O AMANTE DE UM DIA | 13 MAR | IPDJ | 21H30


O AMANTE DE UM DIA
Philippe Garrel
França, 2017, 76', M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: L'amant d'un jour
Realização: Philippe Garrel
Argumento e diálogos: Jean-Claude Carriere, Caroline Deruas, Arlette Langmann, Philippe Garrel
Música original: Jean-Louis Aubert 
Montagem: Francois Gédigier
Fotografia: Renato Berta
Interpretação: Eric Caravaca, Esther Garrel, Louise Chevillotte
Origem: França
Ano: 2017
Duração: 76’

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Quinzena dos Realizadores
  
TRAILER

CRÍTICA


No novo filme de Philippe Garrel voltamos a mergulhar na dissolução de um sentimento amoroso, caímos de novo num triângulo — tal como aconteceu nos dois últimos filmes do cineasta, "Ciúme" (2013) e "À Sombra das Mulheres" (2015) embora o que se vê em "O Amante de Um Dia" , perturbador e cruel, não seja um triângulo qualquer.
Garrel sabe que se o mito amoroso é um poço sem fundo, também há no amor diferentes formas de amar. Filmou desde sempre encontros e separações, juras de eternidade que continuam a confundir-se com o próprio cinema (ou com o seu amor pelo cinema) mas cada novo filme, e é importante que isto fique claro, nunca é imitação do anterior. Outro lembrete, que vem a calhar: Garrel é um romântico, no mais nobre e no mais físico sentido do termo. Cada filme dele é um casulo isolado de ficção que não é a vida 'cá fora' mas que com a vida se confunde numa sensação quase palpável. Nos seus filmes, as coisas 'parecem estar mesmo a acontecer' , para cada um de nós, na ilusão do instantâneo e do presente, como na vida. Trespassam o ecrã. Ficam a pairar no espaço e no tempo. São um ritual, que depende acima de tudo da luz, da fotografia em película (quase sempre a preto e branco, de novo assinada por Renato Berta), do som direto (em que cada passo, cada ranger de maçaneta de porta, traz sempre algo que perturba) e de uma rodagem que, desde sempre no cineasta, se desenrola cronologicamente no tempo da ação. No ritual, há gente que ama e que desespera. Há até quem se suicide ou que fique perto disso, tal como acontece a uma das personagens de "O Amante de Um Dia". No fundo, Garrel trabalha como um pintor sobre os mesmos motivos, tal como Cézanne outrora trabalhou, quase 80 vezes noutras tantas telas distintas, sobre a montanha Sainte-Victoire. Passemos ao filme, que traz diferenças de peso face aos anteriores do cineasta. Comecemos pelo triângulo (e pelas tais formas diferentes que o amor tem) pois este é pouco comum: um pai, a sua filha, e a amante dele. Gilles/ Éric Caravaca, professor de Filosofia na casa dos 50 anos, vive com a namorada Ariane/Louise Chevillotte (outra debutante descoberta por Garrel), sua ex-aluna, de vinte e três anos.

Vinte e três é também a idade de Jeanne/Esther Garrel, filha de Gilles na ficção e filha de Garrel na vida. Um desgosto de amor leva Jeanne a bater à porta do pai e a pedir guarida. Jeanne conhece então Ariane. Partilhando o mesmo apartamento, começam também a partilhar ideias e confidências próprias da sua idade. Eventualmente, tornam-se amigas, algo que poderia a priori tranquilizar o professor maduro, mas que em vez disso o inquieta (ele sente-se excluído dessa cumplicidade) e depois o desestabiliza. Será que, naquelas circunstâncias, o amor de pai (por Jeanne) e o amor de homem (por Ariane) se tornam incompatíveis debaixo do mesmo teto? Vem o primeiro encavalitar-se no segundo e roubar-lhe o erotismo, o oxigénio, sufocando-o? "O Amante de Um Dia" — e esta é outra novidade da trilogia de Garrel e deste filme em particular — não está mais ancorado num ponto de vista autobiográfico e masculino, mas no de Ariane, que Garrel segue incondicionalmente. A gravidade adensa-se quando Gilles, ele que às tantas trata Ariane como Narciso, lhe sugere que ela poderia ter outro amante, já que a infidelidade não os afetaria. Ora, Gilles não só será imprudente (Garrel, de resto, não lhe reserva qualquer ternura) como se revelará um homem bem menos tolerante do que ele quer fazer crer. É que Ariane, perante o que Gilles lhe diz, deduz outra coisa — que ele já não a ama — e começa a levar a sugestão à letra. Será essa a imagem que o Narciso vai ver ao espelho. Será nos braços de outros homens que o Narciso procurará o prazer que desvaneceu com o professor desde que a filha deste lhes entrou em casa.

Ariane é uma amante fogosa, intempestiva, dominadora. Garrel segue a sua entrega ao sexo, ao prazer, em cenas carnais que o cineasta jamais ousara até hoje. Segue-a no convite do título, porque só podem ser de Ariane aqueles amantes de um dia. Segue-a pela voice over do filme, que não é nem a voz de Ariane nem a de Jeanne, mas a dos pensamentos de qualquer outra mulher cúmplice que jamais conheceremos. Ate à inversão dos papéis femininos em que receamos que Ariane — ela que começou o filme a consolar o pranto de Jeanne — saia de cena tal como Jeanne nela entrou: em lágrimas. Garrel fez um filme sobre aquilo a que poderíamos chamar 'inconsciente feminino'. Se ele fosse psicanalista e seguisse Jung, talvez lhe chamasse complexo de Electra. Mas Garrel é cineasta e, para o cinema, Ariane não é uma teoria, antes um mistério inalcançável do qual o humor também faz parte. O filme acaba, a vida continua... Foi ao pensar nisto que me dei conta de como Louise Chevillotte, mesmo num contexto tão diferente, tanto me recorda outra mulher, a que a godardiana Marina Vlady interpretou em "Deux ou trois choses que je sais d'elle".
De Ariane, é o que vamos saber. Duas ou três coisas. Não mais do que isso.
Francisco Ferreira, Expresso


 

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