O ORNITÓLOGO | 10 OUT | IPDJ | 21H30



O ORNITÓLOGO
João Pedro Rodrigues 
Portugal/França/Brasil, 2016, 117’, M/16


FICHA TÉCNICA
Realização: João Pedro Rodrigues
Argumento e Diálogos: João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata
Montagem: Raphaël Lefèvre
Fotografia: Rui Poças
Vozes: João Pedro Rodrigues
Interpretação: Paul Hamy, Xelo Cagiao Teijo, João Pedro Rodrigues, Han Wen e Chan Suan
Origem: Portugal/França/Brasil
Ano: 2016
Duração: 117’
 

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno – Melhor realização



CRÍTICA
Dois meses após o prémio em Locarno, voltamos aos abismos de “O Ornitólogo”, às suas metamorfoses incontroláveis, à fusão do sagrado e do profano, do platónico e do carnal – com a morte a rondar por perto.
Não é nada fácil entrar num filme denso e secreto como 'O Ornitólogo". Talvez seja melhor ir com cautela. Ou com uma "Allegoria della Prudenza", título de um quadro de Ticiano sobre todas as idades do Homem e que também é título de uma curta-metragem de João Pedro Rodrigues (J.P.R.), na qual unia umbilicalmente, e em gesto solene, o túmulo de Mizoguchi e a urna de Paulo Rocha. Deixemo-nos levar por aqui, pelos túmulos, pelas urnas. Ou melhor, por uma presença da morte que, embora esteja pacificada naquela curta, paira há muito — e ameaçadoramente — sobre esta obra, e em especial sobre "O Ornitólogo". Que não será — digamos isto em jeito de convite — uma celebração da morte mas sim da vida.
Sabemos, de facto, muito pouco sobre o ornitólogo do título, que se chama Fernando e é interpretado pelo ator francês Paul Hamy. Desconfiamos, ainda com os pés presos à Terra, que uma expedição científica daquelas exigiria mais do que uma só pessoa — talvez Fernando esteja mesmo a precisar de estar sozinho. Personagem de ficção, ele não deixa de ser o ornitólogo que J.P.R. sonhou ser um dia (e à hipótese do autorretrato chegaremos). Como é hábito no trabalho do cineasta, Fernando também não é homem que fale muito, e naquele Douro transmontano e mítico, naquela fronteira luso-espanhola que é área protegida e deserta, palavras são tudo o que ele não precisa: não só lhe falta um interlocutor como corre o risco de 'espantar' as aves que são o seu objeto de estudo. Ora, acontece que Fernando troca umas mensagens de telemóvel com um tal Sérgio (que se supõe ser seu namorado e tem o nome da personagem central de "O Fantasma" , primeira longa-metragem, de 2000) e chega até a atender uma chamada deste, que logo cai por falta de cobertura de rede. Descobrimos aí várias coisas: que o filme tem necessidade de marcar uma data e uma hora, de sublinhar que se passa num  'aqui e agora' , quando, na verdade, se prepara para se lançar (e para nos levar) para um 'não tempo' – em tudo dominado pelo desejo.
Descobrimos também que o nosso herói tem de tomar uns comprimidos, que depois perde quando o rio lhe prega uma partida e os rápidos o arrastam de caiaque (o primeiro dos elementos fálicos do filme). Não sabemos para que servem os comprimidos, se a vida de Fernando deles depende, se o protegem de alguma doença. Ou protegem-no antes de uma alucinação?
Começa Fernando a alucinar quando aquelas peregrinas chinesas a caminho de Santiago de Compostela o salvam da morte no primeiro dos seus renascimentos? E quando estas o amarram a uma árvore [...] segundo as técnicas do shibari, variação nipónica do bondage e das práticas BDSM? São as chinesas umas perversas? É Fernando quem alucina? Ou é ele antes o objeto de desejo de quem o olha (o espectador, pelo ponto de vista do cineasta)? E se Fernando alucina, porque é que tem o sexo ereto no momento em que está preso? Isto é: aquele é um corpo de dor, um corpo de prazer, ou ambos, dor e prazer, em simultâneo num só corpo, até chegarmos a uma certa noite de eclipse, algures num centenário souto transmontano? Por esta altura (a amarração de Fernando à árvore) leva "O Ornitólogo" pouco mais de meia  hora; a procissão, convenhamos, ainda vai no adro. Não diremos muito mais para não estragar o que nos espera. Pouco mais de meia hora de filme, e já J.P.R. começou a sublimar o desejo, procurando no corpo, e no sexo, uma forma de elevação (que o filme, citando uma homilia de Santo António, já nos apresentara em epígrafe). Ou seja: entregamo-nos a um filme em que os corpos são uma entidade plural, em que as personagens sofrem metamorfoses incontroláveis, ao mesmo tempo que se fundem o sagrado e o profano, o platónico e o carnal — até chegarmos a esse estado de "alegre blasfémia" que o cineasta, ele que só crê no cinema, sublinhou querer atingir na estreia do filme em Locarno.
