, não temos outra escolha. Então, para termos a força para reagir, temos necessidade de soluções, acessíveis, felizes... É por esta razão que mostramos todas estas pessoas que fazem com que não seja assim tão doloroso. Não é necessário largar tudo, mudar de vida, viver isolado numa quinta e esperar a autossuficiência... Todas as iniciativas apresentadas estão ao nosso alcance, nas nossas vidas,
e podem ser postas em prática a partir de amanhã.
A narração de Amanhã é traçada a partir de um objecto de estudo. Mélanie faz de ingénua, Cyril de pedagogo. Também era importante ser didáctico, estudar todos os lados da questão?
CD:Não tenho a ideia de que sejamos apenas didáticos! O objectivo principal era contar uma história. Nós fomos muito influenciados por um ensaio de Nancy Huston, L’espèce fabulatrice, que mostrava a que ponto os seres humanos se constroem em torno de ficções individuais e colectivas. O mundo de hoje em dia
nasceu em torno do mito do progresso, uma história à qual todos aderem. Estimular um novo impulso necessitava antes de mais de construir uma nova história. Daí o lado road-movie e todas as nossas aventuras em cada novo lugar. Depois, foi necessário tornar acessível e o mais simples possível assuntos muitas vezes áridos como a criação monetária...
ML: E para estarmos certos de chegar a esse ponto, tivemos conversas intermináveis ao preparar o filme. Eu dizia ao Cyril: “Vamos mesmo falar de economia?”. Ele respondia-me: “Sim, vais ver, é muito simples.” Então, ele explicava-me, e quando eu não entendia nada ele recomeçava, até àquilo que considerávamos
ser um bom ângulo.
As iniciativas que vocês mostram são obviamente inspiradoras mas sejamos realistas, elas não representam a profundidade do tema. Tendo em conta os desafios, elas não serão suficientes para
evitar o famoso colapso previsto por tantos estudos como aquele que vocês citam.
CD: A nossa intenção não era fornecer uma resposta absoluta para evitar o colapso mas sim contar uma nova história. Contribuir, mesmo que de forma modesta, para a emergência de uma nova cultura, novas representações do mundo. Inicialmente, tínhamos a necessidade de mudar de imaginário e, em cada época, essa era a responsabilidade dos artistas (entre outros), de produzir livros, filmes, quadros, canções... que descrevem essas mutações.
ML: No final, essas iniciativas como a permacultura, as moedas locais, as energias renováveis, desenham um mundo possível. Aquilo que pode parecer desmotivante, é que não se trata de iniciativas isoladas, mas ao mesmo tempo elas podem ser reunidas! Existe já um mundo que está no caminho certo, onde
tudo é possível. As soluções já estão disponíveis, em todos os amanhãs, é obrigatoriamente inspirador!
CD: Os cépticos de hoje verão que, daqui a 20 ou 30 anos, assim que os recursos sejam cada vez mais escassos, que os refúgios climáticos serão ainda mais numerosos do que hoje em dia, que a
produtividade agrícola caíra, que não haverá outra possibilidade senão mudar. Todas estas iniciativas vão no sentido da História, não temos escolha. Elas são as premissas de uma nova civilização e de uma nova cultura. Todos os nossos interlocutores nos falaram de resiliência. Como fazer no dia em que tudo mudar de figura? Como continuar a comer? Como produzir energia? Como fazer para que um mínimo da economia sobreviva? Estas questões preocupam pessoas que não se conhecem e que vivem em dez países diferentes. Elas dizem-nos todas a mesma coisa. É um dos eixos mais fortes do filme: a diversidade, o desejo de autonomia, a criação, de comunidades humanas para entrar em acção.
Como é que se passou a repartição de tarefas entre vocês?
ML: Não foi feita logo! Inicialmente, andávamos um pouco a querer fazer tudo a dois. Mas depois aprendemos...
CD: De um ponto de vista operacional, a Mélanie tomou mais as rédeas da rodagem e eu da montagem. Para isso, cada um consultava o outro e enriquecia o seu trabalho. Dávamos indicações gerais e juntos validávamos o resultado.
ML: Eu concentrei-me na forma, na parte artística, nas imagens. Todas as noites, o Cyril explicava-nos o que íamos filmar no dia seguinte, as pessoas que íamos encontrar, o que ele queria que aquilo contasse. De seguida, com o Alexandre Léglise, o director de fotografia, cortávamos as sequências e reflectíamos sobre a melhor forma de colocar em imagens cada iniciativa, na sua especificidade. Na Escandinávia, por exemplo, usámos uma lente oscilante para obter desfoques suaves que acrescentavam uma dimensão onírica e poética. De uma forma geral, nós queríamos colar-nos à realidade e acrescentar-lhe alma, um toque artístico.
CD: Da minha parte, eu tinha o tempo e o espaço para estabelecer uma relação com aqueles que íamos filmar, preparar as entrevistas. Tínhamos necessidade de sentir, nas imagens, que tinha tido lugar um verdadeiro encontro, que estávamos a produzir algo de íntimo. Era preciso que tudo fosse vivo, que
sentíssemos os locais, os ambientes. Não queríamos que as pessoas nos contassem aquilo que fazem, queríamos vê-las a fazê-lo. Por exemplo, na escola finlandesa, para lá da sua prática educativa, sentimos que as pessoas são felizes, que se passa lá algo de diferente.