Mas sejamos, de novo, prudentes: não temos respostas claras para as perguntas que o filme nos lança.

Tanto melhor. Preferimos aceitar esta ideia do que dizermos, a priori, que não queremos compreender nem a religião, nem a sensualidade, nem o misticismo que aqui se entrelaçam. Também é curioso notar que as opiniões menos favoráveis ao filme quedaram-se num 'nim' embaraçoso - facto estranho, porque J.P.R. nunca arriscou tanto, nunca ficou tão próximo da inverosimilhança, do grotesco, até do gore, numa cena de sangria a céu aberto que faria as delícias de um Dario Argento ou de um Mario Bava. É que "O Ornitólogo" — por muito prosaica que esta ideia pareça — não nos dá os seus segredos de barato nem é, no limite, um filme 'que se explique'.
Uma das coisas que mais apreciamos nesta obra de J .P .R. é precisamente como o filme defende ao máximo as suas personagens, sempre muito cinzeladas, definidas por detalhes que nos vão exigindo a máxima atenção (olhares, frases, objetos...), de um visionamento a outro.
Porque é inexplicável o seu espaço, aquele Douro que Rui Poças fotografou em cinemascope no primeiro filme de J.P.R. a céu aberto e em que não há portas nem janelas. Tal como é inexplicável  o seu tempo, que, à medida que o filme avança, mais curto para Fernando parece tornar-se — e que é um tempo místico, figurado no momento em que a personagem entra às tantas num túnel escuro que não tem regresso. Pelo caminho, Fernando encontra um homem puro, um pastor de cabras que é surdo-mudo, Jesus (papel do ator galego Xelo Cagiao). Os corpos rolam naquela praia fluvial, noutra fusão que é de amor e de morte, sem que a cena perca a graça natural do seu movimento. Em quem pensa o espectador? Qual é o limite do seu olhar? São problemas concretos e apaixonantes. Pensamos nós no pastor de cabras que Fernando, na ficção, engata? No Menino Jesus que Santo António (e Fernando está em vias de se converter neste) levava ao colo na iconografia católica? Ou na fusão de ambos?
AUTORRETRATO CAMUFLADO
Na edição em DVD de "Morrer como Um Homem" (2008), J.P.R. incluiu um extra, uma curta-metragem, em que, filmado por ele próprio em close-up, se camufla como os soldados do exército na preparação para os treinos de combate. Recorde-se que uma das cenas de "Morrer como Um Homem" decorre nesse ambiente. É importante notar que, desde então, quer em "O que Arde Cura" (2012), curta-metragem (que J.P.R. protagoniza) do seu companheiro de trabalho e de vida João Rui Guerra da Mata, quer nos filmes que ambos coassinaram, "A Última Vez que Vi Macau" ou "Mahjong", a presença física do cineasta no ecrã tem vindo a acentuar-se e a ganhar cada vez mais preponderância (como ganhou, por exemplo, na obra de César Monteiro). Também disso fala o cineasta num livro de entrevistas que acaba de ser lançado em França, "Le Jardin des Fauves" , fruto de várias sessões de conversa" com o cineasta e produtor Antoine Barraud (coisa rara: um cineasta a entrevistar outro). Em 'O Ornitólogo" , o realizador vai mais longe. A voz de Fernando é a do realizador, e esta transferência para um autorretrato que se insinua não ficará pela banda sonora.
"Acho que esta passagem para o ecrã" , contou-nos J.P.R. há dias, ao regressar de um festival em França [La Roche-Sur-Yon], "tem a ver com a fase atual da minha vida, com o facto de eu ter dobrado os 50 anos. Não sei se não ando à procura de um outro grau de exposição ou de representação da minha própria pessoa. É curioso, porque o Centro Georges Pompidou [que vai apresentar em Paris uma retrospetiva integral do cineasta a partir de 25 de novembro] encomendou-me uma curta objetivamente autobiográfica, que já está pronta e se enquadra numa série de filmes com o título 'Oü en êtes-vous?' O filme chama-se 'Oü en êtes-vous, João Pedro Rodrigues?' Eu já sabia desde o primeiro dia de rodagem que a voz de Fernando iria ser a minha. Porque a minha voz habita aquele corpo, há uma osmose desde o início. A dobragem, de resto, foi uma etapa complicadíssima do filme, fizemos para cima de vinte versões, testes sobre testes. Se o corpo de Fernando é duplo, esta é uma ideia que, mesmo a nível teórico, faz todo o sentido. "

E no entanto, ressalva J .P.R. , este flirt com a autobiografia, esta vontade de se querer filmar o que se quer ter, de só poder filmar-se o que se deseja, não anula as personagens. "Eu sou todas elas, sou o Fantasma, sou a Odete, sou o Fernando. É como se me tentasse pôr no corpo das outras pessoas. Quero que elas vivam por mim, mas que sejam livres no seu próprio devir — e se tornem gloriosas. Mas tenho de as desejar, senão elas não existem. Talvez tudo isto não passe de um jogo que deve ser encarado como tal. De uma aventura."
Da nossa parte, seguimo-la como ela nos exigiu: com um amor incondicional. Até àquele desfecho que é um testemunho de felicidade e em que pensámos em 'Passarinhos e Passarões" (o filme de Pasolini), já que estamos a falar de ornitologia...
Francisco Ferreira, Expresso
 

ENTREVISTA AO REALIZADOR
Como cruzar a história de um ornitólogo comum, de binóculos em riste pelo Douro transmontano, com a de Santo António, frade franciscano sobre quem rezam mais mitos que verdades? Aventura hagiográfica a partir das beatitudes da ilusão cinematográfica, sob feitos e feitiços assinaláveis do director de fotografia Rui Poças, assim é a proposta de «O Ornitólogo», quarta longa-metragem de João Pedro Rodrigues, com a qual o cineasta devolveu a território luso, no passado dia 13, o prémio que Pedro Costa (por «Cavalo Dinheiro») vencera há dois anos: o Leopardo de Prata de Melhor Realizador do Festival de Locarno. Envolta numa polémica de salários em atraso a que não escapam nem os do realizador (ladaínha digna de um outro filme cá do burgo, o segundo tomo de As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes), a quarta longa-metragem de Rodrigues parte do certame suíço para a inauguração, a 25 de Novembro, da retrospectiva integral que lhe é dedicada no Centre Georges Pompidou, em Paris, onde a sua exibição será acompanhada da fita “Où en êtes-vous?”, encomenda daquela instituição. Onde está, onde esteve e para onde vai afinal o “miúdo solitário ainda hoje não muito sociável”, nas palavras do próprio, cinquenta anos de idade, uma dezena de curtas-metragens e quatro longas no bolso? Como o seu cinema, a resposta não é clara, mas ronda a biologia, a escola de António Reis, o western americano e o desafio absoluto de permanecer desconfortável.
É verdade que queria ser ornitólogo quando era miúdo?
Em casa a visão do mundo era uma visão científica e racional. Os meus pais são ambos da Físico-química. Passávamos muitos fins-de-semana em Tomar, de onde o meu pai era, e era lá que praticava a observação de aves. Desde os meus dez anos que as queria estudar. Queria fazer uma catalogação completa das aves que ali passavam e nidificavam ao longo do ano. Tenho um temperamento obsessivo por natureza. Com quinze comecei a ir ao cinema, mas apesar disso continuei a estudar Biologia. Não acabei esse curso e aí sim fui para o Conservatório, a actual Escola Superior de Teatro e Cinema [em Lisboa]. Apesar de não ser autobiográfico, este filme é um regresso a um caminho que eu podia ter percorrido.
Como migrou para o cinema e com quem ia vê-lo?