ML: Filmámos as pessoas na sua vida e esperámos que se fizesse magia, sem encená-los. Na quinta do Bec Hellouin, pedimos logo ao Charles e à Perrine o seu programa para o dia, para filmar o que eles iriam fazer. Na Índia, acompanhámos as pessoas no seu quotidiano. E era tudo tão belo que por vezes bastava colocar a câmara no exterior. A luz, as cores, já estava tudo lá...
A propósito, este filme não é simplesmente vosso, é também de milhares de pessoas...
CD: De 10.266 pessoas para ser exacto! Para iniciar o financiamento, lançámos uma campanha na plataforma de crowdfunding KissKissBankBank. Queríamos reunir 200 mil euros em dois meses. E conseguimos... em dois dias! E no final desses dois meses, tínhamos perto de 450 mil euros. É o recorde mundial de angariação de fundos para um documentário!
ML: O resultado ultrapassou os nossos maiores sonhos. A grande força de Amanhã, é que é também o filme de milhares de cidadãos que ajudaram a financiá-lo. Perto de um terço dos financiadores pediram que, em troca do seu donativo, fossem plantadas árvores. Para além disso, eles co-financiaram o filme sem pedir nada em troca. A operação foi um sucesso tão grande que tudo arrancou mais rapidamente.
CD: Depois chegaram outros parceiros (France 2, Orange Cinema Séries, a Agência Francesa de Desenvolvimento, a fundação AKUO, a rede Biocoop, a empresa de energia Enercoop, Veja, Léa Nature, Distriborg, Hodzoni, Féminin bio...). Nós queríamos que o financiamento também fosse “verde”, tão coerente quanto possível. Com um orçamento de aproximadamente 1,2 milhões de euros, foi tudo possível. E o financiamento arrancou desta forma, o meu vizinho e amigo Christophe Massot deu-nos os primeiros
10 mil euros, que nos permitiram filmar as imagens do teaser e que de seguida nos permitiram juntar-nos à Mars Films. Era um terço das suas economias! Foi o início de uma bela história.
ML: Ao início, as pessoas com quem nos encontrávamos ficavam entusiasmadas com a ideia do filme mas não com a ideia de financiá-lo! Não é com um documentário que ganhamos dinheiro no cinema. Aqueles que nos acompanhavam, não sabiam o que iria acontecer, deram-nos uma confiança total. Paradoxalmente,
nós tínhamos muita pressão! Chegámos à primeira rodagem, em Detroit, na véspera da angariação de fundos. Estávamos todos muito entusiasmados com o facto de termos angariado o valor pretendido em 48 horas e ao mesmo tempo, temíamos não estar à altura das expectativas dos nossos mecenas.
Com Amanhã , é uma forma de esperanças que tiveram vontade de partilhar?
ML: A complexidade de tudo isto, é que está tão mau que estamos sempre perto de dizermos a nós próprios que nunca lá chegaremos. Fazer este filme encantou-me, conheci pessoas incríveis, acumulei um tal conjunto de saberes, tenho a ideia de estar mais aberto ao mundo. E por isso sou bastante mais radical
com as pequenas coisas da vida. É tudo novo para mim de estar regularmente, instantaneamente triste. Por exemplo, quando passeio num parque e vejo lixo deixado por alguém que esteve a fazer um piquenique ou quando vejo pessoas atirarem as beatas dos cigarros para as plantas...
CD:Tenho ainda mais consciência do que antes que tudo se vai desmoronar, e nunca tive tanto medo como hoje. Mas tenho ainda mais vontade de acender pequenas chamas dentro das pessoas. Adoro ver o que o filme provoca naqueles que o vêem: ele toca qualquer coisa que não está longe da superfície e que dá
vontade de fazer mil coisas úteis, de encontrar um sentido. Faltam no mundo iniciativas fáceis de meter em prática, e que dão ideias às outras pessoas. É o que dizem as nossas personagens, Mary e Pam, criadoras de comestíveis incríveis: é preciso começar na sua rua, no seu bairro, com os seus vizinhos, depois mobilizar os chefes das empresas, os agentes locais. Quando as pessoas começam a fazer alguma coisa, elas não páram, continuam, e mudam as suas ideias, experimentam e partilham. De metro, se segurarmos
a porta a alguém que venha a seguir, em 99% dos casos, essa pessoa vai ajudar uma outra pessoa. E assim infinitamente. É isto que eu gosto. Nós já não estamos numa zona de conforto e é lógico que ainda não estamos numa zona de colapso. Nós estamos numa fase particularmente inspiradora: nós sabemos
que é o momento de nos mobilizarmos. O ser humano já esteve na Lua, aboliu a escravatura, erradicou as doenças, as nossas capacidades são imensas, cabe a nós coloca-las ao serviço na da nossa sobrevivência e da nossa felicidade colectiva..