Não sei porquê comecei a ir sozinho aos ciclos da Gulbenkian que eram organizados pelo João Bénard da Costa. Ciclo de cinema americano dos anos 40, 50, ciclo de cinema alemão... A ornitologia e o cinema são ambas actividades que se fazem sozinho. Cada um vê o filme por si, da sua maneira, embora esteja acompanhado por outras pessoas na sala. As aves, por sua vez, devem ser vistas pelo menor número de pessoas, pois são tímidas e fogem. Quando se consegue avistar uma mais difícil, há uma espécie de momento íntimo com ela. O mesmo acontecia quando antigamente havia filmes que eu desejava ver e não podia porque ainda não se descarregavam da internet – quando finalmente chegava o dia, era um momento único, raro, quase sagrado.
João Bénard da Costa participou, então, da sua cinefilia.
Na Cinemateca Portuguesa, naquela altura, Luís de Pina ainda era vivo [e director da instituição], as folhas de sala eram quase todas escritas pelo Bénard da Costa. Ele ensinou-me muito a olhar para os filmes como imagens, sons, enquadramentos. O que é um plano, quando acaba, qual é a sua duração, a sua intenção? Eu era muito naïf quando comecei a ver filmes e depois, quando fui para o Conservatório, os meus professores, António Reis, Paulo Rocha, Alberto Seixas Santos, Jorge Silva Melo, que foram os fundamentais, ensinaram-me a ver cinema para além de uma simples história, a passar além da emoção embora mantendo-a. Os textos do Bénard da Costa eram também eles cheios de emoção, ele usava muito o adjectivo “inadjectivável”, qualquer coisa que era tão boa que era “inadjectivável”. Esse lado desmesurado, que tem a ver com a paixão, foi para mim fundador na minha relação com o cinema. Ainda hoje quando estou muito tempo sem ver filmes é como se me estivesse a faltar qualquer coisa.
Porque o marcaram aqueles professores?
O António Reis morreu logo a seguir a eu ter saído do Conservatório. Tinha com ele uma relação que se estendia até à Cinemateca, onde eu ia compulsivamente a seguir às aulas e onde o encontrava com a mulher e as filhas. Esta extensão Escola-Cinemateca é como eu acho que só é possível fazer cinema, o cinema confunde-se realmente com a vida. Eu não tenho uma profissão ou não a vejo como tal, é a única coisa que eu sei ou tento saber fazer, não tenho horários, e acredito que é impossível fazer qualquer actividade artística sem ser desta forma, embora claro que com alguma disciplina. Eles também me ensinaram este lado obsessivo. E que não é importante só ver filmes, mas também fazer outras coisas, por exemplo ler. Logo numa das primeiras aulas, o Jorge Silva Melo, que dava Argumento, deu-nos uma lista com os livros fundamentais para qualquer pessoa perceber um bocadinho de literatura. Não tinha nada a ver com estas aulas que hoje em dia são dadas por gurus do argumento como Robert McKee. Fazíamos o exercício de pensar como um livro tinha sido adaptado, depois víamos filmes. Por exemplo «Carta de Uma Desconhecida», de Max Ophüls a partir do livro do Stefan Zweig, ou «O Dinheiro» do Robert Bresson a partir de Dostoiévsky. Depois vim a trabalhar em alguns filmes do Jorge Silva Melo. Com o Paulo Rocha fiz a grande descoberta do cinema asiático que é aquele que talvez hoje ache ainda mais interessante. Ele mostrou-nos principalmente Ozu e Mizoguchi. O Alberto Seixas Santos deu-me também o olhar analítico, e mais tarde trabalhei com ele num filme chamado «Mal» [1999].
António Reis que também tinha uma ligação com Trás-os-Montes, província onde filmou «O Ornitólogo».
Uma das grandes alegrias de ir filmar para Trás-os-Montes foi saber que já tinham lá filmado, naquele território, o António Reis e a Margarida Cordeiro. Ela ainda lá vive, mantive algum contacto ao longo destes anos e encontrei-a antes de fazer este filme. Pedi-lhe ajuda na procura de cenários com determinadas aves e ela sugeriu-me algumas zonas, sítios que nem nomes têm. Mas o meu filme não tem nada a ver com o «Trás-os-Montes» [1976] deles, mesmo se esse filme se tornou num mito do cinema português.

Que tipo de aves procurava? Imagino que seja difícil prever o momento em que se pode captá-las...
Nessa zona existem aves raras como o abutre-do-egipto e as cegonhas-pretas. Estas últimas são o oposto das brancas que estamos habituados a ver e que são gregárias. As pretas são muito solitárias, vivem em casais, fazem os ninhos distanciadas umas das outras ou em falésias à beira dos rios. Têm também elas qualquer coisa de mito. Tivemos a colaboração dos guardas do Parque Natural do Douro Internacional e de um ornitólogo chamado Carlos Pacheco que sabem onde elas estão e foi mais fácil apanhá-las do que imaginava. Filmámos na Primavera de 2014, estávamos na altura da nidificação.
Há qualquer coisa de Anthony Mann neste ornitólogo a atravessar uma natureza que lhe é monumental.
Sim, no western americano há uma relação privilegiada do homem com a natureza. Onde vemos o homem sozinho e o seu cavalo, aqui temos o homem e o seu caiaque. Nos filmes do Anthony Mann, o James Stewart tem um ar masculino e doce ao mesmo tempo, basta olhar para os olhos dele para ver a sua humanidade. Mas também pensei no Budd Boetticher, em cujos filmes o Randolph Scott tem qualquer coisa de furtivo, uma presença muito bruta do corpo, aquela pele, queria encontrar nesta personagem alguma dessa dureza. E quis que este ornitólogo atravessasse a natureza como se fosse parte dela. Em muitos lugares onde estivemos não passam homens há muito tempo. É como se fosse uma viagem no tempo. Não é só uma viagem física. É uma viagem a um tempo onde este mundo não estava tão destruído e transformado. Apesar de as margens do Douro terem sido cultivadas durante muito tempo, chegando as pessoas lá de mula, burro, a pé, hoje há muitos olivais abandonados, resultado, como se sabe, da enorme desertificação do país. Essa história sente-se, mas é como se tudo isso tivesse sido induzido pela natureza, como se voltássemos a um estado selvagem, não domesticado, virgem, a qualquer coisa que se perdeu e ainda é possível encontrar.
Proferiu termos como “mito”, “sagrado”, “virgem”, mas ainda não falámos de Santo António, figura omnipresente no filme.
Interessa-me contar mitos da história popular portuguesa, aquilo que é do domínio de todos, e de alguma forma inventar os meus filmes a partir dela. Embora se passe na actualidade, o filme é uma interpretação muito pessoal do Santo António, que viveu no século XIII. É uma personagem que já vem de um filme que fiz chamado «Manhã de Santo António» [2012], que tinha que ver com as festividades à volta do 13 de Junho mas nada com a sua biografia. Não há assim tanta coisa escrita que se saiba ser verdade sobre este frade que nasceu em Lisboa e morreu em Pádua, que em Coimbra conheceu frades franciscanos, ficou muito comovido com aquela nova forma de pensar a religião e foi evangelizar com um grupo de franciscanos para o Norte de África, quase que morreu, escapou, e no regresso, o barco onde vinha, deu à costa em Itália. Interessava-me este lado de viagem. Os franciscanos estavam ligados à natureza, ao estudo, a uma vida na pobreza. Fazia-me sentido através da personagem do ornitólogo ir buscar esta outra história. O facto de estarmos neste espaço sem tempo, onde quase não há presença humana, era o espaço ideal para abordar episódios da vida de Santo António e a sua relação com o Divino. Eu não sou crente, mas o abandono dos franciscanos faz muito sentido agora se pensarmos no mundo de hoje em que há uma ostentação contínua da riqueza e em que o maior poder virá do dinheiro.
É indiferente para si que ele seja conhecido como um santo casamenteiro?
Isso, se pensar, foi uma apropriação do regime do Estado Novo a partir da representação que existe de Santo António com o Menino Jesus nos braços, presente em muitas igrejas. Essa imagem interessava para uma ideologia de moral da família. Não é que eu queira destruir essa imagem, mas penso que de alguma forma o filme tem um lado iconoclasta ao olhá-lo de um outro ponto de vista.
Acha que as religiões tradicionais se tornaram expressões obsoletas e alienantes e que o cinema pode, à sua maneira, reivindicar um papel na espiritualidade dos homens?
É uma questão difícil de responder, ainda por cima estamos a viver um momento trágico. Em nome de muitas e variadas religiões cometem-se actos absolutamente horrorosos e atrozes. A minha aproximação à religião, que foi muito forçosamente a católica pois vivo em Portugal, foi pela pintura. A maior parte da pintura ocidental é religiosa, começou nos frescos das igrejas, só depois é que começou a escapar às encomendas do clero...
A iconoclastia pode ser uma via para a transcendência?
Os meus filmes têm uma presença muito física não só dos actores, como dos cenários, dos lugares ou da forma como os filmo, e tento a partir dela chegar a uma transcendência. Não gosto muito de chamar o cinema de arte, embora obviamente o seja. O cinema é um ponto de vista sobre o mundo. É de alguma forma o modo que encontrei para sublimar essa relação que tenho com o mundo, tornando-a pessoal e também misteriosa. O cinema que me interessa é um cinema em que nem tudo é claro, não quer dizer que seja tudo opaco, mas o prazer vem de haver sempre um mistério que permanece.
Diria que está sempre a pegar nesse mistério que é a fronteira entre a natureza humana e a animal. O primeiro plano de «O Fantasma» [2000] é o de um cão, e o protagonista humano como que se transforma num. «Odete» [2005] tem no instinto maternal ou reprodutivo uma espécie de motor. Em «Morrer Como Um Homem» [2009] estão lá também os cães, espectadores mudos mas também capazes de interferir nas vidas dos donos sem que estes se lembrassem que o poderiam fazer. Em «A Última Vez que Vi Macau» [2019] os animais como que se assumem como protagonistas de um espaço de memória inicialmente humano...
Somos feitos da natureza, somos seres vivos, pertencemos aos animais antes de sermos homens, mulheres. Daí ser importante para mim o lado físico, filmar corpos que estão vivos. E é o desejo das personagens que as faz mover. Em «O Fantasma», a personagem é uma espécie de criança e as crianças, como não passaram por uma socialização, não sentem culpa, fazem o que desejam, daí a proximidade com a animalidade. De repente a personagem tem sentimentos e talvez seja esse o seu grande dilema. Não me interessa seguir padrões e deixo-me surpreender pelas próprias personagens – não é que eu não as construa, mas há um momento na escrita em que me deixo guiar pela personagem. No «Morrer Como Um Homem» os cães são duplos dos próprios donos – a Tónia é a Tónia e o Vadio é o Rosário. Tinha que ver com esta ideia de estarmos muito habituados a viver com animais domésticos. Em «O Ornitólogo», o actor tem tanta importância como o lugar onde está. Os animais são selvagens, não sabemos quando vão aparecer, são livres.
Em «Morrer Como um Homem» um médico cirurgião diz: “Nada se perde, tudo se transforma”. E de facto, tudo parece metamorfosear-se nos seus filmes, onde a narrativa começa com uma ligação muito concreta ao real para acabarmos com as personagens isoladas nos seus medos e fantasias.
Tem razão quando diz que é como se os filmes descolassem da realidade para um outro lugar que vai na direcção do fantástico. Gosto da palavra fantasia. Em inglês “fantasy” serve para o género do fantástico como também para fantasia. O cinema é feito de imagens reais e nesse sentido é sempre real, é como vemos o mundo. Mas consegue de uma maneira se calhar mais evidente do que na literatura, descolar para outra coisa. É verdade que nos meus filmes a forma muda, as personagens mudam, transformam-se... Em «O Ornitólogo», além de haver uma personagem que olha para as aves, pensei também muito em como as aves nos olhavam a nós, isso tem qualquer coisa de misterioso. Como é que se filma isso? E é certo que, de alguma forma, neste filme, é a natureza que vê primeiro essa transformação.
O desejo obsessivo, a doença, os amores impossíveis ou desencontrados, a solidão. Nunca dá às personagens a possibilidade do conforto. E pego novamente em «Morrer Como Um Homem», naquele momento em que Maria Bakker ao entrar em casa, trocando uns sapatos rasos por outros de salto, dizia: “Estes sapatos estão tão confortáveis, enervam-me!”
Nesse filme havia uma espécie de parti pris de todos os actores serem homens ou transexuais. Não sei se conhece o «The Women», de George Cukor, em que só há mulheres, até os animais são cadelas – foi como fazer esse filme mas ao contrário! Mas isto é só uma pequena anedota. Em relação ao desconforto, a nossa evolução tem a ver com tentarmos ultrapassá-lo, eu não consigo estar confortável comigo mesmo e acho que é impossível estarmos sempre confortáveis. Os motor do drama é a incapacidade do herói atingir os seus objectivos.
(Texto publicado originalmente na Metropolis nº41)

Aisha Rahim, cinemametropolis.com
 

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